quinta-feira, 24 de julho de 2014

AO QUERIDO RAPHAEL... E AXS AMIGXS SENSÍVEIS... Uma reflexão sobre o Feminismo

Sim Rafa... Você tem toda razão: mesmo as pessoas mais alienadas da história estão irremediavelmente atreladas a ela. E eu te contei da minha pesquisa sobre a história do feminismo, a propósito do acompanhamento de posts interessantíssimos, cheios de avanços e retrocessos (a história não é linear meu querido Rafa...) sobre o "feminino contemporâneo", que surgiram no FB nos últimos dois meses, a partir do primeiro: "A incrível geração de mulheres que foi criada para ser tudo o que um homem NÃO quer". O mérito do texto é evidenciar que décadas de intenso debate feminista não foram em vão. Enfim as mulheres estão conquistando novos e inesperados espaços. E é justo que mudanças nos tragam dúvidas e incertezas. O texto é bacana, me levou a refletir sobre o acúmulo de tarefas da mulher contemporânea, já conversamos tanto sobre isso, não é?: dona de casa, filhos, trabalho, marido, uma jornada tão pesada que a "última etapa", o sexo, vira "estupro", segundo a descrição de uma amiga. Você tem alguma dúvida que inúmeras mulheres vivem assim? das várias classes sociais, querido!

Mas o mesmo texto cai, de novo, no "buraco", ou melhor, no "erro histórico" de nos moldarmos ao padrão "amor romântico", ou seja, o destino de toda mulher de casar e ter filhos e, claro, para isso ela precisamos  de "ser do jeito que o outro quer que eu seja"... e você duvida que, também, inúmeras mulheres, não estejam vivendo este "esticamento" entre  construir sua identidade ("ser o que eu quero ser") e ser do jeito que me impõem ser, cumprir meu destino, meu "desejo fabricado" de ser esposa e mãe? Quando nós, mulheres, vamos tomar a coragem para mudar também o que entendemos por “felicidade”?

Pois então, esse texto, que eu diria quase ingênuo, gerou inúmeros outros textos, uns rebatendo de maneiras simplistas e até desonestas, outros irresponsáveis e agressivos, de análises mais superficiais e a-históricas até as análises comprometidas e ricas. Como você gosta de citar Rafa, um dos nossos inspiradores, G. Rosa: "o que não me mata me torna mais forte", os textos que li nos suscitaram conversas tão boas, o que me impulsionou a pesquisar sobre o movimento feminista no mundo e no Brasil, assim como rendeu também o seu belo texto sobre a História para a vida, nosso post anterior.

Mas claro, antes um resumo dos textos lidos:
  • Tem um ótimo da Michele Escoura, antropóloga, pesquisadora do NUMAS – Núcleo de estudos sobre os marcadores sociais da diferença da USP, que responde assim (ao primeiro texto, já citado): "Cara Ruth, compadeço com suas palavras e me reconheço na máxima de que “não vamos andar para trás”. Mas nosso primeiro próximo passo, talvez, seja reconhecer que liberdade para as mulheres é muito mais que pagar nossas contas. Liberdade é, inclusive, emancipar-se daquela velha e já batida ideia de que uma mulher só se completa com o amor verdadeiro e de que o sonho de todas nós deve ser um dia se vestir de noiva. Deixa disso, Ruth. Sejamos mais do que a sociedade espera da gente e comecemos retirando o “ser tudo o que um homem NÃO quer” do título de seu texto e de nossas preocupações." O título deste post: "À espera da geração de mulheres que não se importam com o que os homens querem" já sugere não é mesmo?
  • Tem um outro - ou melhor, outros -  em resposta ao primeiro,  que gerou muita polêmica, pois coloca aquele depoimento na categoria de "hino das encalhadas" e conclama as mulheres a "pararmos de bancar a vítima"!!! e, ainda, generaliza e diz das feministas como mulheres "chatas"!!! 
  • E, claro, tem respostas, dentre elas um cujo título "As feministas é que são chatas",  diz: "Parece haver um consenso sobre a chatice das feministas. Mas e a chatice das pessoas que querem determinar o que a mulher pode ou não fazer?". Esse texto é ótimo para refletirmos sobre a nossa escravidão aos padrões (impostos por uma sociedade machista, lógico). Um pedacinho do texto: "Feministas reivindicam que a mulher faça do seu corpo e da sua vida o que bem entender, sem nenhum papel de gênero para limitá-la e nenhum homem para oprimi-la, e por isso são consideradas umas chatas. Tudo porque acreditam na ideia radical que mulheres são seres humanos. É, as feministas são chatas. E eu estou convicta de que sou uma também". Concordo plenamente, sou também uma chata. E quando eu disser que sou feminista, por favor não me coloquem na categoria de exceção, para reforçar seu preconceito! Obrigada Rafa, por ter refletido sobre isso no seu texto, não saberia fazê-lo tão bem...
  • e, por último, um texto muito bom "A incrível geração de mulheres que não sabe a diferença entre opinião e conhecimento", que nos fornece dados estatísticos demonstrando o fato de que existem mais mulheres sozinhas do que homens e que, dessas, algumas se ressentem de não terem companhia, outras não. E dizer que se alguém está solteira é porque é chata, ainda por cima negando a realidade de alguns fatos bem comprovados, é de uma desonestidade intelectual que beira a irresponsabilidade, segundo o autor. 
Então Rafa, foi daí que senti necessidade de pesquisar sobre o Feminismo. Porque, como eu disse, faço irremediavelmente parte dessa história, e quero fazê-lo ativamente, não de maneira alienada. E quero, também, convidar todos os meus amigxs a realizar essa árdua e prazerosa tarefa de se incluir na história como sujeitxs, construtores, de um mundo mais bonito.

