segunda-feira, 8 de julho de 2013

SOU MUITAS, DE UMA DELAS VOCÊ VAI GOSTAR...




Tirei do baú da memória a frase, que talvez tenha visto em algum face, para o título deste post. Poderia ser também "Ser diferente é o que nos torna todos iguais", todas duas transmitem a essência do que é ser queer.

Eu sou queer, você é queer, somos queer, o SBC é queer... todo mundo deveria ser queer, o mundo seria muito mais bonito.

Vou explicar, ou melhor, compartilhar com vocês minhas pesquisas e reflexões sobre o assunto.

Há mais ou menos um mês fui convidada para um debate sobre a questão do gênero. Fui. Minha expectativa era ouvir mais uma vez sobre o gênero feminino, nossas conquistas e nossas dificuldades ainda nesta época, como por exemplo essa lei absurda sobre o nascituro, que, na nossa opinião, transforma a mulher num mero depósito de feto, uma lei que nos tira qualquer direito a escolher, que obriga a mulher estuprada a gestar e parir um filho, que retrocesso meu deus!... ai, tira deus disso, isso é dos seres humanos, o que se faz em nome dele, atrocidades, injustiças...

Voltando ao debate, cada um tinha 15 minutos para falar, e aí a primeira era a que ia falar sobre a questão da mulher, não falou nem cinco minutos, não ocupou o espaço pertinente. Pena... não, meu sentimento foi de indignação... continuando vocês vão saber porque... outras pessoas ocuparam o espaço e colocaram muito bem a questão de gênero... nem masculino, nem feminino, LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis). Enquanto isso eu pensando numa idéia de uma feminista francesa, não me lembro o nome, que dizia, talvez final do século passado ou início deste, que nós, mulheres, no que diz respeito à luta feminina para ocupar espaços dignos nesse mundo, estamos mais atrasadas do que os deficientes que, em vez de tentarem construir outro mundo, estão reivindicando (e conseguindo) espaços neste mundo, como rampas, melhores acessos, e por aí vai.

E, numa certa altura do debate, uma pessoa diz esta palavra: queer... o que será isso? Nunca tinha ouvido!!! Perguntei às minha amigas super politizadas, elas também não sabiam. Ignorar não pecado, ficar na ignorância por vergonha de perguntar é pecado. Perguntar é sabedoria... eu não sabia o que é nascituro! Não é uma palavra usual... todo SBCense sabe?

 

O que fiz, então... Comecei uma pesquisa. Ai, que bom o Google, todas as informações, a formação (de opinião) é de responsabilidade (e trabalho, reflexão) nossa. Digitei Queer... aí só aparece um seriado inglês da década de 90 que depois foi copiado pelos EUA, o inglês é muito melhor... recomendo... trata-se de seriado sobre a cultura LGBT, sobre as dificuldades e gostosuras em ser anômalo, esta é a tradução de queer. Anômalo quer dizer diferente, que foge as regras normais. Que apresenta anomalia, irregular, anormal, disforme. Sinônimos: anormal, diferente, abnormal, aberrativo, irregular, abnorme, extravagante, aberrante, aberratório. Antônimos: normal, regular. Affff, nem quero ser normal, regular, é chato, sem graça, quando não é pouco saudável, “não é sinal de saúde estar ajustado a uma sociedade profundamente doente” como diz Krishnamurti.

Mas não fiquei satisfeita com a pesquisa. Então me lembrei que alguém disse no debate ... teoria queer, aí fui no Google de novo e digitei “teoria queer” ... aí foi o céu... encontrei o que procurava.

A seguir a “sequência da minha pesquisa”, já respondendo às minhas perplexidades e interrogações.Façam também as suas e mandem pro nosso blog, tá?   
             

