sexta-feira, 30 de julho de 2021

ARTES NA PANDEMIA: Mudanças

Amigxs são como o sol, não precisa aparecer todo dia pra gente saber que existem, que estão presentes nas nossas vidas.


Esta é Maria José Birro Costa, Zezé, Zeza. Psicóloga, grande escritora, na foto com  seu livro para crianças "O Menino e a Lua". 

E a descrição que ela faz de si mesma... é linda! :

"Quem sou eu? Ainda me fazendo na escrita de mim."

Tenho a honra de ser sua amiga, desde o século passado.

E ela compartilha aqui conosco uma crônica sua, uma metáfora maravilhosa sobre a fluidez da vida. Me lembrou Nietzsche, que diz sobre nossa memória, ela deveria funcionar como nosso intestino, aproveitando tudo que serve para nos fortalecer e jogando fora tudo que não nos tem serventia.

Obrigada ZEZA...


 MUDANÇAS


Ela tirava coisas das caixas e as arrumava nas gavetas. Estava cansada. Já fazia mais de quatro horas que se encontrava nessa peleja.

Pôs-se a pensar, mais uma mudança como tantas outras. Logo tudo estaria no lugar. Era questão de tempo. Aquela bagunça até lhe ajudava a desapegar de coisas que não lhe tinham mais serventia.

Pensou como seria bom se assim também fossem nossos afetos, vivências e acontecimentos. Desfazer-se de marcas que vão sendo deixadas e nos acompanham.

Muitas vezes as colocamos num baú antigo que só raramente abrimos, o então conseguimos dobrá-las, arrumá-las, de forma que fiquem organizadas e nos deixem mais sossegadas.

Outras vezes ficam lá, expostas, naquela gaveta sempre à vista, e quando a abrimos fechamos rapidamente porque está tudo revirado, amarrotado e bagunçado. Não queremos que os outros ou nós mesmos vejamos o que está ou como está ali.

Ah! Se a gente pudesse como nas mudanças de casa jogar fora aquilo que não queremos que faça mais parte de nós, de nossas lembranças, de nossos guardados.

Pensou em suas mudanças de casa. Perdera a conta, foram tantas que parou de contar.

Sentia um pouco de inveja daquelas pessoas que diziam: moro nessa casa há vinte, trinta, cinquenta anos, ou até mesmo morar na casa em que nasceu.

Deve ser bom, que sossego, cada coisa em seu lugar. Será? Com certeza em nossas moradas haverá uma gaveta querendo ser aberta e a nos criar desassossego.

Tirou aquelas ideias da cabeça. Precisava ainda arrumar muitas coisas em novas gavetas. Seriam novas?

As casas em que habito

Também em mim habitam

São várias

Como várias sou.

quinta-feira, 29 de julho de 2021

Receitas SBCenses... e boa conversa... e boa música

Reencontrar amiges, fazer e refazer amizades... é muito bom... disso é feita a vida, de bons encontros.

Já que a Flora Gil esteve presente na nossa reunião anterior, começamos essa reunião com troca de receitas:

. Minina, muito boa a sua coalhada, adorei! e, claro, pedi a receita...

. Não! não precisa essa tal de "isca", a "isca" é um yogurte natural. Você compra um "lidileite", integral viu? ferve... aí deixa esfriar... qdo ele estiver morninho, daqueles que a gente bota o dedinho dentro do "lidileite" e conta até cinco e não queima o dedo, entendeu? você joga o yogurte dentro e mexe. Aí você liga o forno e conta até 20... isso mesmo! é só um pouquinho quente. Você enrola aquela vasilha do leite misturado com o yogurte num pano preto que você tiver e coloca lá no forno. Isso tudo você faz a noite viu? no outro dia você tira do forno e abre. Encontrará uma bela coalhada, ou yogurte, ou até mesmo a consistência de um creme de leite, pode ser usado também pra isso.

. Claro que experimentei! e deu certo!!! ficou espetacular!!! Só fiz umas pequenas modificações na "receita": Fervi o leite e tirei um pouquinho para fazer um choconhaque. HUUUMMM. No inverno é uma delícia: leite, chocolate e conhaque. Você não acredita! Quando fui procurar o conhaque, não tinha! tinha cachaça... não hesitei em colocar cachaça em vez de conhaque. Fica ótimo!!! então, bebida nova: CHOCACHA... kkkk. Voltando à receita: você toma a chocacha... devagar... quando estiver terminando o leite vai estar no ponto de morninho pra fazer a mistura. Aí você liga o forno e faz um lanchinho delicioso: pega um pão velho, corta horizontalmente, joga umas gotas de molho de alho, põe encima umas fatias de queijo e joga um orégano encima do queijo. Leva ao forno, rapidinho o queijo derrete. Minina, fica uma delícia, parece uma variação da Bruschetta (em italiano) ou brusqueta (aqui entre nós, no Brasil). Você come essa delícia e, assim que acabar, o forno vai estar "no ponto" de esquentamento necessário. Aí você pega umas blusas de frio pretas que você tem, com certeza... umas duas, amarra na vasilha do leite (que já está misturado com o yogurte), é bom a blusa de frio porque as mangas da blusa ficam fáceis de amarrar... e põe no forno... e vai dormir, porque já está tarde. Minina, no outro dia você terá, de café da manhã, um yogurte maravilhoso! Mel pra quem gosta, misturar com umas frutas cristalizadas fica também uma delícia! ou com banana picadinha... 

E passamos ao nosso repertório musical do dia:

Grande Caetano, super SBCense! Mas ele não é o compositor dessa música, viu? GOOGLE, às vezes, desconhece a história e nos informa erroneamente. "Chuvas de verão" é uma composição de Fernando Lobo, grande pernambucano, feita em 1949. E Fernando Lobo é o pai do conhecido e respeitado Edu Lobo! e "Chuvas de verão" recebeu várias outras gravações, como as de Maysa, Silvio Caldas, Nelson Gonçalves, Waleska, Joyce, e outrxs.

Edu Lobo a direita, Fernando Lobo a esquerda e, provavelmente, um netinho ao centro.

. Ressentimentos passam como vento... ou com o vento... não sei bem... mas trata-se de uma música caminhando para a "libertação", em processo, como tudo na vida. O SBC tem um "conceito" de músicas libertadoras, está no post de 12 de junho de 2018, leiam lá.

