Abraços carinhosos e todas, todos e todes... aguardamos mais depoimentos...
e até nosso próximo passeio-conversas-reflexões.
Abraços carinhosos e todas, todos e todes... aguardamos mais depoimentos...
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A alguns passos estávamos em frente a Capela de São Sebastião. Reparem o sincretismo religioso: Oxóssi e suas flechas estão nas torres da capela. Oxóssi é rei das matas, das caças e da fartura. São Sebastião era um soldado do Império Romano que se converteu ao cristianismo e foi martirizado por conta da sua fé. É venerado como santo padroeiro contra a peste, a fome e a guerra.
E foi ali que tivemos uma bonita aula de história, misturada com geografia:
Daquele local podemos identificar duas bacias importantíssimas para Minas Gerais e para o Brasil: o RIO DAS VELHAS e o RIO DOCE.
As nascentes do Rio das Velhas estão localizadas dentro do Parque Municipal Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, perto de onde estávamos conversando. Este rio é o maior afluente, em extensão, do Rio São Francisco. O nome 'Rio das Velhas' tem origem indígena (tupi-guarani). Antes de ser 'Rio das Velhas' era conhecido como rio Uaimíí pelos indígenas. A antiga pronúncia foi traduzida na forma portuguesa Guaxim, da qual nasceu Guaicuy, que significa ''Rio das Velhas'. A história da ocupação da Bacia do Rio das Velhas começou no final do século XVII, quando os bandeirantes aproveitavam a rota do rio para desbravar o interior do estado à procura de ouro e pedras preciosas. Quem orientava os bandeirantes, provavelmente, eram os índios e os africanos escravizados.
A bacia do Rio Doce nasce nas serras da Mantiqueira e do Espinhaço. O Rio Doce propriamente dito é formado a partir do encontro dos Rios Piranga e Do Carmo, em Minas Gerais, e percorre cerca de 850 quilômetros até o mar, no Espírito Santo. Chamado de WATU - mar doce - pelos indígenas, durante o ciclo do ouro o Rio Doce teve sua navegação proibida pela corte portuguesa, para evitar o transporte e a exploração do ouro e pedras preciosas por suas águas, por outras pessoas que não eles mesmos. Em 2015 o Rio Doce foi devastado pelo "mar de lama" em consequência do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana. O médio Rio Doce, atingido pelo "mar de lama", é habitado por indígenas da etnia KRENAK. Ailton Krenak é um líder indígena nessa região, grande ambientalista, filósofo e escritor brasileiro.
Acima, a Cachoeira Catarina Mendes, também perto dali... perto que eu digo para uma boa caminhada ecológica-histórico-cultural. Catarina Mendes foi uma mulher escravizada, que conquistou sua alforria (pesquisando no GOOGLE você encontrará: "... recebeu alforria do seu dono" - e é exatamente sobre isso que conversamos ...) - e se fixou em um pedaço de terra que tinha essa cachoeira: O povoado de Catarina Mendes, subdistrito de São Bartolomeu, que é distrito de Ouro Preto. Em frente a Capela de São Sebastião, Seu Tatu, um simpático sinhozinho que carrega consigo uma parte da história dessa região, nos conta que Catarina, além de ter montado uma "Casa de folga" naquele povoado, defendia e protegia as mulheres que ali habitavam. Isso lá pelos idos século XVII, XVIII... por aí...
Então... nesse dia não fomos a Catarina Mendes. Fomos caminhando, subindo a serra, onde grande SBCense ouro-pretana nos apresentou as "minas a céu aberto", nos dizendo que toda grande mina começa, na verdade, a céu aberto ... e descemos até a Mina Du Veloso (o que se chama hoje de mina seria uma das partes do processo de extração do ouro, a "galeria subterrânea") - e isso significa uma ampliação do olhar: a ideia de que a mina não é somente a galeria subterrânea - MINA era o grande território, onde se utilizavam as várias técnicas de mineração - e uma delas constituía nos aquedutos que estávamos vendo, que veem a ser grandes canais que conduziam água, e provocaram o desmonte hidráulico... uma ótima caminhada, para o corpo e para o espírito. E, nessa caminhada, nossa 'guia' usou a expressão "virar a chave", se referindo a uma "mudança de olhar" em relação à nossa história, a propósito de olhar para a história de Ouro Preto sob uma perspectiva mais ampla, a perspectiva das pessoas que construíram a cidade e as que já estavam aqui antes, ou seja, os negros e os indígenas. Significa "contar outra história", não só a história que conhecemos, dos bandeirantes, dos nossos colonizadores.