Foi na década de 1960 que a sociologia e a antropologia passaram  a explorar a sexualidade sob uma perspectiva que colocava em xeque a moral vigente. Margaret Mead publicou o célebre ensaio Sex and Temperament in Three Primitive Societies (título em inglês, pode ser traduzido como Sexo e temperamento em três sociedades primitivas), nas quais a divisão sexual do trabalho e as estruturas de parentesco eram analisadas para explicar os diferentes papéis do gênero nas etnias arapesh, mundugumor e tchambouli. Pasmem, Margaret Mead era minha leitura da época de faculdade, eu entendia pouco mas lia, e ficou um pouco no subconsciente, talvez, prá servir de base na minha formação (ou tomada de consciência).  Este estudo proporcionou importante material empírico para questionar a rígida diferenciação entre personagens "femininos" e "masculinos", documentando culturas em que homens e mulheres dividiam entre si práticas consideradas exclusivamente masculinas no Ocidente (como a guerra) ou outras em que a distribuição das tarefas domésticas eram exatamente opostas às ocidentais. As suas descrições dos varões tchambouli, excluídos das tarefas práticas e administrativas e a quem eram reservados os costumes da maquiagem e do embelezamento pessoal, foram recebidos com escândalo pela sociedade da época, da mesma forma que a desmistificação da pureza feminina através do estudo das práticas sexuais infantis e adolescentes dos arapesh.

Viram esse “resumo”!!! e, acreditem, ela foi uma das inspiradoras do movimento feminista, assim como também uma base para a teoria queer. Oficialmente queer theory (em inglês), é uma teoria sobre o gênero que afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos são o resultado de um constructo social e que, portanto, não existem papéis sexuais essencial ou biologicamente inscritos na natureza humana, antes formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. Durante muito tempo, queer funcionou como xingamento para sujeitos homossexuais. Entretanto, num movimento de pegar as armas do inimigo para atacá-lo, o movimento gay e lésbico assumiu esta palavra para se definir ainda como esquisito, estranho, excêntrico, mas, principalmente, para representar “a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada”. A firme determinação de perturbar e transgredir está no cerne da política queer, surgida na década de 90 do século passado, meio que apropriando do movimento já realizado desde anos 60 pelas mulheres.

A ação subversiva e a transgressão das fronteiras de gênero e de sexualidade são alguns dos principais elementos que permeiam a Teoria Queer. No artigo Uma política pós-identitária para a Educação, Guacira Lopes Louro apresenta os pontos centrais dessa teoria, estabelecendo conexões com a Educação, seu campo de atuação. Por meio de breve historicização da homossexualidade, do sujeito homossexual e dos movimentos sociais voltados para os interesses desses grupos, a autora narra o processo de construção das políticas de identidade e nos conduz aos fundamentos da Teoria Queer. A teoria queer recusa a classificação dos indivíduos em categorias universais como "homossexual", "heterossexual", "homem" ou "mulher", sustentando que estas escondem um número enorme de variações culturais, nenhuma das quais seria mais "fundamental" ou "natural" que as outras. Contra o conceito clássico de gênero, que distinguia o "heterossexual" socialmente aceito (em inglês straight) do "anômalo" (queer), a teoria queer afirma que todas as identidades sociais são igualmente anômalas.
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Outros autores são importantes para a fundamentação da teoria queer. Mas a grande influência neste campo foi a monumental História da Sexualidade, que Michel Foucault deixou inacabada quando morreu (em 1984, aos 57 anos, de AIDS), na qual se tratam criticamente hipóteses muito extensas sobre os impulsos sexuais, como a distinção entre a suposta liberdade concedida ao desejo no estado natural e a opressão sexual exercida nas civilizações avançadas. Eu conhecia Foucault pela História da Loucura (“A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia”, “De homem a homem verdadeiro, o caminho passa pelo homem louco”), mas dá prá entender como todo seu pensamento passa pelo entendimento de como somos “formados” (ou “deformados”), e como podemos (devemos...) ser sujeitos (de nós mesmos e de um mundo mais bonito).