. Sim... e nossos ressentimentos tem uma relação direta com as expectativas criadas. SBCence publicou no face e no insta essa semana: "Chega um tempo na vida que a gente aprende que ninguém nos decepciona, nós que colocamos expectativa demais sobre as pessoas. Cada um é o que é e oferece aquilo que tem para oferecer".  Sim... concordo plenamente. E acrescento: somos relacionais... e, muitas vezes, a outra pessoa seduz, nos acena com muito mais a dar para a relação do que ela está disposta. Nem é por má fé, pode ser pela fragmentação entre cabeça e corpo, entre o que ela fala (ou deseja) e o que ela faz. Por exemplo, a fala é sobre a construção, em todos os níveis de relação, de um mundo de relações mais simétricas, mais igualitárias. Porém, ao ocorrer um conflito relacional, a primeira coisa que "bate" é o machismo estrutural. E se ela não está disposta a, permanentemente, rever seu machismo, ela corre o risco de, nessa situação, "inverter sua percepção",  e dizer que não está sendo respeitadx na sua opinião, que está "sofrendo relação abusiva, entre outras coisas. E a pessoa "fica de mal", como na música MARINA, como uma pessoa de 3 anos, que é o caso do inspirador da música, o filho do Caymmi, que tinha 3 anos e gostava de dizer "tô de mal" quando se sentia contrariado. Leiam nossos posts de 8 de de 17 de julho., sobre Marina e Machismos estruturais.  E essa pessoa, um adultx, termina a relação "virtualmente", não alcança a maturidade para o presencial... e ainda diz que "está sempre aberto ao diálogo", isso não seria uma distância enorme entre a fala e a ação? Claro, essa pessoa é tema das conversas SBCenses... até a "libertação". Infantil... imaturo... e sofre muito com isso... e faz sofrer x oxtro.

. E aí percebemos que o inferno é povoado de maniqueísmos, de polarizações. De desumanidades, enfim... "se o outrx não concorda (leia-se "se submete") comigo é meu inimigo. O inferno é feito de inimigos. Dá muito trabalho aprender "superações dialéticas" num movimento relacional. O "senso comum" fica no "quero ser respeitado na minha opinião". O senso comum é maniqueísta, polarizador e autoritário.

. Aprender a dialogar dá trabalho...Viver dá trabalho...

. E fazendo o duplo movimento de compreensão e interpretação do mundo do Particular para o Geral e para o Particular... e vice versa: do Geral para o Particular e para o geral... o SBC faz isso sempre, trata-se de um pressuposto para ampliar nossa compreensão|ação no mundo... uma pessoa das nossas,  super SBCense, citou livro recém lido: 




. Vejam a contracapa, já diz de que se trata. Livro de Francisco Bosco, ensaísta, doutor em teoria da literatura e autor, entre outros livros, de: Banalogias, Orfeu de bicicleta: um pai no século XXI, Alta ajuda. No livro "A vítima tem sempre razão?" ele mostra como a cordialidade, traço constitutivo da nossa identidade brasileira, deu lugar, de uns 10 anos pra cá, ao confronto aberto - e fala sobre as consequências dessa mudança. Segundo ele mesmo, o objetivo fundamental do livro é responder à pergunta: é legítimo agir  "injustamente" (isto é, de forma desequilibrante) em resposta a estruturas de poder que tornam injustas situações experimentadas cotidianamente por minorias? Ele se refere à afirmação crescente dos movimentos identitários, em especial o movimento negro e o movimento feminista,  e seu protagonismo na luta por direitos e reconhecimento. E diz: "Não podemos estabelecer meramente princípios de justiça formal sobre situações de desequilíbrios históricos". 
. E vale a pena falarmos aqui sobre a sua conclusão: ... "é preciso que o conjunto da sociedade tenha consciência quanto à justiça das reivindicações desses movimentos, sempre que se trate de lutas por igualdade. As condições sociais extremamente injustas sob as quais vivemos instauram um campo de possibilidade sujeito a todos os tipos de violência. Enquanto essas condições não forem profundamente modificadas, pedir às pessoas que sofrem graves injustiças cotidianas "ponderação", "civilidade" ... tem algo de inútil, e até de ridículo. Um ganho de consciência em larga escala da justiça dos pleitos identitários contribuirá para que as condições de injustiça social sejam modificadas. É pelo que eles lutam."

Sim... é pelo que lutamos...

E terminamos resgatando Toquinho e Vinícius:



À vida!!!


SantuzaTU










sexta-feira, 23 de julho de 2021

Discutindo nossa linguagem

Sobre nossa postagem anterior: 

Muitos retornos interessantes, muitos diálogos superadores. Nossa querida SBCense Frida Kahlo esteve presente:  "Não quero que pense igual a mim... Quero que pense!!!". 



Assim, vamos construindo visões de nós mesmxs, das relações entre todos os gêneros, construindo uma visão de mundo menos maniqueísta (certo-errado; homem-mulher; deus-capeta; céu-inferno... e tudo mais)... e mais plural, o que, certamente, nos humaniza, pois vamos desconstruindo o terrível conceito enraizado:  "quem não concorda comigo (leia-se "se submete a mim") é meu inimigo"...  e, ao mesmo tempo, vamos construindo (no afeto e na prática) o conceito de adversário. Outro grande SBCense: Guimarães Rosa: "Eu sou quando divirjo".

               

E um retorno que suscitou novas reflexões e novas conversas: "TU, esse negócio de botar o "X" ou o "e" (por exemplo "todes") para definir uma linguagem neutra é muito chato de ler, desnecessário. Grupos, tribos urbanas, têm sua maneira de vestir, de comportar e de falar. São opções pessoais. Misturar questões pessoais com correção ortográfica não é o melhor caminho para a utilização plena da língua."

Daí, agradecendo as considerações do amigo, começamos nossa pesquisa e conversas sobre o tema:

Seria a língua portuguesa machista? 

. Um estudo de Adriano da Gama Kury: "O Machismo na Linguagem: a Concordância Nominal" diz: "... E lá vem a prepotência do masculino: nas enumerações de substantivos de gêneros diversos, mesmo que haja um só do masculino, é nesse gênero que fica, por norma, o adjetivo: "Havia papéis, gravuras, revistas e canetas espalhados sobre a mesa". A concordância com a palavra "caneta" (a caneta: feminina) seria em caso excepcional, fora da regra.

Portanto, gêneros gramaticais são dois: masculino e feminino. Quando sabemos que não existe somente HOMEM e MULHER, Onde estão os outros gêneros? Não deveriam ser contemplados na linguagem?

Embora estar uma frase no masculino não signifique, necessariamente, machismo, buscarmos o feminino e outros gêneros na linguagem demonstra a luta pelo fim do preconceito, contra os estereótipos e pela igualdade. 

. E uma professora de inglês, Lee Weingast, nos diz: "Não digo que seja preciso abolir o gênero de substantivos e adjetivos em português, alterando os fundamentos da língua. Mas é interessante ter consciência do lugar do gênero nas nossas falas e textos. Palavras têm poder, e podem até limitar os estimular sonhos". E ela cita termos, na língua inglesa, já usados para um plural de gêneros, sem especificar qual deles: um grupo de irmãos e irmãs chama-se "siblings". "Parents" é plural de mães e pais. "Cousins" são primos e|ou primas. Há algum tempo já se vê o esforço para combater o machismo na língua inglesa: "policeman" e "fireman" são, agora "police officer" e "firefighter". Assim, meninas já podem sonhar em ser  A policial e  A bombeira, quando crescerem. Assim como A Presidenta, termo antes bastante criticado, agora a própria Academia já aceita.  Então, podemos ver nas redes sociais o movimento para tornar o português escrito menos machista e mais aberto ao leque de gêneros.