E ficamos refletindo que podemos compreender - e agir - "virando a chave" num sentido muito maior do que este, ou seja, o processo de "virar a chave" pode, e deve, ocorrer em todos os níveis de relação, desde "eu comigo mesmx" até a "visão (e ação) de/no mundo", passando pelas relações íntimas, pela família, amigos, relações de trabalho, e eu enquanto cidadã e cidadão.
E começamos a pensar a partir da própria experiência de vida... e surgiram exemplos, assim como reflexões, no movimento do Particular para o Geral e para o Particular, e assim por diante, numa construção bonita e proveitosa:
- Começo pensando no que ouvi ontem de uma jovem mulher: "fulano é muito legal! ele me ajuda em casa e com as crianças"... Certamente essa fala NÃO significa "virar a chave", pois quem ajuda não assume nenhuma responsabilidade! Assim como outra de nós disse: "Ele me deixa sair com as amigas"... Para algumas de nós essas frases não têm o menor sentido. Mas, acreditem, ainda é muito comum entre muitas de nós.
- Ouvi, também, de uma mulher de mais idade, que ela "aprendeu" a servir... que ela tem prazer em servir... e pensei: entre mulheres que têm o prazer de servir e mulheres que lutam contra a subserviência, estamos, no mínimo há 100 anos, no 'grande esforço de pensar-sentir-agir virando a chave'.
- Continuando com "o que NÃO é virar a chave": penso também em quantas de nós, ainda, têm internalizado o "grande" papel, ou "destino" de toda mulher: ser mãe... atualmente, somente uma pequena parcela de mulheres "viraram a chave" no sentido de ESCOLHER esse destino: casar e ter filhos... e sabem que outros objetivos de vida nos farão, também, inteiras e felizes. Inclusive "olhar" para o mundo e para si mesma e se ver enquanto construtoras do mesmo, de um mundo mais bonito, mais justo, mais inclusivo. Imaginem que a música "Triste, louca ou má" foi construída a partir de uma fala comum nos anos 90, que significava a "pecha" que se dava à mulher que "não queria esse destino", e se colocava o direito de escolher. Nos EUA se dizia, em relação a essas mulheres, que seriam "BAD, SAD OR MAD"... ouçam:
- Para nós, mulheres, compreender o feminismo fazendo parte de uma luta maior, a luta de classes, a luta contra o sistema capitalista, significa "virar a chave". Pois, apesar de todo esforço que se faz para nos "invisibilizar" essa realidade, sabemos que a história do capitalismo foi fundida com a lógica do patriarcado, da subserviência da mulher, assim como do racismo, da lógica "naturalizada" de que existem seres humano "inferiores" e, portanto, eles podem ser explorados. Lembram da Catarina Mendes, a que deu o nome ao subdistrito de São Bartolomeu? A "história" do google é a de que ela recebeu a alforria do seu dono. Quando começamos a virar a chave nos damos conta do absurdo que é a negação de toda a luta - da Catarina e de todas as pessoas escravizadas - para conquistar sua liberdade... pois o que a "histórica oficial" nos conta é a da Princesa Isabel, que assinou a "Lei Áurea"... nada nos contam de toda uma história de luta de mulheres e homens escravizadxs... precisamos buscar essa história, todxs nós...
Abdias do Nascimento (1914-2011), grande parlamentar brasileiro, fala da Lei Áurea como "uma mentira cívica da branquitude"...