Quando ele fala sobre educação... (“Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”); do nosso olhar sobre as relações de poder, sobre a história... “é preciso cavar para mostrar como as coisas foram historicamente contingentes, por tal ou qual razão inteligíveis, mas não necessárias. É preciso fazer aparecer o inteligível sob o fundo da vacuidade e negar uma necessidade; e pensar o que existe está longe de preencher todos os espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que se pode jogar e como inventar um jogo?”..."Não há relação de poder sem constituição correlativa de um campo de conhecimento, ou que não pressupõe e constitui, ao mesmo tempo relações de poder … Estes relatórios de "poder-saber" não estão a ser analisados a partir de um conhecimento sobre o que seria livre ou não do sistema de poder, mas em vez disso, devemos considerar que o sujeito sabe, os objetos são como os efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber… ";  E sobre nós mesmos... “Precisamos resolver nossos monstros secretos, nossas feridas clandestinas, nossa insanidade oculta. Não podemos nunca esquecer que os sonhos, a motivação, o desejo de ser livre nos ajudam a superar esses monstros, vencê-los e utilizá-los como servos da nossa inteligência. Não tenha medo da dor, tenha medo de não enfrentá-la, criticá-la, usá-la”. ..."Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir."

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E agora, entenderam profundamente que "ser diferente é o que nos torna todos iguais." Que diferente não é desigual, a diferença não pode ser patologizada, mesmo porque é a diversidade que é a nossa riqueza, de sermos humanos. Então, não existe uma forma “normal” de ser, de relacionar, que se contraponha a outras consideradas anormais, e nem as consideradas “anormais” poderiam ser inadequadas ou prejudiciais, como sugerem os moralistas de plantão... é queer a pessoa (homem, mulher, homo,...) que grita contra qualquer forma de submissão a todo modelo pronto, nos vários níveis de relação (íntimo, pessoal, social,  público). Afinal, ... “porque há o direito ao grito, então eu grito”, como diz nossa SBCense famosa  C. Lispector; é queer toda pessoa que deseja , e trabalha,  para ser cada vez um pouco mais livre para, apenas, ser... é queer a pessoa que é capaz de se ver repetindo modelos prontos, que já não servem para a vida, e consegue rir de si mesma e, rindo, se libera para retomar seu rumo, pois o riso é libertador... é queer o homem que se permite chorar... é queer a mulher que se permite ter prazer... é queer a amizade, os bons encontros... é queer a luta pelo empoderamento.

E, por fim, amar é super queer!!!

Beijos e queijos...

SantuzaTU





terça-feira, 2 de julho de 2013

PROIBIDO ASFIXIAR CATARZES

LOH, nosso famoso sbcense, obrigada pela ótima metáfora... super valeu!!! SantuzaTU

MOVIMENTO
Por Lourenço Cardoso

“E no Brasil, Mr. Robinson, podemos fazer o mesmo?” Numa sala envidraçada do quadragésimo segundo andar do edifício Future Market, no centro de Manhatan, dois homens de terno escuro conversavam. Banhados pela luz alaranjada brilhante do sol, iniciando o ocaso, comemoravam os recentes acontecimentos ocorridos na Turquia. “Com essa nova forma de agir, nem precisamos mais de forças armadas”. A afirmação em tom jocoso veio acompanhada de uma desproporcional gargalhada, que fez tilintar o gelo no copo já meio vazio de um caríssimo scotch. “Deveríamos reivindicar metade do orçamento deles”, em meio a outra risada também maior do que o chiste permitia. Estavam bêbados, não somente devido ao consumo da bebida, mas principalmente pelo sucesso na empreitada que, enfim, produzia seus resultados. Há menos de três anos, eram simples funcionários burocráticos de um projeto secundário de intervenção política externa da poderosa Fundação Phorda. Jovens, recém saídos da prestigiosa escola Varhard, usavam boa parte de seu tempo de estudantes trocando conversas pueris no facilbook. Devido ao contato intenso com esse programa de comunicação e a seus históricos pessoais de participação nas chicanas entre os estudantes, desenvolveram um projeto estudantil de utilização do facilbook como instrumento de disseminação de boatos, que poderia ser econômica ou politicamente aproveitado. Para sua surpresa, foram contatados por aquela afamada instituição para ali desenvolverem seu projeto. Entraram na fundação como estagiários e ficaram em uma sala pequena, desenvolvendo mais a técnica de fazer aviõezinhos de papel que o projeto que os havia levado até aquele lugar. Num belo dia coberto por densas nuvens prenunciadoras de nevasca, receberam, naquela época, um ofício assinado por um certo ‘comandante top secret’ com orientações para utilizar o mecanismo de difusão de boatos e mentiras na desestabilização de um determinado governo de um país árabe. Junto com o documento vieram alguns pen drives abarrotados de endereços de cidadãos daquele país, alguns deles influentes, e até governantes. Em meio a esses dados, uma lista com informações pessoais e políticas de determinados políticos mais influentes. Ali estavam os meios; o objetivo era desestabilizar o governo daquele país.