Assim, "O SBC é um grupo de amiges querides, que se reúnem para crescermos todxs uns(umas) com os outrxs" (e, quando você escrever outrxs e o seu corretor sublinhar em vermelho para ser corrigido, você, em vez de corrigir, clica em "adicionar ao dicionário"). Tenho a honra de ser co-fundadora desse coletivo (ou melhor, COLETIVI). Também pertenço à COLETIVA INDÔMITAS, mulheres que não se deixam subjugar, que combatem toda forma de opressão dessa sociedade desigual que nós vivemos. E pertenço, também à PARTIDA MG, uma coletiva, um movimento de mulheres pela democracia feminista e antirracista.

. Há os que criticam, dizendo ser desnecessário tal combate ao sexismo na nossa língua. Um argumento interessante é o da origem do português. No latim havia o masculino, o feminino e o neutro. E, na transposição do latim para o português, o masculino passou a "representar" o neutro. Acredito que essa argumentação já contém o seu contraditório. Perguntas: como se deu essa transposição, eliminando-se o neutro? qual seria o sentido do masculino passar a representar o feminino e outros gêneros? Podemos entender aí uma construção ideológica do sistema que conhecemos hoje? 

E mais: na história podemos observar uma evolução da língua: Vossa mercê... vossemecê... vosmecê... você... e, agora, já na escrita, vc. Porque não evoluir para o pronome neutro, resgatando o latim? O que se defende atualmente, o sistema ILE = ele e ela (e outrxs)

. Ampliar nossa visão de mundo, contribuir para a inclusão do sistema ILE... Porque, às vezes, evoluir é resgatar valores perdidos exatamente com o "progresso", a história não é linear. E sobre o "lugar de fala": há, também, xs que acham que essa defesa, em vez de aproximar, distancia as pessoas, em outras palavras as "lutas identitárias" ou "politicas identitárias" podem aumentar a distancia entre as pessoas e as classes. Talvez sim... Talvez não...Penso que podemos pensar, para além do "lugar de fala", no "lugar de escuta", acredito ser o que mais está faltando no nosso mundo: ouvir o que pessoas "diferentes" de nós estão dizendo... pois acredito que o que essas "minorias" (que são maiorias subalternizadas) estão, APENAS, reivindicando RESPEITO às diferenças, inclusão, e, por fim, não querem mais ser representadas pelo masculino, esse pronome que, se dizendo neutro, cumpre o cruel papel de encobrir as diferenças e subalternizar, muitas vezes, ELIMINAR o diferente.

Então: mais uma vez, repetindo o ÓBVIO (que se tenta esconder na nossa sociedade): GÊNERO, RAÇA e CLASSE  estão intimamente interligados no nosso sistema patriarcal, opressor, imperialista, cruel enfim...  Angela Davis nos mostra a necessidade da não hierarquização das opressões, ou seja, o quanto é preciso considerar a intersecção de raça, classe e gênero para possibilitar um novo modelo de sociedade. E nossa grande  SBCense brasileira, Djamila Ribeiro, diz que a Angela Davis traz um potencial revolucionário, e ler sua obra é tarefa essencial para quem pensa um novo modelo de sociedade. E o SBC diz: leiam mais, reflitam mais, conversem mais, não se fechem em "verdades", façam mais perguntas, o perguntar pode ser o início da revolução no jeito de pensar.



Outro grande SBCense pertinente ao nosso assunto: Milton Almeida dos Santos (1926-2001). Geógrafo, escritor, cientista, jornalista, advogado e professor universitário, brasileiro considerado um dos mais renomados intelectuais do século XX.   

Outras frases desse grande autor, que merecem ser citadas:
. "O Brasil jamais teve cidadãos, nós, a classe média, não queremos direitos, nós queremos privilégios, e os pobres não têm direitos, não há, pois, cidadania neste país, nunca houve!"
. "Ser negro no Brasil é, com frequência, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que há um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros."

E, não por acaso, desembocamos na apreciação da nossa linguagem como, também, extremamente racista... e  somos, todxs nós, reprodutores dessa linguagem, no automático e irrefletido, ou seja, na "cultura internalizada". E, sabendo disso, podemos ir modificando nossa linguagem para formas mais inclusivas, mais igualitárias e mais bonitas.











E por aí vão as inúmeras "distorções" do nosso vocabulário colonizado, europeu, que resulta na subalternização, na exclusão e na dominação, na manutenção de privilégios e no uso do poder... enfim... feio e cruel. E, sabendo sobre isso,  podemos, sim, ir alterando nosso vocabulário (e nossa escrita) para que sejamxs mais inclusivxs, justxs e mais esteticamente bonitxs e politicamente corretxs.


Tem uns poucos dias que vi na TV 247 o Florestan Fernandes Jr, grande jornalista, filho do renomado sociólogo brasileiro Florestan Fernandes, pedindo desculpas pois não lhe ocorria outro termo senão "denegrindo", acho que ele estava se referindo ao interesse dos EUA em "denegrir" a imagem de Cuba, para esconder as dificuldades daquele pais, principalmente em função do cruel boicote imposto a ele pelo próprio EUA há mais de 50 anos. E uma pessoa que assistia de maneira participativa mandou a mensagem: só trocar "denegrindo" por "destruindo". 



Me lembrei de Bela Gil, filha do grande Gilberto Gil. Chef de cozinha e apresentadora, procura sempre sugerir trocas de ingredientes para tornar a alimentação mais saudável. Podemos fazer isso também no vocabulário impregnado de sexismos, racismos, preconceitos. 

Então, você pode trocar "clarear" por "elucidar", "criado mudo" por "mesinha de cabeceira"... vai pensando... e substituindo. Tenho a convicção de que nossa visão de mundo pode melhorar muito, se ampliar,  diminuindo nosso etnocentrismo e crescendo mais com a(s)  pessoa(s) que diverge(m) de mim. Nossa relações ficarão mais bonitas, sem dúvida.

Me lembrei, também, de uma interpretação diferente da origem do "pé de moleque": as doceiras costumar colocar os doces quentes nas janelas, para esfriar. Imaginem São Bartolomeu, Lavras Novas, distritos de Ouro Preto, as casas com as janelas baixinhas que dão pra rua e os tabuleiros de doces... huuummm... os moleques passavam, sentiam o cheirinho delicioso, pegavam o docinho e saiam correndo (devia ter, também, molecas fazendo isso, né?)... aí as doceiras gritavam: não pega!!! PEDE MOLEQUE!!!

