quinta-feira, 21 de julho de 2022

Conversas SBCenses: sobre "virar a chave"


"Ouro Preto respira arte, cultura, história!" Mas... de qual história falamos?...

Ainda em Ouro Preto, saímos da Casa da Árvore, no Morro de São Sebastião, para uma caminhada... e boas conversas... 

A alguns passos estávamos em frente a Capela de São Sebastião. Reparem o sincretismo religioso: Oxóssi e suas flechas estão nas torres da capela. Oxóssi é  rei das matas, das caças e da fartura. São Sebastião era um soldado do Império Romano que se converteu ao cristianismo e foi martirizado por conta da sua fé. É venerado como santo padroeiro contra a peste, a fome e a guerra.

E foi ali que tivemos uma bonita aula de história, misturada com geografia:

Daquele local podemos identificar duas bacias importantíssimas para Minas Gerais e para o Brasil: o RIO DAS VELHAS e o RIO DOCE.


As nascentes do Rio das Velhas estão localizadas dentro do Parque Municipal Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, perto de onde estávamos conversando. Este rio é o maior afluente, em extensão, do Rio São Francisco. O nome 'Rio das Velhas' tem origem indígena (tupi-guarani). Antes de ser 'Rio das Velhas' era conhecido como rio Uaimíí pelos indígenas. A antiga pronúncia foi traduzida na forma portuguesa Guaxim, da qual nasceu Guaicuy, que significa ''Rio das Velhas'. A história da ocupação da Bacia do Rio das Velhas começou no final do século XVII, quando os bandeirantes aproveitavam a rota do rio para desbravar o interior do estado à procura de ouro e pedras preciosas. Quem orientava os bandeirantes, provavelmente, eram os índios e os africanos escravizados.

A bacia do Rio Doce nasce nas serras da Mantiqueira e do Espinhaço. O Rio Doce propriamente dito é formado a partir do encontro dos Rios Piranga e Do Carmo, em Minas Gerais, e percorre cerca de 850 quilômetros até o mar, no Espírito Santo. Chamado de WATU - mar doce - pelos indígenas, durante o ciclo do ouro o Rio Doce teve sua navegação proibida pela corte portuguesa, para evitar o transporte e a exploração do ouro e pedras preciosas por suas águas, por outras pessoas que não eles mesmos. Em 2015 o Rio Doce foi devastado pelo "mar de lama" em consequência do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana. O médio Rio Doce, atingido pelo "mar de lama",  é habitado por indígenas da etnia KRENAK. Ailton Krenak é um líder indígena nessa região, grande ambientalista, filósofo e escritor brasileiro.

Acima, a Cachoeira Catarina Mendes, também perto dali... perto que eu digo para uma boa caminhada ecológica-histórico-cultural. Catarina Mendes foi uma mulher escravizada,  que conquistou sua alforria (pesquisando no GOOGLE você encontrará: "...  recebeu alforria do seu dono" - e é exatamente sobre isso que conversamos ...) -  e se fixou em um pedaço de terra que tinha essa cachoeira: O povoado de Catarina Mendes, subdistrito de São Bartolomeu, que é distrito de Ouro Preto. Em frente a Capela de São Sebastião, Seu Tatu, um simpático sinhozinho que carrega consigo uma parte da história dessa região, nos conta que Catarina, além de ter montado uma "Casa de folga" naquele povoado, defendia e protegia as mulheres que ali habitavam. Isso lá pelos idos século XVII, XVIII... por aí...

Então... nesse dia não fomos a Catarina Mendes. Fomos caminhando, subindo a serra, onde grande SBCense ouro-pretana nos apresentou as "minas a céu aberto", nos dizendo que toda grande mina começa, na verdade, a céu aberto ... e descemos  até a Mina Du Veloso (o que se chama hoje de mina seria uma das partes do processo de extração do ouro, a "galeria subterrânea") - e isso significa uma ampliação do olhar: a ideia de que a mina não é somente  a galeria subterrânea - MINA era o grande território, onde se utilizavam as várias técnicas de mineração  - e uma delas constituía nos aquedutos que estávamos vendo, que veem a ser grandes canais que conduziam água, e provocaram o desmonte hidráulico... uma ótima caminhada, para o corpo e para o espírito. E, nessa caminhada, nossa 'guia' usou a expressão "virar a chave", se referindo a uma "mudança de olhar" em relação à nossa história, a propósito de olhar para a história de Ouro Preto sob uma perspectiva mais ampla,  a perspectiva das pessoas que construíram a cidade e as que já estavam aqui antes, ou seja, os negros e os indígenas. Significa "contar outra história", não só a história que conhecemos, dos bandeirantes, dos nossos colonizadores.