Foi fácil; apenas ampliaram as técnicas que utilizavam na escola para destruir os colegas, principalmente as colegas que os desprezavam. Em pouco tempo, viram pela televisão multidões enfurecidas derrubando governos. Nem imaginavam ― não era parte dos seus trabalhos ― a situação social do país onde atuaram. Não sabiam que os atingidos eram governantes opressores já odiados pelos seus cidadãos. Creditaram a si, com a empáfia de jovens detentores do “destino manifesto” (que nem de longe cogitavam saber o que é), a causa suficiente das transformações naqueles distantes países. Receberam congratulações, uma sala maior e um punhado de estagiários para trabalhar sob seu comando em pequenas salas contíguas. A ‘operação Winn-ter’ continuaria; seria conhecida como primavera árabe.

Foram designados, pela mesma forma invisível do comandante top secret, para atuar na contrainformação (apelido dado às suas atividades) na Turquia. Mais sucesso; a sala que usavam havia chegado ao máximo: tinha cortinas, sol e geladeira. Já recebiam o tratamento de “Mr.” pelos outros trabalhadores do local. Seus devaneios chegaram ao provável chairman do Instituto. E alí estavam em buliçosa comemoração. Havia chegado para eles uma nova atribuição, os mesmos dados, principalmente de alguns dirigentes. Agora muito, muito mais endereços, milhões deles. Agiriam no país com a maior participação proporcional em redes sociais eletrônicas do mundo. Deveriam apenas preparar tudo, os novos e potentes computadores, a equipe ampliada; lançar todos os dados e elementos nos programas que, no momento exato (receberiam o comando), deveriam deflagrar a ação. Foi quando ainda em plena comemoração pelo sucesso na Turquia, um deles verbalizou:

“E no Brasil Mr. Robinson, podemos fazer o mesmo?”

Pouco depois receberam dados de uma pequena atividade de enfrentamento político que ocorria no mais importante estado daquele país. Um grupo ligado a um micro partido de extrema esquerda havia chamado uma passeata contra o aumento de preços das passagens do transporte público da maior cidade do estado mais poderoso do país. Era o momento esperado; receberam a ordem imediatamente: “Soltem os cachorros!” Era a senha para deflagração do movimento. Colocaram as baterias em ação; os comunicados eletrônicos certos, ainda em número reduzido, mas capazes de dar uma boa ampliada no protesto, foram disparados.

Estava maravilhoso o protesto, para surpresa de seus organizadores; havia quase cinco mil pessoas participando. As lideranças do movimento ligadas ao pequeno partido de esquerda, o Partido dos Super Trabalhadores Revolucionários Urbanos, PSTRU, esperavam otimistas que partissipassem, talvez, mil pessoas. Sequer deram importância ou estranharam a presença maciça de jovens mais bem vestidos que os tradicionais estudantes ligados aos movimentos sociais. O belo espetáculo proporcionado por aquela imensidão de gente com seus dentes brilhantes e roupas esvoaçantes, cuidadosamente escolhidas nas melhores boutiques, dava um colorido especial ao manifesto que fervilhava na boca da noite. Vibravam todas entoando palavras de ordem quando o previsto aconteceu. O governador do estado, Beraldo Alcemim, conhecido como Beraldo all for me, chamou a polícia que desceu o porrete.