Para terminar por hoje, quero compartilhar com vocês uma música do Gonzaguinha, gravada por ele lá pelos anos 70, "Pequena memória para um tempo sem memória", regravada mais tarde por Elza Soares. A letra é super atual e pertinente. E tomei a liberdade de repaginá-la, pois ele fala de "obscuros personagens" que são "sementes espalhadas nesse chão" e cita somente homens! As mulheres eram invisibilizadas! Queremos, também, ser protagonistas, falar das lutas que ocorreram naquela época e estávamos presentes e atuantes. E outra coisa super atual: sabe o trecho em que ele diz "... um tempo em que lutar por seu direito, é um defeito que mata"? Então, ele se refere, na música, aos tempos da ditadura militar no Brasil.  Mas podemos pensar, agora, nas inúmeras mulheres, negrxs, LGBTQIA+ que morrem, APENAS por lutar pelo direito de "ser quem queremos ser". 
Ouçam :



E uma última palavra, quase desconhecida: vocês sabem o que é SORORIDADE? a origem da palavra é SOROR, que significa irmã (irmandade entre as mulheres)  ... 
Já a palavra FRATERNIDADE é bastante conhecida não é? pois é: vem de FRATER, que significa irmão (irmandade entre os homens). Pois é: queremos praticar a sororidade (agora adicionada ao dicionário), simples assim...

Abraços soror pra quem é soror e frater pra quem é frater. Carinhosos a todes ... 

Santuza TU


sábado, 17 de julho de 2021

Conversas SBCenses: "O que dá pra rir dá pra chorar"

 

Era mais ou menos previsível que a nossa conversa sobre Marinas, Amélias e Emílias desembocassem  no tema MACHISMOS ESTRUTURAIS

E a conversa foi entremeada por citações de SBCenses de autoras e autores famosos, nossxs condidadxs especiais, que falam sobre o tema, com insights e catarses de mulheres, homens e outros gêneros, sobre o sofrimento e a reprodução (e o sofrimento COM a reprodução) dos machismos diários que vivenciamos.


Margaret Mead, Antropóloga Cultural estadunidense (1901-1978), num dos seus livros "Sexo e Temperamento", de 1935, estudou a vida de três povos primitivos e abriu caminho para a moderna revolução sobre os conceitos tradicionais de feminino e masculino.






Pierre Bourdieu, sociólogo Francês (1903-2002),  elaborou o conceito de Capital simbólico: é o que confere status, honra e prestígio, tratamento diferenciado, privilégios sociais. A soma ou a ausência desses recursos de poder, herdados ou adquiridos, determinará o lugar ocupado por grupos e indivíduos na hierárquica estrutura das sociedades e condicionará seu estilo de vida e suas oportunidades de ascensão. Frase do mesmo, bastante significativa em todos os níveis de relação, do íntimo ao público: "O trabalho do dominador é dividir os dominados"

Dividido em três volumes, História da Virilidade busca retraçar um período esquecido da história. Os livros tratam de virilidade e não de masculinidade, pois segundo os autores, quando se quer fazer a história de estruturas de origem arcaica, definidas pela desigualdade, somente há uma palavra, na nossa língua, que convém, "virilidade".

Os três livros buscam retraçar a história de um apagamento da história... A virilidade é marcada por uma tradição imemorável, não simplesmente o masculino, mas sua natureza é sua parte mais "nobre", senão a mais perfeita. A virilidade é considerada, na história, uma VIRTUDE 



Autorxs: Stéphane Audoin-Rouzeau, Antoine de Baecque, Pascal Ory, Christelle Taraud, Sylvain Venayre, Anne Carol, Arnaud Baubérot, Bruno Nassim Aboudrar, Christine Bard, Christopher E. Forth, Claudine Haroche, Dominique Kalifa, Fabrice Virgili, Tamagn

 


E, muito citada na nossa conversa, foi a Helena Vieira, escritora e transfeminista, seu canal "pausa para o fim do mundo" é tudo de bom, nos ensina muito sobre esses temas tão atuais, assim como seus livros, entre eles:

- História do Movimento LGBT (2018), organizado por James Green e Renna Quinalha 

- Explosão Feminista (2018) - Organizado por Heloísa Buarque de Hollanda 

- Ninguém solta a mão de ninguém (2019) organizado por Tainã Brito.


E outra pessoa que não podemos deixar de citar é a filósofa mexicana transfeminista Sayak Valencia. No seu livro "Capitalismo Gore", lançado em 2010, ela elucida o significado de transfeminismono sentido adotado por Valencia, é um feminismo transversal, interseccional, que inclui todos os outros feminismos e não apenas o feminismo que se dedica à questão da transsexualidade, mas também.

Valência toma o termo gore de um gênero cinematográfico centrado na violência extrema, para descrever a etapa atual do capitalismo em cidades fronteiriças, onde o sangue, os cadáveres, os corpos mutilados e as vidas escravas são ferramentas na reprodução do capital. O lado B da globalização, o lado obscuro da economia global, o contraditório e fora de controle do neoliberalismo é próprio dessas cidades no México, assim como em muitos lugares aqui no Brasil.  E ela caracteriza a violência como uma "nova epistemologia", ou seja, um conjunto de relações que atuam no nosso tempo como práticas discursivas e materiais que se originam no neoliberalismo. Na epistemologia do capitalismo "gore", a violência se instala com um tríplice papel: como ferramenta de mercado altamente eficaz; como meio de sobrevivência alternativo; e como  mecanismo de auto afirmação masculina. "A violência é uma categoria interpretativa transversal às diferentes dimensões de conhecimento e ação, com consequências simbólicas e materiais, pois se converte numa ferramenta de auto afirmação, assim como um meio de sobrevivência". Portanto, o capitalismo gore busca entender como as práticas capitalistas sustentam a violência em todos os níveis de relação, a fim da manutenção do status quo. 

Apresentados xs nossxs convidados especiais (já conversando com elxs, como podem ver), vamos à nossa conversa, com pessoas tão especiais quanto. E, na nossa conversa nenhuma afirmação tem compromisso com uma verdade, digamos, dogmática ou universal. São "considerações intempestivas, como diria nosso grande SBCense Niezsche. Apenas nos servimos de estudiosxs que discorrem sobre o tema, para confrontá-lxs com nossas vivências e reflexões, e amadurecermos trocando experiências. E os comentários, as catarses, as reflexões, não são dirigidas a nenhuma pessoa em especial. São, sim dirigidas a todes nós, a quem se dispuser ao trabalho da reflexão necessária à quebra de padrões aprendidos (e isso exige muito esforço,  e, às vezes, não é sem tristeza) que ensejam o crescimento. E exige também a grande virtude da humildade, tão distorcida (propositalmente) na nossa cultura.  Se na medida em que você for lendo se sentir resistente, não continue... tente refletir, tente escrever, permita que novas ideias te invadam, mesmo que sejam completamente antípodas... exercite a humildade, pois virtudes são aprendidas, e a humildade é a primeira delas, a base de todas as outras ... quem sabe, dialeticamente, criaremos a possibilidade de novas construções para além das nossas referências atuais...

. Já começamos (ou continuamos...) com o comentário: O processo de desempoderamento do homem não acontece  sem reações violentas.  Violência contra xs desempoderadxs,  usada como auto afirmação. Das mais sutis às mais explícitas. 

