quinta-feira, 15 de março de 2018

CARTA A UM AMIGO... E A TODXS


Queridxs amigos SBCenses. A carta a seguir me impressionou muito. Cada vez mais acredito no que uma amiga diz: três em três mulheres já sofreram ou sofrem (ou sofrerão) violência, vindo de todos os lugares na nossa sociedade machista e misógina. E o jeito de ir resolvendo isso é sempre superar nosso medo, vergonha, culpa e, de alguma forma, denunciar sempre. Estaremos, ao denunciar, trocando experiências de como lidar com essas violências, para diminuir (ou superar) o sofrimento, como o que esta amiga viveu por anos e anos. Ela me disse que conseguiu escrever na semana passada, quando do dia 8 de março... mas me mandou hoje, autorizando sua publicação sem o seu nome... chorando pela morte de uma mulher que trabalhava na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano... e foi brutalmente assassinada: Marielle Franco. A ela nossa homenagem.



SantuzaTU





Carta a um amigo homem:



Meu querido amigo, que amo e sei que sou amada...

Escrevo agora a você, depois de cerca de um mês... ainda muito triste com o que aconteceu... você sabe que eu escrevo para não morrer... para resistir, para não me calar, me submeter, enfim, para reagir a tudo de ruim nesse mundo, especialmente com as mulheres.


Naquele dia, depois da nossa discussão e da minha saída (intempestiva porque não queria chorar naquele lugar) de onde nos encontrávamos, recebi seu recado recomendando o filme “Me chame pelo seu nome”. Era disso que eu falava, você disse. Então fui ver o filme... sempre procurando algo que me faça refletir e crescer. Você sabe, crescemos pelo amor e pela dor... gosto muito mais de crescer pelo amor... mas nesse caso foi pela dor, e quando é assim precisamos aprender a suportá-la até a superação, até a construção de nossos afetos, novas reflexões, novos valores orientadores para a vida.


Lindo o filme... conta a história de um romance entre um cara mais velho com um adolescente (acho que 17 anos). Vi nisso pouquíssima relação com o que te contei. Na verdade o que me tocou profundamente no filme foi em algum momento da história em que o personagem vive um dilema: falar ou morrer. Gostaria de ter falado mais, para não ter morrido tantas vezes. E o caso que te contei foi uma das minhas grandes mortes. Acho que foi a primeira vez na vida, “trocentos” anos depois do acontecido, que me vi na liberdade de contar esse caso, como um “desabafo” e também a busca de empatia. E, com a dor da não empatia, aprendi que devo falar disso muito mais vezes, para muito mais mulheres (e homens... e outros gêneros), que se calam e vivem uma vida de medo, culpa, vergonha, emoções que nos aniquilam e nos desempoderam.


Então vou te contar de novo, e também contar pra mim mesma e pra quem mais queira saber: não sei o que estávamos conversando, como me deu a vontade de te contar... só sei que comecei contando de um jeito como se procurasse a condenação (percebi isso depois): já comecei o caso dizendo que eu era extremamente sedutora na adolescência... Também aumentei minha idade. Na verdade eu devia ter uns 14 para 15 anos quando aconteceu o que vou contar. Nessa idade eu era bastante reprimida e cerceada pelos meus pais... Não tinha liberdade para fazer amizades, namorar nem pensar... minha única companhia era um tio que morava conosco, de 12 a 15 anos mais velho. Então, pro cinema era só com ele, passear... essas coisas. Pois bem, passeávamos na praça da liberdade, íamos ao cinema... e andávamos de mãos dadas, como namorados... me apaixonei loucamente... tesão de matar. Nas minhas lembranças, além de andar de mãos dadas, no cinema ele me acariciava no colo, indo até quase os mamilos, eu quase morria de tesão. Não sei se eu evitava ou ele não tinha coragem de ir mais... enfim, saíamos do cinema de mãos dadas e conversando... e por ai vai.


Mas nunca conversávamos sobre o que estava acontecendo. Então... um dia ele me chamou para dar uma volta de carro. E começou as carícias... então, num certo momento, ele pegou minha mão e colocou no seu pinto... eu tomei um susto, e disse: eu sou sua sobrinha... aí ele parou, se afastou, disse “desculpa” e fomos embora. Nunca mais ele me olhou na cara...


Imagina minha perplexidade, minha dor, culpa, vergonha, medo... tudo... e então as defesas... “nada aconteceu”, não se fala no assunto e é como se nada tivesse acontecido... quem nunca já usou essa defesa? só que a coisa fica enterrada e te corroendo... voltando ao filme: morremos várias vezes na vida quando não falamos...


Este é o caso. E eu, te contando, também disse que isso me custou uns 20 anos de terapia... agora penso que talvez escrevendo consiga “falar”  me libertar, fechar uma “Gestalt” como dizem os terapeutas. Porque, meu grande amigo, você me ajudou a perceber que não podemos contar com um ambiente propício para “falar ou morrer”... temos que falar de qualquer jeito... contando com empatia ou não das pessoas... só falando é que criamos a possibilidade de encontrar as empatias, encontrar também os compartilhamentos das violências diárias que nós mulheres sofremos... Nossa, como me senti revitimizada quando, ao contar esse caso, você começa uma discussão sobre a questão da justiça, da maioridade, que foi desencadeando para “ela também tinha sua culpa...” e foi aí que te perguntei: então me diga que parcela de culpa ela tinha, qual a porcentagem de culpa cada um tinha nesse acontecimento? e a sua resposta: claro que 50 – 50... cada um tinha metade da culpa!!!


Foi nesse ponto que acabou toda a minha energia... e fui pra casa chorar... chorar por todas as mulheres que sofreram e sofrem violências diárias, desde as mais sutis até a morte (feminicídio) e são revitimizadas... pelos pais, irmãos, amigos, pelas próprias mulheres, pelas instituições que ela procura: Claro! A culpa é sua! Olha a saia! Você que provocou! Porque não ficou no seu lugar!!! (provavelmente o lugar da submissão e do silêncio).


Meu querido amigo! Nós não estávamos discutindo ali duas opiniões diferentes... não coloque a conversa nesse nível. Duas pessoas podem ter opiniões diferentes e, mesmo assim, quando uma tem a sensibilidade de ver que a outra está simplesmente buscando empatia, oferecê-la... isso não significa submissão ao que a outra pensa ou à sua opinião. Por outro lado, talvez eu não tenha conseguido evidenciar essa busca de empatia... pode ser... acho que a culpa a gente carrega a vida toda... até pra contar o caso já fui me mostrando culpada...

Enfim, estas reflexões foram muito valiosas pra mim. Cresci muito... não pelo amor mas pela dor... mas tá valendo... e me vejo na obrigação de compartilhar ao maior número de pessoas possível...


Ahhh... uma última coisa: você disse no nosso diálogo: ele te respeitou! Quando você disse “eu sou sua sobrinha”... ele parou com o assédio! Não, meu amigo... não há respeito quando há desamor, quando não se consegue sair de si mesmo e perceber o outro... não há respeito quando a fala é interditada, sufocada, reprimida, negada.


De quando nossa conversa aconteceu até agora, quem me ajudou muito também foi Maria de Queiroz, escritora brasileira, da academia Mineira de Letras... e termino com ela:


"Eu não tenho medo do amor. Eu tenho medo é de amar quem tem medo dele. Amar quem teme o amor é como se apaixonar por uma sucessão de desistências."


Ele, o meu tio (e alguns outros homens), me tirou alguns anos de alegria, de vida, mas não me tirou a capacidade de amar...