Mesmo sem saber da participação da “operação winn-ter” a grande imprensa divulgou com estardalhaço o conflito. De uma cajadada só conseguiram incomodar seu arqui-inimigo do Partido Popular do Obreiro, o PaPudO, e culpar os baderneiros dos irritantes micropartidos de esquerda, o PSTRU e o Partido da Luta Unida Altaneira, o PLUA. A extrema violência policial foi transformada em legítima defesa da ordem e a brutalidade do ato, cuidadosamente editada pela mídia, culpou os extremistas. As empresas de comunicação inundaram de informações tendenciosas seus jornais e editoriais travestidos de comentários. Tudo exatamente como previsto.

Ainda como previsto, os líderes do movimento de protesto chamaram uma nova passeata para três dias depois. Foram dias frenéticos na ampla sala dos jovens bem-sucedidos, pesquisadores da Fundação Phorda.

Chegada a hora marcada para o novo protesto, oh maravilha!, aos poucos foram se juntando milhares de pessoas. Rapidamente eram dez mil; daí há pouco vinte mil, trinta; cinquenta mil pessoas ou mais estavam ali em manifesto. De diferente, além da novamente surpreendente quantidade de gente com suas aparências bonitinhas, grupos de rapazes “bombados” com suas namoradinhas à tiracolo com atitudes fascistas de agressão e repúdio aos partidos e organizações políticas. Outra mudança significativa foi nos cartazes e faixas apresentando reivindicações. Se o primeiro ato continha alusões ao preço da passagem dos ônibus urbanos e similares, às quais se somavam a algumas que atingiam os governos, principalmente os ocupados pelo PaPudO; agora ganhava novos textos. Contendo agora demandas genéricas contra “a corrupção”, contra “os políticos”, contra “os governos”. Somadas, deixavam uma mensagem clara: eram contra o estado, ainda que em um país que vive o mais significativo e constante momento de normalidade democrática de sua história.

Não demorou muito e as cenas de violência e despreparo policial se repetiram. A reação às agressões da tropa dessa vez foi mais forte. Houve maiores depredações, fogo e sangue. Alguns funcionários da mídia tradicional foram feridos pelas forças do estado sem maior gravidade. Mesmo assim essa mídia culpou furiosamente os baderneiros que prejudicavam “o povo”. Novamente, todo o estardalhaço com cenas cuidadosamente editadas, apresentando à exaustão os episódios violentos. Apenas condenavam, com alguma relevância, o descabido ataque à imprensa. O ataque aos manifestantes continuou elogiado. Contraditória e curiosamente, ainda elegeram como os heróis da manifestação aqueles que, em atitude similar ao fascismo, agrediram os “políticos” que levaram bandeiras de seus partidos e movimentos. Exatamente aqueles mais exaltados, em sua maioria frequentadores de academias, com torsos exagerados e cabelos à escovinha.

Em outra frente, marcou-se para a capital do estado, que é considerado o mais conservador da nação, um novo protesto. Digo “marcou-se” porque ninguém sabe quem liderou esse movimento. E, me permitam, a partir desse momento vou passar a narrar os fatos com os olhos de quem esteve nessa cidade, na crença de que os acontecimentos dali são o exemplo dos acontecimentos nas outras cidades.

O principal grupo de articulação do protesto via facilbook intitulou-se Primavera Brasileira. Sua criadora, autonominada Maria Clara, uma figura facilbooqueana sem expressão, em reduzidíssimo tempo tinha como membros do grupo centenas de milhares de pessoas. A chamada foi atendida e, em algo próximo de três dias, aconteceu o primeiro protesto na capital do estado, a terceira mais importante do país. Algo em torno de trinta mil pessoas participou do movimento. Repetiram-se os acontecimentos ocorridos na principal cidade do país. O mesmo tipo de presença, incluindo os heróis antipartidários eleitos pela mídia tradicional e, por fim, a polícia agredindo brutalmente os manifestantes. A partir desse momento, a pauta da imprensa foi tomada pelos acontecimentos relativos às passeatas. Ênfase na violência e crítica às depredações e outros atos violentos com aprovação absoluta das ações policiais e discreta repreensão ao ataque a jornalistas.