- Outra virada de chave que vivencio e reflito sempre está na relação pai-mãe/filhx... e filhx/mãe-pai: um processo difícil, mas necessário, xs filhxs chegarem a reconhecer e amar mães e pais naquilo que eles têm de "amáveis", o processo de "humanização" dos pais, penso, interfere em todas as outras relações, e até na relação comigo mesmx, na autoestima: significa o processo de sair da idealização e nos humanizarmos e humanizarmos x(s) outrx(s). A mesma reflexão sobre o processo de humanização serve para as mães e pais em relação axs filhxs, importante e necessária a mão dupla de estarmos sempre atentxs em relação às projeções que fazemos em relação a nossxs filhxs, e as "cobranças" decorrentes dessas projeções.
- Pensando no sentido da metáfora: me parece que virando a chave abrimos uma porta... e podemos ver uma sala grande...uma paisagem, uma estrada... que pode ser bonita e/ou pode dar medo... e, se formos impelidxs a dar um passo sem olhar atrás de nós, podemos cair num abismo. Portanto, não é o caso de deixar de olhar para trás, nossa história conta muito na construção dessa caminhada pela nova estrada. Sejamos históricxs, nem a-históricos, nem supra históricos, como conversamos no post de 8 de julho, leiam...
E terminamos comentando sobre os homens, sobre cultura masculina:
- Não é que tem homens que se dizem não machistas? Eu tenho medo, pois esses "acham" que estão, mas NÃO estão, virando a chave... NEGAM a história, a "cultura internalizada", provavelmente estão na arrogância, como se pudesse existir, na nossa sociedade, o não machismo.
E é necessário muita humildade, de TODXS NÓS, para começarmos a VIRAR A CHAVE do machismo. Pois, como conversamos, VIRAR A CHAVE não é esquecer ou negar a história (e a cultura)... é um movimento contínuo de enxergar/andar pra frente, estando, sempre olhando pra trás, na medida certa, ou seja, olhando pra trás para aprendermos a apropriar e a rejeitar a história, PARA A VIDA E PARA A AÇÃO. Os homens daquela Roda de Conversa, fazendo um exercício de humildade, concordaram...
Abraços carinhosos e todas, todos e todes... aguardamos depoimentos... e até nosso próximo passeio-conversas-reflexões-movimentos...
De como conversas leves e despretensiosas se tornam conversas sábias e engrandecedoras: a propósito do Festival Varillux de cinema francês - recomendamos, "filme francês mesmo quando é ruim é bom", como diz amigo SBCense (já acabou o desse ano, mas procurem ver os filmes, quase todos estão nas plataformas... e todo ano tem novos filmes) - de repente estávamos conversando sobre adolescência de algumas de nós, anos 50 e 60, quando usávamos nossas primeiras maquiagens. Então, uma de nós lembrou que, naquele tempo todas as palavras nessa área eram em francês, a começar pela própria palavra maquiagem (agora MAKE UP), em francês com dois Ls: LE MAQUILLAGE. Passávamos ROUGE nas bochechas, tradução ao pé da letra do francês: vermelho... hoje deve ser BLUSH. E usávamos LE BÂTON nos lábios. Muitas vezes não, pois íamos beijar na boca. Então, fazíamos como ensinava a musa Brigitte Bardot: mordíamos os lábios e mantínhamos o mesmo sempre molhados... e a boca entreaberta.
Anos 60 foi uma década de grande revolução nos costumes... enquanto a ditadura se consolidava no Brasil. Década em que começamos a tomar a pílula e libertamos nossos corpos do "destino" de toda mulher... podíamos escolher... mais ou menos, pois o processo de libertação de mentes e espíritos demora mais. Conversávamos muito sobre sexo livre, e as putas (ou mulheres da vida) tinham nossa admiração. "Casa de folga" era a casa das putas; elas ouviam música no LP, long play... era uma bolacha preta que rodava na radiola e tocava com uma agulha. Dolores Duran, Dalva de Oliveira...
E a conversa caminhou para as lembranças de palavras antigas, que já não usamos: CHAUFFEUR, palavra também francesa, era muito usada. É motorista! Tem um filme do Mazzaropi de 1958, "Chofer de praça", chauffeur já foi "aportuguesado", e "... de praça" era porque os carros ficavam na praça, esperando os clientes para fazer as corridas...