Quando falta o poder  (quase sempre traduzido no econômico) aparece mais violência. O poder do homem sobre a mulher é naturalizado. Considero que não exista, hoje, possibilidade de relação simétrica, em função do machismo estrutural. 

Quando acontece a simetria (pelo menos do ponto de vista econômico e intelectual) o homem tende a mitificar a mulher (discriminação positiva) e, rapidamente, acha um jeito de desprezar. Sente-se (aqueles sentimentos "inconfessáveis", mas que estão orientando as ações) humilhado|impotente, quando está ocorrendo a simetria. E reage com violência, as mais sutis, "do tamanho de uma patada de elefante" para a mulher que consegue perceber.

. "Ele me ama!? Ele me amava, me admirava... penso numa admiração que anda junto com o amor, e uma outra admiração próxima da mitificação... que (eu sentia) me desumanizava.  Por exemplo, ele dizia “você é uma pessoa completamente resolvida”, será que em nome dessa percepção, ele se colocava como podendo fazer o que  quisesse, toda sorte de reatividades infantis que ele seria “perdoado”, ou "castigado", como faz uma "mãe"?"

. E essa assimetria acontece em todos os níveis de relação. Tenho um exemplo recente da fala de um homem numa situação de seleção para um trabalho: "Éramos quatro concorrentes, eu e mais dois homens e uma mulher, aí ela pegou nossa vaga!".

Os homens se entendem como, naturalmente, merecedores do poder. E isso é tão "inconsciente" que, provavelmente, quase todos eles vão negar. Significa que esse mérito não está no conceito, mas na ação, no automático e irrefletido. 

. Precisamos mencionar que tanto masculino quanto feminino são fenômenos históricos, nada de natureza. Não existe experiência universal da masculinidade, não existe HOMEM nem MULHER. Existem práticas sociais que constituem os sujeitos. Gênero está vinculado a construções sociais, não a características naturais. Se refere a tudo aquilo que foi definido ao longo do tempo e que nossa sociedade entende como papel, função ou comportamento esperado de alguém, com base no seu sexo biológico. E o que foi "estabelecido" na sociedade em que vivemos é que o "sujeito universal neutro" é o Homem; o subalterno é a Mulher; e outros gêneros "menores". Esta é a construção que todes nós recebemos.

. E, acrescentando, Masculinidades são formas diferentes do que se convencionou chamar Homem. Dizendo de outro jeito, são formas de organizar a corporalidade e colocá-la no mundo. O imaginário corporal masculino (o príncipe encantado, Rambo, os "mocinhos" da TV e do cinema) está relacionado a poder, a violência, à dominação, ao sucesso, à competição, ao jogo perde-ganha. Rodrigo Hilbert, por exemplo,  pode ser uma reelaboração do príncipe. E trata-se (as masculinidades) de uma coisa nociva de ser e atuar, para homens e mulheres e outros gêneros, causa dor a todxs, nos violentam, perdemos todxs.

. Numa relação dialógica, quando um tem uma opinião e o outro tem outra, o que se propõe seria buscar a superação  dialética, ou seja, uma elaboração (ou uma construção), uma terceira teoria|opinião que seria diferente das duas anteriores e, ao mesmo tempo, conteriam as mesmas. Porém, essa relação dialógica pressupõe SIMETRIA. E é exatamente isso que não conseguimos, ainda, no nosso mundo machista. O homem, na situação de simetria, sente-se acuado e, reativamente (e "inconscientemente") entra em luta de poder... pois ele foi "educado" por séculos para o lugar de "dominador", ele "nasceu pra isso" a mulher pode não perceber esse jogo de imediato, e também o repete  – e o jogo se transforma em perde-ganha, e desemboca,  ao final, no jogo perde-perde. Ambos perdemos.

. Depoimento de uma mulher: "Sim... percebo isso. O que eu estava tentando era instigá-lo para a construção, e o resultado foi a tragédia... a separação".

. Já ouviram falar de "Novas masculinidades"? e como elas se organizam historicamente? Por exemplo, os "hipsters". Trata-se de uma palavra inglesa usada para descrever um grupo de pessoas com estilo próprio e que habitualmente inventa moda, determinando novas tendências alternativas. 

O termo deriva de “hip”, um adjetivo inglês usado desde a década de 1940 com o significado de “descolado", "inovador". Foi inicialmente ligado à música e ressurgiu nos anos 1990, sendo então associado não apenas à música independente mas a outras formas de expressão artística   (cinema, literatura, design, moda, artes visuais), afinal definindo um estilo de vida alternativo, baseado em padrões estéticos, de consumo e de comportamento não convencionais ou não perfeitamente identificados com a cultura de massa. Acreditem, essas tendências alternativas não necessariamente transformam as práticas sociais de gênero, apenas reproduzem novas formas de dominação, são novas práticas no disco velho. 

. A psicanálise, falando de  como se dá a construção do sentido do EU - o universo psíquico interior -  para os homens, diz que o rompimento edípico está relacionado ao desprezo pela mulher, ao rechaço. Daí me ocorre uma pergunta fundamental: como essas representações interferem nas relações dos homens, desde as relações intimas, família, trabalho e cidadania, todos os níveis de relação,  e podem causar dor e sofrimento?

. Acrescentando a este questionamento: penso que não existe masculinidade saudável ou tóxica: se a sua masculinidade provoca dor, em vc mesmo e|ou no outrx, então ela deve ser revista.

. Já outras pessoas veem o conceito de "masculinidade tóxica"  útil para popularizar os entendimentos sobre como os homens têm construído suas vivências de modo nocivo, e os impactos dessa construção. É um termo mais acessível do que "masculinidade hegemônica". Aos homens é ensinado uma falsa percepção de vantagem no exercício de uma vivência baseada na violência, no individualismo e na ausência de auto reflexão emocional. Ou seja, a masculinidade torna-se incompatível com a vida comunitária e produz prejuízos de diversas ordens aos próprios homens e a não-homens: mulheres, LGBTQIA+, crianças e idosos. 

Mas não podemos perder de vista que a masculinidade, na sua essência, está ligada ao exercício de poder, e não dá para tratá-la apenas pelos seus efeitos tóxicos. Sua construção opera de modo normativo, binário e hierárquico, a partir da interseção de marcadores estruturais de dominação: o racismo, o sexismo, a LGBTQIA+ fobia, as questões de classe, geração e território. Eu confesso que tenho muita precaução, desconfiança mesmo,  com homens que se dizem "machistas em desconstrução". Pois conheço alguns que dizem isso "da boca pra fora", às vezes até para seduzir...  o que as mulheres dizem do "machista de esquerda", tem tudo do "machista de direita", só que é "fofo", "caímos facilmente". Falta o desejo genuíno do trabalho, do esforço necessário para tal empreitada. Do mesmo jeito que temo, também, pessoas (em geral, brancas, ou "embranquecidas") que se dizem não preconceituosas, não racistas. Falta a "consciência possível", o "se ver", admitir que estamos inseridxs nessa sociedade que reproduz essas relações de poder. Ou seja, o primeiro passo para qualquer desconstrução é a humildade de "se ver, humanamente". 