Enquanto isso, fervilhava intensamente o facilbook. Milhões de pessoas debatiam os acontecimentos. Devido ao histórico da mídia tradicional de não publicar as informações importantes que poderiam fortalecer a esquerda ou ao governo popular, os militantes dos movimentos sociais, revolucionários, e dos partidos de esquerda, incluindo o PaPudO, utilizavam como instrumento fundamental de comunicação o facilbook. Com ele implementaram imediatamente uma rede que desmascarava e desmentia a mídia tradicional, ao mesmo tempo que discutia a realidade do movimento. Os militantes do PaPudO se dividiram entre o apoio incondicional às manifestações e um distanciamento prudente, tendo em vista serem os seus governos os alvos claros do movimento. Aqueles que apoiavam se embasavam no fato de que seria a esquerda quem deveria estar na ponta de lança dos protestos, já que as bandeiras aglutinadoras dos protestos apontavam para as propostas sempre defendidas por ela, que os golpistas apenas se aperceberam da revolta contra uma opressão antiga para tentar transformar essa revolta ancestral em movimento contra os governos populares. Entendiam que não se poderia desprezar um movimento que punha nas ruas centenas de milhares de pessoas e que já apontava para um participação de milhões que, ao contrário, deveriam estar junto ao movimento para auxiliar no apontamento de rumos corretos para ele. Os militantes que se mantinham distanciados, percebendo o claro objetivo contrário aos governos populares, diziam que participar seria como dar um golpe contra si mesmos. Vale ressaltar que nesse grupo se encontrava a quase totalidade dos detentores de mandatos legislativos, ou executivos, do partido e sua numerosa equipe majoritária no comando partidário. Os pequenos partidos de esquerda exultavam e corriam com sua hostes para tentar, se não liderar, apenas ampliar seus quadros com a inserção de alguns manifestantes. Pouco se importavam com a possibilidade de golpe contra os governos populares, nem mesmo com a perspectiva, desprezível em suas análises, de instauração de um regime de exceção no país. São tão pequenos que já quase clandestinos mesmo. E rugia e vibrava o facilbook como nunca em sua história, repercutindo, analisando e resignificando o movimento.

Enquanto isso, a segunda mais importante cidade do país fazia seu protesto. Com uma diferença: já não eram dezenas de milhares os manifestantes; eram centenas de milhares. Dois dias depois, seriam cento e cinquenta mil na terceira cidade mais importante do país. Ninguém mais poderia desconsiderá-lo; era uma questão de apoiar ou apoiar. Quem ficaria de qual lado?

Um fato, que nem de longe foi relatado pela mídia tradicional, mas que foi intensamente apresentado no facilbook, acrescentou um dado importante no entendimento do movimento, o envolvimento do estado na condução dos protestos. Um prestigiado médico, professor da mais prestigiada escola de uma das três mais importantes universidades do país, junto com sua esposa, trabalhou como voluntário para atendimentos de primeiros socorros no protesto. Aconteceu que um manifestante teve um problema mais sério, consequência de um trauma craniano, e teria que receber atendimento com suporte inexistente na zona de conflito. Desesperada, a esposa do médico tentava de todas as formas conseguir, junto à barricada de policiais, permissão para levar o ferido a um hospital; enquanto isso, seu marido prestava os socorros possíveis ao manifestante severamente machucado. Foi quando um dos manifestantes exaltados, um daqueles espadaúdos, de cabelos cortados rente, que participava ativamente das depredações com o rosto encoberto, condoeu-se da situação do ferido e apresentou-se ao médico se dizendo policial. Disse que poderia levar o rapaz para onde ele pudesse ter o atendimento devido sem ser rechaçado pela barreira policial. Ora, isso somente poderia acontecer se ele de fato fosse um policial e se mais ainda fosse reconhecido pelo comando dos policiais em conflito. Mas aconteceu que, o policial ainda travestido de manifestante radical, cruzou a linha proibida sem sofrer ataques e levou o ferido para onde pudesse ter tratamento adequado. A sensibilidade desse policial consciente dos seus deveres humanos comprovou algo inimaginável: a polícia estava participando dos protestos; não para proteger como é sua obrigação institucional, mas para depredar e incitar a violência. Na manifestação seguinte, a forma de ação explícita da polícia, que atirou bombas nos manifestantes que estavam distantes não somente da área de exclusão, como também da zona de conflito, os mais violentos de até então; garantiu a ação dos depredadores sem sequer admoestá-los, comprovando mais uma vez sua participação como produtora de vandalismos contra prédios públicos e privados. Denúncias desse mesmo tipo de ação policial ocorreram também no estado onde se iniciaram as manifestações. Estavam os dois governadores dos dois estados mais ricos, populosos e influentes do país, comandantes chefes das suas polícias; clara, objetiva e inexoravelmente implicados na ação contra as instituições em um país democrático.