Lembramos também as palavras usadas regionalmente: "Na Bahia se usava muito a palavra MALINO... menino malino... era o menino sapeca, aprontava todas: Nossa, Lourdes, como nossos meninos estão ficando malinos, né? E Lourdes fingiu que entendeu mas não sabia o significado de malino. Só muito tempo depois foi que perguntou pra amiga o que era, e ai entendeu tudo... " ; "também na Bahia a gente sai pra SARACOTEAR... que é somente "passear", "bater as pernas"!"
DESMAZELO é só um alfinete. RAMONA é grampo de cabelo no Rio Grande do Sul. Já no Nordeste a mesma coisa é CRUZETA.
E com esse papo chegamos ao tema VELHICE e HISTÓRIA: "Fico triste quando percebo que, de certa forma, aprendemos a desvalorizar as pessoas velhas. A juventude é vista, esteticamente, como "bonita", e "inteligente"; e a velhice é "desprezada", tida como "inútil".
Sim, o ETARISMO pode ser definido como a discriminação, o preconceito e a aversão contra pessoas por conta da idade. Nesse sentido, o etarismo colabora para a segregação da população idosa e está ligado aos padrões sociais construídos na nossa sociedade. E olha que, nessa conversa, estávamos em torno de oitenta por cento das pessoas pra mais de sessenta anos. E a maioria de nós, guardados os limites e considerando as possibilidades, como acontece desde que nascemos, se sentindo em pleno vigor , tanto físico como intelectual...
"Por favor, não nos deixemos "morrer" antes do tempo! Na verdade não sou "velho", e sim, tenho HISTÓRIA!
Mas qual história? De que história podemos falar de uma forma bonita e útil para a vida?
Publicada em 1874, a segunda das quatro considerações extemporâneas (ou intempestivas...). Sobre a utilidade e a desvantagem (ou inutilidade) da história para a vida (e para a ação), foi definida pelo autor em sua autobiografia, Ecce homo, como sendo o tratado que, através de nossa capacidade de perceber e dar significado ao passado, «traz à luz o que há de perigoso, corrosivo e envenenador da vida». No último século e neste, essa segunda (de três) consideração extemporânea tem se configurado representante fundamental da investigação sobre o valor da história e da cultura histórica ocidental. As noções de a-histórico e supra-histórico, apresentadas em Sobre a utilidade e a desvantagem da história, podem ainda nos dizer muito acerca de nosso olhar sobre o passado e como nos aproveitamos dele para bem vivermos o presente e gestarmos o futuro.
Entendemos que a pessoa a-histórica não considera a história... e se perde. Pois o que interessa é "o que vou fazer (e o que vamos fazer) com o que fizeram comigo (e conosco)", a liberdade é prospectiva. No entanto, é necessária uma potência a-histórica para a construção prospectiva. Guimarães Rosa dialoga com Nietzsche: "Viver é perigoso, a mesma coisa que me salva pode me matar".
Aprendemos com a história. Porém, ela não nos diz tudo. Se "atolamos" na "sabedoria" da história monumental teremos dificuldade de construir o novo, o que está por vir. "Deixemos o homem supra-histórico com seu nojo e sua sabedoria", é o que Nietzsche nos diz.
A nossa memória deveria, então, funcionar como nosso intestino: jogue fora o que não serve e aproveite tudo que sirva para a vida e para a ação transformadora. A força plástica permite à memória LEMBRAR e ESQUECER, na medida certa, sem a sobrecarga de lembranças...
Então, nossa SBCense super "nietzscheana", foi na sua estante, pegou o livro do Nietzsche, e leu pra nós o trecho:
... vamos denominá-los homens históricos... o olhar ao passado os impele ao futuro, inflama seu ânimo e ainda por mais tempo concorrer com a vida, acende a esperança de que a justiça ainda vem, de que a felicidade está atrás da montanha em cuja direção eles caminham. Esses homens históricos acreditam que o sentido da existência, no decorrer de seu processo, virá cada vez mais à luz; eles olham para trás para, na consideração do processo até agora, entenderem o presente e aprenderem a desejar com mais veemência o futuro. Não sabem quão a-historicamente, a despeito de toda a sua história, eles pensam e agem, e como até mesmo sua ocupação com a história não está a serviço do conhecimento puro, mas da vida".