. Já "masculinidade hegemônica" e "dominação masculina" são termos quase sinônimos, no nosso entendimento. O termo "hegemônico" deriva da teoria da hegemonia cultural, do teórico marxista Antonio Gramsci, que analisa as relações de poder entre classes sociais numa sociedade. Assim, no termo "masculinidade hegemônica", o adjetivo "hegemônico" se refere à dinâmica cultural por meio da qual um grupo (no caso, os homens) reivindica e sustenta uma posição dominante em uma hierarquia social. Conceitualmente, a "masculinidade hegemônica" propõe-se explicar - e legitimar - a posição dominante do homem, ou seja, como e por que os homens mantém papéis sociais dominantes sobre as mulheres e outras identidades de gênero que são percebidas como "femininas" em uma determinada sociedade. Daí a semelhança com a "dominação masculina".

. E este "modelo masculino" atinge as "masculinidades subalternas", que se transformam em aliadas do "patriarcado branco hegemônico". Ou seja, trata-se de uma construção interseccional das masculinidades: são diversos discursos (colonialismo, racismo, neoliberalismo, entre outros) que produzem desumanizações. A cooperação entre estes diversos discursos confluem na constituição das distintas formas de ver o mundo, de se expressar e de exercer poder sobre o dominado (ou visto como subalterno, no caso, a mulher).

. E luta de poder é, sem dúvida,  uma característica marcante da Masculinidade Hegemônica (ou Dominação masculina) e outra coisa que precisamos conversar é que as mulheres caem facilmente nessa armadilha.

Depoimento de uma mulher: Sim, eu também, me vejo exercendo a "masculinidade tóxica". Ou seria "feminilidade tóxica"? A gente também entra em luta de poder. Esse "poder sobre", que pressupõe relações assimétricas, o poder de dominação. Já me falaram que existe a possibilidade da construção de uma outra noção de poder, o "poder para", que pressupõe relações simétricas, o poder de construir relações mais bonitas. Será que a gente consegue chegar a construir essa noção de poder? pelo menos começar? no nível micro e macro, "na cama e no mundo", conseguiremos redefinir, resignificar, e praticar outra noção de poder?  

. Me ocorre novamente a imagem (e a estória) de Lilith. Leiam nosso post de 07.março.2016. Liliths, no nosso entendimento, são mulheres auto afirmativas. Nós temos uma matriz feminina dupla: Liliths e Evas, até mesmo não conhecendo  a Lilith. Quando ouvi, pela primeira vez, a história da Litith, fiquei emocionada, foi como se descortinasse uma  visão de mundo, o questionamento de tudo que eu "fui educada para" se contrapondo a uma "força interna" que eu reconhecia agora,   me identifiquei imediatamente com ela.  Eva é a subalterna, a que foi feita da costela de Adão. Lilith é a questionadora do “status quo”; e dos padrões. E os homens têm a matriz única: Adão.  E eles dizem: eu quero dar conta de “Litilhs”. Mas, ao primeiro conflito aberto sobre as “sutilezas do machismo” eles, inteligentemente|burramente,  invertem o jogo e dizem que está sofrendo desrespeito, sofrendo relação abusiva... e, defensivamente, podem até  terminar uma boa relação (até então...), não sem sofrimento, e sim para se manterem “fiéis às suas verdades”... como eles mesmo dizem: “sempre sou eu que termino as relações”.

. Interessante o "inteligentemente|burramente". Falamos da "inteligência emocional" que, de uma maneira simples para compreensão, seria juntar cabeça com coração, com corpo, ou seja, "perceber" suas emoções e aprender a lidar com elas. É preciso pontuar a diferença entre a pessoa que usa da história, da ciência, da filosofia como "teorias abertas", úteis para se conhecer e conhecer o mundo, elas elaboram suas próprias "teorias orientadoras da ação"... e a outra pessoa que usa todo esse conhecimento para reafirmar seus estereótipos, seus machismos...

. Depoimento de uma mulher: Liliths querem, reivindicam, o que elas tem direito. Dizem que o  orgasmo feminino é aprendido. E, quando elas fazem um boquete, elas sentem prazer fazendo! E, quando um “homem sensível” faz um boquete ele se vangloria: olha que boquete perfeito! Querendo ser “incensado”, agradecido por isso, querendo “biscoito”! assim como quando varrem uma casa ou cuidam de um filho: olha como eu varro bem, olha como sou o melhor pai do mundo! 

. Depoimento de um homem: Vocês sabem, eu sei e gosto de cozinhar... então eu me vejo como o melhor cozinheiro do mundo, melhor do que qualquer mulher... mesmo que saiba que elas “nasceram para isso”. Verdade, me falta humildade, entro em competição – luta de poder – a gente confunde humildade com humilhação, com baixa-estima – então, reativamente, assumimos a postura arrogante – o que, reconheço, essa arrogância é naturalizada, faz parte do nosso jeito de ser, temos o “direito” a ela. E mais, conheço alguns amigos que tem o comportamento do “falso humilde”. Lembram do Chapolim? "eu sou perfeito! antes eu não era humilde, mas aprendi a ser... agora eu sou perfeito...

. Lembra, às vezes ao avesso, um comportamento que, na psicologia,  chamamos de  passivo-agressivo: é a expressão indireta de hostilidade, que pode ocorrer por meio de procrastinação, sarcasmo, piadas hostis, teimosia, ressentimento, mal-estar ou falha deliberada ou repetida para realizar tarefas. Ele tem, quase sempre o comportamento de se opor, "dis-por", ele quase nunca "põe". Ele resiste passivamente, igual a um camaleão ("com a cabeça diz que sim, com o rabinho diz que não").  Uma amiga me contou, certa vez, que combinou com o marido, ela faria uma dedetização necessária e ele trocaria um chuveiro estragado. Ele concordou, ela fez a parte dela e esperou uns três meses. E então foi cobrar dele o combinado. E ele lhe respondeu: eu combinei mas não tinha a intenção de fazer. Você é muito autoritária!... foi o início de uma separação...

. E, voltando à Marina, o depoimento de uma mulher: "de uma discussão sobre esta música, ele queria me mostrar como a Marina era libertária, independente, teimosa, se pintava,  mesmo que o homem se aborrecia. E eu queria mostrar para ele que isso não estava contido na letra, pode até ser que existisse algumas Marinas libertárias, mas a música traz um sofrimento para a maioria das mulheres porque resulta na nossa tentativa de ser "do jeito que o outro queria", para sermos amadas. A música contém tanto o estereótipo feminino quanto o masculino, engraçado, ele não falava do perfil do homem dessa música... o relevante da música, no meu entendimento, foi o mal que ela causou para as inúmeras mulheres, no sentido do esforço para o desempenho dos papéis femininos "subalternos", e eu queria mostrar a ele o "lugar de fala", num sentido genuíno desse termo, seríamos NÓS, mulheres, que devíamos falar de nós, ele devia falar do homem da música. 