Os partidos conservadores, principalmente o Partido Somos Dóceis Bonecos, o PSDBon, cujos estados onde se iniciaram os movimentos, e onde a polícia agia de forma contrária aos seus objetivos tinham governantes seus; também se esconderam, incluindo o aliado inseparável do PSDBon, o Partido Deixa Eles Mandarem, DEMO. Passava pelos seus entendimentos que, sem uma ruptura institucional, tanto o governador Beraldo Alcemim quanto o Anônimo Anestesia, governador do estado de cuja capital estamos narrando os fatos, poderiam ao final ser os grandes prejudicados. As avassaladoras quedas de prestígio e votos desses partidos poderia se intensificar.

Dizem as más línguas que os brilhantes pesquisadores da Fundação Phorda, aproveitando um descuido da segurança, viram que na sala do big boss esteve, naqueles momentos, o representante maior dos conservadores, o Conde Ferdinando H. Cordeiroso. Sabiam que era ele porque na soleira da porta fechada estava o seu par de sapatos.

Por todo o país pipocavam movimentos, em todas as grandes cidades. Já não se contavam às centenas de milhares os manifestantes, mas aos milhões. Duas greves gerais foram chamadas, mas, demonstrando um possível iminente fracasso da tentativa de desestabilização, sequer ganharam espaço nas redes sociais ou adeptos. À esquerda e à direita, muita gente assustada não atinava com uma possibilidade de ação que pudesse, sem riscos, garantir ou colocar o movimento a seu favor. Os políticos e seus bem-remunerados assessores, esses últimos na sua grande maioria excelentes babaovos, estavam desnorteados. Os líderes históricos, de expressão, sejam municipais, estaduais ou nacionais; atônitos, preferiram se eclipsar, com honrosas exceções. Sempre navegaram em águas calmas, pavões acostumados à bajulação constante, que transformavam corriqueiros atos em heroísmos de monta. Multicondecorados num sistema de autocondecoração muito bem articulado com séculos de história e eficácia sócio econômica. Como não se achar “the must”, Como não achar que sua forma de ação é sempre a melhor possível quando se vive rodeado de bajuladores em volume e status proporcional ao cargo que ocupa? Pela primeira vez eram chamados, num potente movimento popular de caráter nacional, a se posicionar; não conseguiram.