E ficamos refletindo que podemos compreender - e agir - "virando a chave" num sentido muito maior do que este, ou seja, o processo de "virar a chave" pode, e deve, ocorrer em todos os níveis de relação, desde "eu comigo mesmx" até a "visão (e ação) de/no mundo", passando pelas relações íntimas, pela família, amigos, relações de trabalho, e eu enquanto cidadã e cidadão.

E começamos a pensar a partir da própria experiência de vida... e surgiram exemplos, assim como reflexões, no movimento do Particular para o Geral e para o Particular, e assim por diante, numa construção bonita e proveitosa:

- Começo pensando no que ouvi ontem de uma jovem mulher: "fulano é muito legal! ele me ajuda em casa e com as crianças"... Certamente essa fala NÃO significa "virar a chave", pois quem ajuda não assume nenhuma responsabilidade! Assim como outra de nós disse: "Ele me deixa sair com as amigas"...  Para algumas de nós essas frases não têm o menor sentido. Mas, acreditem, ainda é muito comum entre muitas de nós. 

- Ouvi, também, de uma mulher de mais idade, que ela "aprendeu" a servir... que ela tem prazer em servir... e pensei: entre mulheres que têm o prazer de servir e mulheres que lutam contra a subserviência, estamos, no mínimo há 100 anos, no 'grande esforço de pensar-sentir-agir virando a chave'.

- Continuando com "o que NÃO é virar a chave": penso também em quantas de nós, ainda, têm internalizado o "grande" papel, ou "destino" de toda mulher: ser mãe... atualmente, somente uma pequena parcela de mulheres "viraram a chave" no sentido de ESCOLHER esse destino: casar e ter filhos... e sabem que outros objetivos de vida nos farão, também,  inteiras e felizes. Inclusive "olhar" para o mundo e para si mesma e se ver enquanto construtoras do mesmo, de um  mundo mais bonito, mais justo, mais inclusivo. Imaginem que a música "Triste, louca ou má" foi construída a partir de uma fala comum nos anos 90, que significava a "pecha" que se dava à mulher que "não queria esse destino", e se colocava o direito de escolher. Nos EUA se dizia, em relação a essas mulheres, que seriam "BAD, SAD OR MAD"... ouçam:


- Um "chute no estômago" é o filme francês do Festival Varillux deste ano "O acontecimento", da diretora Audrey Diwa, vencedor do Leão de Ouro de melhor filme no festival de Veneza de 2021, uma adaptação do romance do mesmo nome, de Annie Ernaux: em 1963, na França, Anne é uma aluna jovem e brilhante, com um futuro promissor. Mas, quando engravida, vê desaparecer a oportunidade de terminar os estudos e escapar aos constrangimentos das suas origens sociais. Anne resolve tomar medidas, ainda que tenha de enfrentar a vergonha, o sofrimento, e se arriscar a ir para a prisão. O filme aborda a experiência com o aborto, quando este ainda era ilegal na França nos anos 60. Então... e aqui no Brasil? Ainda estamos nos anos 60, ou antes? a resposta seria: sim... para algumas mulheres, de uma classe social. Para uma classe social favorecida economicamente, essas têm possibilidade de escolher, e isso para além de qualquer credo religioso. O conservadorismo dificulta enormemente a "virada de chave". Um amigo SBCense avaliou que, se gravidez acontecesse com os homens, teríamos possibilidade de aborto em toda farmácia... Enfim, trata-se de um debate profundo, que exige tempo, disposição e abertura. Precisamos conversar mais sobre educação sexual, assim como sobre políticas públicas. Porque não é fácil essa "escolha", mas deveria ser uma "última alternativa possível", como disse nossa SBCense.

- Para nós, mulheres, compreender o feminismo fazendo parte de uma luta maior, a luta de classes, a luta contra o sistema capitalista, significa "virar a chave". Pois, apesar de todo esforço que se faz para nos "invisibilizar" essa realidade, sabemos que a história do capitalismo foi fundida com a lógica do patriarcado, da subserviência da mulher, assim como do racismo, da lógica "naturalizada" de que existem seres humano "inferiores" e, portanto, eles podem ser explorados. Lembram da Catarina Mendes, a que deu o nome ao subdistrito de São Bartolomeu? A "história" do google é a de que ela recebeu a alforria do seu dono. Quando começamos a virar a chave nos damos conta do absurdo que é a negação de toda a luta - da Catarina e de todas as pessoas escravizadas - para conquistar sua liberdade... pois o que a "histórica oficial" nos conta é a da Princesa Isabel, que assinou a "Lei Áurea"... nada nos contam de toda uma história de luta de mulheres e homens escravizadxs... precisamos buscar essa história, todxs nós... 