E isso desencadeou uma luta de poder, uma briga para ver quem tinha razão: eu queria mostrar a ele que, mesmo compreendendo a sua interpretação da Marina, este era meu "lugar de fala" - dizer da repercussão dessa música na vida das mulheres;  e ele entendeu - e se ofendeu - que eu não estava respeitando a sua opinião. É isso, chegamos ao "chumbo trocado não dói"... mas "dói demais!".

. E terminamos cantando a bela música de Billy Blanco, CANTO CHORADO:


... e com a pergunta: existe a possibilidade da construção de um novo conceito de PODER, que possa orientar nosso pensar, sentir e agir, orientar para a construção de relações mais bonitas, mais simétricas, mais prazerosas, em todos os níveis de relação, "na cama e no mundo" ? 
Que autores buscaremos para refletir e discutir sobre isso? e, principalmente, para construirmos na prática...

Abraços a todes.
Santuza TU



 

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Novas conversas: AMÉLIA, EMÍLIA, MARINA

 

“Somente porque me pintei você se zangou... Mas,  nunca, um dia sequer, você me apoiou. Só disse que está tudo errado pra mim... Eu digo e repito comigo: agora é o fim. Aborreceu-se, se zangou e não quis perdoar. E ainda diz por aí que eu não arranjo outro igual. Mas eu arranjei um melhor. Que disse: se pinte a vontade. E, agora, só resta dizer que você já vai tarde.” (depoimento de  SBCense que se diz Marina empoderada, metida).

E nesse rumo caminharam as nossas conversas: 

. Em quase todas as sociedades, de todos os tempos, o homem macho depositou sua autoridade sobre as mulheres. Por meio da opressão, eles conquistaram o direito – culturalmente legitimado – de exercerem a supremacia masculina e promover as desigualdades de gênero, de confinar as mulheres nos espaços pri­vados, lugar essencialmente marcado pela “violência simbólica” a que fomos (nós, mulheres) – e ainda somos – submetidas, e, sobretudo, criar subsí­dios para que se propagasse um modelo de educa­ção "androcêntrica", machista,  que, de alguma forma todxs nós reproduzimos. Lendo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, formulei essa ideia para conversarmos.

 


. Continuando nossa ideia,  temos, em cada momento histórico, um esquema de representação das mulheres por meio da cultura e das artes, que reafirmam, de diferentes maneiras, a inferioridade de tudo o que está relacionado à ideia de “feminino”.

 . A partir da ascensão da burguesia e do aparecimento da sociedade industrial e do capitalismo é que vemos o confinamento da mulher à esfera doméstica – casa, marido, filhos –, incluindo-se aí um novo conceito de maternidade e todas as consequências dele decorrentes. E isso foi considerado um fato natural até bem pouco tempo atrás, 50, 60, 70 anos,  quando começou a ser questionado pelos movimentos feministas.

 . Porém, embora o confinamento das mulheres nos espaços privados sejam produtos da burguesia ocidental, podemos ir muito atrás na história, para perceber e entender como a mulher foi sendo concebida, e como as artes em geral contribuíram para a construção dessa imagem. 

Conhecemos, na cultura grega, mulheres transgressoras (Jocasta, Medéia, Antígona,...), quase sempre consideradas tiranas, perversas, dissimuladas, e todas com final trágico, de certa maneira, justificando atitudes transgressoras como impróprias para um sexo subalterno e para aquele tempo. E nos perguntamos se ainda não é um tanto assim...                                                                                         

 


 





. Vamos nos lembrar do raciocínio manique­ísta relacionado à mulher: boa ou má, anjo ou demônio, bela ou bruxa, entre outras dicotomias disseminadas no imaginário social, que passam a se proliferar logo no princípio da era cristã, momento em que surge o mito bíblico da Eva, em contraposição à figura da Ave Maria. As mulheres ideais, as virgens, se aproximam da “Virgem Maria” e as mulheres não castas se identificam com Eva. Havia, por outro lado, a possibilidade de uma mulher considerada pecadora arrepender-se de seus atos contrários aos preceitos religiosos. Desse modo, recusaria os prazeres voluntariamente, como forma de purificação.

 

 


. Lilith, a lua negra, está relacionada às bruxas da Idade Média. 

. Escrevemos sobre ela, vejam nosso post de 07 de março de 2016.

 


. A partir do século XV, no apogeu da Idade Média, o comportamento imposto e esperado das mulheres se alinhava à ideologia burguesa e ao con­ceito de matrimônio. Com as influências do período romântico, o próprio romantismo começa a ser usado como instrumento cultural para impedir a mulher de conhecer sua verdadeira condição de sexo oprimido. Maria Lucia Rocha Coutinho tem um livro muito bom, "Tecendo por trás dos panos":

 


 . As obras do Romantis­mo brasileiro são exemplares no sentido de dissemi­nar uma imagem feminina ligada quase sempre à fra­gilidade, ao silenciamento, e mostrarem, sobretudo, como somos educadas para o casamento.

Bourdieu, em A dominação masculina (2007), diz que, para as mulheres, um univer­so restrito seria suficiente para suas principais funções: casar, dar à luz e cuidar dos filhos e do marido, para que este pudesse ven­der sua mão-de-obra ou explorar trabalhadores em suas fábricas e indústrias. 


. E estes lugares definidos culturalmente para as mulheres perpetuaram-se no imaginário da população brasileira, e temos a arte,  de uma maneira geral, e a música, particularmente, para reforçar os estereótipos, de certo modo, "moldar as matrizes femininas", como também as masculinas,  de modo que,  atualmente,  ainda é pos­sível, e não incomum,  perceber, nas atitudes masculinas, de uma maneira às vezes sutil, às vezes escancarada, "resquícios" do desejo de dominação. Por isso foi muito importante e revelador essa perspectiva histórica e esses autores tão importantes na nossa conversa.

Chegamos, então, ao século XX... E ao samba... e "como" o lugar da mulher era colocado pelos sambistas homens. E voltamos aos três sambas apresentados no nosso post do dia 03 de junho 2021:

                AMÉLIA... EMÍLIA... e MARINA

Na década de 40 e 50 tínhamos o rádio como principal veículo de comunicação, a TV estava começando. Nessa época é que, também, começou um tipo de produção de músicas para "consumo imediato", e as letras dessas músicas estão propensas a refletir um universo do senso comum e repro­duzir uma ideologia não consistente ou, no mínimo, que agrade a determinado público ou que apenas reproduza os valores vigentes na sociedade da época. Então, esses três sambas são composições de uma década em que o rádio exercia importante papel na vida dos/as brasileiros/as. 