Foi quando a presidentx (assim não corro risco de contrariar ninguém), resolveu se pronunciar. Em rara cadeia nacional de comunicações, disse em tom quase de defensiva que estava ouvindo a voz do povo que gritava pelas ruas em protesto. Que iria agir para que as principais reivindicações populares fossem priorizadas. Como sempre, os meios de comunicação tradicionais questionaram o discurso da presidentx. Convocaram os mesmos direitistas de sempre para comentar o discurso, acusando-o de todas as iniquidades possíveis para ver se “colava”. Os velhos e matreiros políticos de oposição voltaram a seus insípidos debates que jamais levaram à lugar nenhum, exceto aos holofotes da grande mídia. Não se deram conta de que não eram o centro da atuação política, que esse havia se deslocado para as ruas. Não perceberam que para repercutir alguma coisa de modo significativo teriam que se posicionar no movimento e não alheios a ele. Foi quando a presidentx Douma Robustefe, três dias depois do seu pronunciamento resolveu fazer outro. Surpreendeu a todos: em lugar de dizer que ouvia a voz das ruas, adentrou o movimento e assumiu de fato suas bandeiras. A principal: aquele motivo inicial, presente em todas as almas de cada um dos manifestantes; a revolta contra quinhentos anos de opressão que se consubstancia num intrincado sistema político que garante uma eternidade de benefícios especiais aos que ocupam os cargos de direção do país; poderiam ser modificados pelo povo. Convocava-se uma constituinte para isso. A notícia caiu como uma bomba; alguém ousou colocar em risco os privilégios de uma casta intocável e fez isso aliando-se a um movimento que ninguém poderia enfrentar. E olha que a trajetória histórica pessoal da presidente sempre fora muito mais de administradora do que de política propriamente dita.

O brilhante e corajoso enfrentamento das velhas raposas das eternas oligarquias sempre no poder foi um poderoso contragolpe imediatamente percebido por elas. Como por um passe de mágica, a pauta de todos os debates nas câmaras municipais, assembleias legislativas dos estados e, principalmente, na câmara federal e senado, passaram a ter com eixo central a política trazida pelos protestos das ruas. Enfim, os políticos adentraram o movimento. De repente, mudou completamente o tratamento que a grande imprensa passou a dar aos fatos: o movimento é lindo; feios são os vândalos que o distorcem. Os chamados facilbooqueanos ficaram mais desarticulados e arrefeceram os protestos. Os pequenos partidos políticos tentam se aproveitar do recuo das ruas para manter chamas menores acesas, ampliar seus quadros e granjear algum prestígio social. Os partidos e políticos de direita tentam transformar a proposta de mudar o sistema político em algo que não permita ao povo comandar essa mudança, de forma que ao final nada mude. E o PaPudO? Vai assumir com a mesma coragem da presidentx o enfrentamento das velhas oligarquias eternamente no poder e buscar a volta do povo nas ruas, agora com objetivos concretos?

Vendo o movimento pelas perspectivas que tem hoje, podemos perceber algo impressionante. Os representantes da direita não vão mobilizar por medo de serem vencidos e não acontecer, nem uma ruptura institucional, nem um desgaste que possa influir nas próximas eleições, temerosos inclusive de terem que assumir a pauta da presidentx. Os pequenos partidos de esquerda também não vão mobilizar por medo de ter que assumir a pauta da presidentx, fugirão das grandes mobilizações e tentar recolher os frutos que sobrarão da desmobilização, em seu eterno fustigar os governo do partido popular.

Quem vai assumir estar junto daqueles milhões de cidadãos indignados que se mobilizaram por um país melhor? O partido da presidentx não vai marchar ao seu lado e trazer o povo para apoiar suas propostas? O maior movimento popular da história do país vai esvair-se em escaramuças localizadas? O sentimento de revolta contra séculos de opressão vai novamente ser confinado ao peito de cada brasileiro, mais uma vez impotente diante das forças que eternamente o oprimem? Ou a extrema direita vai apenas fazer um recuo tático e diante da inércia da esquerda esperar outro momento para então, um pouco mais organizada, dirigir a revolta represada nos corações do povo? Luz Inatia Polvo da Silva, maior líder vivo da nação, reconhecido por sua capacidade ímpar de negociação e conciliação, ainda não deu nenhuma palavra. Posso dizer que no salão envidraçado do edifício em Manhathan ainda reverberam as palavras do funcionário da Fundação Phorda: ― E no Brasil mr. Robinson, podemos fazer o mesmo? Essa é uma obra de ficção e qualquer semelhança com pessoas e fatos reais é mera coincidência. Mesmo se retirados do texto os episódios imaginados como acontecidos nos EUA, ainda assim, qualquer semelhança com os acontecimentos aqui são mera coincidência.