Abdias do Nascimento (1914-2011),  grande parlamentar brasileiro, fala da Lei Áurea como   "uma mentira cívica da branquitude"...






- Outra virada de chave que vivencio e reflito sempre está na relação pai-mãe/filhx... e filhx/mãe-pai:  um processo difícil, mas necessário, xs filhxs chegarem a reconhecer e amar mães e pais naquilo que eles têm de "amáveis", o processo de "humanização" dos pais, penso, interfere em todas as outras  relações, e até na relação comigo mesmx, na autoestima: significa o processo de sair da idealização e nos humanizarmos e humanizarmos x(s) outrx(s). A mesma reflexão sobre o processo de humanização serve para as mães e pais em relação axs filhxs, importante e necessária a mão dupla de estarmos sempre atentxs em relação às projeções que fazemos em relação a nossxs filhxs, e as "cobranças" decorrentes dessas projeções.


- Mãe suficientemente boa é um conceito do pediatra, psiquiatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971). Em 1949, numa entrevista de rádio, Winnicott fala de como seu conceito foi, de certa forma, distorcido: para ele, a 'mãe suficientemente boa' não é perfeita, como muitas vezes era - e ainda é cobrado de nós pela sociedade (até mesmo por outras mulheres) -, uma 'mãe suficientemente boa' é aquela que, além de prover as necessidades do indivíduo para se constituir como sujeito, também falha - o tempo todo -, e está continuamente corrigindo essas falhas. Ou seja, nem 'suficientemente boa', nem 'suficientemente má'... humana, demasiado humana, como diria Nietszche.

- Uma querida, da Coletiva Indômitas, grande parceira SBCence, disse de uma "virada de chave": "Apesar de ser difícil, pois não aprendemos isso, vale a pena estarmos sempre construindo "RELAÇÕES HORIZONTALIDADAS".  Sim... não faz parte da nossa cultura, "a ideologia burguesa, capitalista,  permeia todas as nossas relações - e faz parte dessa ideologia a construção de relações assimétricas, pois são essas que se prestam à exploração".  E aprendemos, em todos os níveis de relação, a reproduzir o modelo da subalternização, do poder sobre, enfim, reproduzir a relação senhor-escravo. 'Virar a chave' nas relações significa a construção permanente de simetria e reciprocidade.                                                    

- Pensando no sentido da metáfora:  me parece que virando a chave abrimos uma porta... e podemos ver uma sala grande...uma paisagem, uma estrada... que pode ser bonita e/ou pode dar medo... e, se formos impelidxs a dar um passo sem olhar atrás de nós, podemos cair num abismo. Portanto,     não é o caso de deixar de olhar para trás, nossa história conta muito na construção dessa caminhada pela nova estrada. Sejamos históricxs, nem a-históricos, nem supra históricos, como conversamos no post de 8 de julho, leiam...

E terminamos comentando sobre os homens, sobre cultura masculina:

- Não é que tem homens que se dizem não machistas? Eu tenho medo, pois esses "acham" que estão,  mas NÃO estão,  virando a chave... NEGAM a história, a "cultura internalizada", provavelmente estão na arrogância, como se pudesse existir, na nossa sociedade, o não machismo. 

E é necessário muita humildade, de TODXS NÓS,  para começarmos a VIRAR A CHAVE  do machismo. Pois, como conversamos, VIRAR A CHAVE não é esquecer ou negar a história (e a cultura)... é um movimento contínuo de enxergar/andar pra frente, estando, sempre olhando pra trás, na medida certa, ou seja, olhando pra trás para aprendermos a apropriar e a rejeitar  a história, PARA A VIDA E PARA A AÇÃO. Os homens daquela Roda de Conversa, fazendo um exercício de humildade, concordaram... 


- Recordamos a música do Gil de 1978, SUPER HOMEM. "Mas a conversa não termina nunca!"... declarou outra SBCense... SIM...: quem leu até aqui e se sentiu AFETADX com o "virar a chave" nos mande seu depoimento, seja ele em qualquer nível de relação, de "eu comigo mesmx" até "eu enquanto cidadã e cidadão", reflexões sobre "visão de mundo" que geram o movimento de nos transformarmos em SUJEITXS...

Abraços carinhosos e todas, todos e todes... aguardamos depoimentos... e até nosso próximo passeio-conversas-reflexões-movimentos...


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