  • Em AMÉLIA, na primeira estrofe, temos a construção do estereótipo de uma mulher exigente, inconsciente, déspota, ambiciosa, entre outros adje­tivos. O homem é colocado como  vítima no relacionamento e a mulher é revestida da condi­ção de megera e, ainda, fútil. "Se em princípio é possível fazer uma leitura dessa imagem feminina como uma ruptura com o padrão de mulher idealizada, logo se desmancha essa ideia com o retorno ao status quo no momento em que o interlocutor promove a inferioridade dessa mulher". Não temos aí o conceito maniqueísta: Eva-Maria, puta-pura? Até mesmo o resgate da mulher na cultura grega? Compartilhando, na nossa conversa, ideias muito produtivas de texto de duas autoras: Mirele Carolina Werneque Jacomel e Cristian Pagoto "O STATUS QUO FEMININO NO SAMBA DE AUTORIA MASCULINA".
  • Já a EMÍLIA, fantasiada pelo compositor, não seria apenas uma mão-de-obra a seu serviço? Isso se comprova com o fato de não haver mencionado no texto qual­quer sentimento relacionado a amor ou, no mínimo, o compa­nheirismo por parte dele.
  • E a música MARINA conta a história de um homem fragilizado diante da força sedutora da sua mulher, que se vê no direito "natural" de controlá-la pelo "emburramento". Ficou de mal, como uma criança de três anos.

. Enfim, três mulheres idealizadas... como na ideologia do "amor romântico". E, da idealização para o desprezo, é um "pulinho de nada". Falta, na verdade, a condição HUMANA de admiração.

. E não podemos esquecer, também, dos danos causados às mulheres da segunda metade do século passado... E, ainda, nas mulheres contemporâneas... do sofrimento que todas nós tivemos na "incorporação" das Marinas, Emílias e Amélias, como o depoimento da mulher que ensejou nossas conversas, nosso post de 3 de junho passado.

. E a representação de estereótipos femininos em músicas populares tende a repetir o esquema binário idealizada-desprezada, boa-má, puta-pura. E nós, expectadores-ouvintes, nos tornamos “co-autores” das músicas, compartilhando ideologias, a partir do momento em que “consumimos” as músicas. Penso que a música é uma das re­presentações artísticas que mais se aproximam de seu público, e tal repercussão se transforma em um mecanismo depositário das ideologias que estão nas letras.

. A arte forma... e|ou deforma...

Por isso temos, também, as músicas que chamamos de "libertadoras", principalmente da segunda metade do século passado, e até os nossos tempos.

E, então, cantamos duas delas como exemplo:

Desconstruindo Amélia, canção de Pitty

Já é tarde, tudo está certo
Cada coisa posta em seu lugar
Filho dorme ela arruma o uniforme
Tudo pronto pra quando despertar
O ensejo a fez tão prendada
Ela foi educada pra cuidar e servir
De costume esquecia-se dela
Sempre a última a sair

Disfarça e segue em frente
Todo dia até cansar
E eis que de repente ela resolve então mudar
Vira a mesa
Assume o jogo
Faz questão de se cuidar
Nem serva, nem objeto
Já não quer ser o outro
Hoje ela é o também

A despeito de tanto mestrado
Ganha menos que o namorado
E não entende porque
Tem talento de equilibrista
Ela é muita se você quer saber
Hoje aos 30 é melhor que aos 18
Nem Balzac poderia prever
Depois do lar, do trabalho e dos filhos
Ainda vai pra nigth ferver

Disfarça e segue em frente
Todo dia até cansar
E eis que de repente ela resolve então mudar
Vira a mesa
Assume o jogo
Faz questão de se cuidar
Nem serva, nem objeto
Já não quer ser o outro
Hoje ela é o também

Disfarça e segue em frente

Todo dia até cansar
E eis que de repente ela resolve então mudar
Vira a mesa
Assume o jogo
Faz questão de se cuidar
Nem serva, nem objeto
Já não quer ser o outro
Hoje ela é o também

 


Triste, Louca ou Má,

Banda Francisco, El Hombre

 Triste, louca ou má

Será qualificada
Ela quem recusar
Seguir receita tal

A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina

Só mesmo, rejeita
Bem conhecida receita
Quem não sem dores
Aceita que tudo deve mudar

Que um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar

Um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define (você é seu próprio lar)

Ela desatinou, desatou nós
Vai viver só
Ela desatinou, desatou nós
Vai viver só

Eu não me vejo na palavra

Fêmea, alvo de caça

Conformada vítima

Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar

E um homem não me define
Minha casa não me define
Minha carne não me define
Eu sou meu próprio lar

E o homem não me define
Minha casa…


E, ainda, conversamos sobre o funk:

. Tem semelhança com o que era incipiente na época dos nossos três sambas: o que pode ser identificado como a "arte para consumo", que reproduz os valores que permeiam uma época, diferente da arte enquanto transformadora, enquanto construtora de sujeitos, cidadãos, pessoas que refletem e atuam no mundo enquanto libertárias. Algumas pessoas veem nas letras do funk  exemplos nesse sentido: são fabrica­das em série, saem rapidamente de circulação e ba­nalizam o sexo feminino e o relacionamento amoro­so.

 . Mas, também, podemos pensar de outro jeito, para além dessa generalização: assim como o samba, na primeira metade do século passado, era visto com "maus olhos" por uma classe social mais favorecida, e somente mais tarde foi absorvido, também o funk, agora, é visto como "marginal"... Mas podemos ver no funk a reprodução o "amor romântico", o lugar da mulher, incensada ou desprezada, puta ou pura,  assim como vemos músicas "libertadoras" nesse gênero musical.

. E o mesmo acontece nas músicas sertanejas, na MPB e no POP... observem...

 

. E concluímos citando mais uma vez o texto "O STATUS QUO FEMININO NO SAMBA DE AUTORIA MASCULINA" das duas autoras: Mirele Carolina Werneque Jacomel e Cristian Pagoto:

"... os dife­rentes modos de expressão nas artes, na literatura, nas canções populares, enfim, são veículos de comu­nicação moldados pela ideologia de cada grupo his­toricamente constituído. É com essa percepção que se deve olhar para a cultura das sociedades como algo enraizado em seu passado." 

. Portanto, discutimos que o sexismo presente, até hoje, nas relações de gênero, é resultado de uma história mais ampla, que contempla o início das civilizações, que passa por outras instân­cias como a religião, a política, a economia, a cul­tura e a arte, entre outras coisas. E pode (ou não) contribuir para a proliferação das desigualdades entre homens e mulheres. 

. Cabe a todxs nós, enfim, desnudar e problematizar, em nossa cultura,  as representações que provocam o retorno a qualquer coisa que possa significar o "lugar da mulher",  de inferiorida­de, de subalternidade, do íntimo e de tudo que represente "padrões" que nos oprimem, assim como de qualquer outro indivíduo que não corresponda aos padrões instituídos pelo pensamen­to patriarcal. A começar por nós mesmxs, porque, acreditem, isso acontece de uma forma invisível, muito difícil de perceber. 

À luta!!!

SantuzaTU