Quem achar muito longo que use a estratégia do esquartejador, leia por partes... mas guarde cada uma delas no coração e na mente... e transforme-a em ação... na vida... em todos os níveis de relação, do íntimo ao público, passando pelo pessoal, pelo trabalho, família, amigos, dá para refletir e aplicar em tudo na vida...












 O Movimento Feminista no Mundo

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 Feminismo é o movimento social que defende a igualdade de direitos e poder entre homens e mulheres em todos os campos. A história do movimento feminista possui três grandes momentos, divididos por feministas e acadêmicos em três “ondas”. O primeiro foi motivado pelas reivindicações por direitos democráticos como o direito ao voto, divórcio, educação e trabalho, movimentos do século XIX e início do XX. A segunda onda se refere às idéias e ações associadas com os movimentos de liberação feminina iniciados na década de 1960, que lutavam pela igualdade legal e social para as mulheres (impulsionada pelo aumento do uso da pílula anticoncepcional).  Já o terceiro começou a ser construído no fim dos anos 70, com a luta de caráter sindical. Essa terceira onda seria uma continuação da segunda onda - e, segundo alguns autores, uma reação às suas falhas.
O Movimento Feminista tem seu inicio na Revolução Francesa. O colapso na França que questionava o sistema político encorajou mulheres a se manifestarem contra a sujeição a quem eram submetidas das mais diversas modalidades: política, econômica, social, familiar, educacional, jurídica, entre outras. A prioridade era a conquista do direito a propriedade de si próprias, devido ao fato dos maridos se considerarem dono de suas mulheres.
No inicio do século XX despontam as primeiras mudanças no mundo inteiro, a Revolução Russa de 1917 concede o direito de voto as mulheres; na Finlândia em 1906; na Noruega em 1913; e no Equador 1929. Por volta de 1950 a lista compreendia mais de 100 nações.
            Após a 2° Guerra Mundial, o feminismo vem a tona pra reivindicar a liberdade feminina em relação ao seu corpo e pensamento oprimidos por uma cultura extremamente masculina, entre elas estavam a luta pelo aborto, igualdade salarial e o acesso a todos os cargos ocupados exclusivamente por homens. Várias mulheres influenciaram esse momento das lutas femininas: Simone de Beauvoir com seu livro “O segundo Sexo”; Betty Friedman com “Mística Feminina”,  considerado o manifesto mais realista do movimento de libertação da mulher, mundialmente conhecido como “Women’s Liberation.


O Movimento Feminista no Brasil 

 
Aqui o movimento tomou forma entre o fim do século XVIII e início do XIX, quando as mulheres brasileiras começaram a se organizar e conquistar espaço na área da educação e do trabalho. Nísia Floresta (criadora da primeira escola para mulheres), Bertha Lutz e Jerônima Mesquita (ambas ativistas do voto feminino) são as expoentes do período.

Em 1907, eclode em São Paulo a greve das costureiras, ponto inicial para o movimento por uma jornada de trabalho de 8 horas.
Já a década de 30 foi marcada por avanços no campo político. Em 1932, as mulheres conquistam legalmente o direito ao voto, com o Código Eleitoral, mas foi só com a Constituição de 1946 que esse direito pleno foi concedido.
Com a ditadura do Estado Novo, em 1937, o movimento feminista perde força. Só no fim da década seguinte volta a ganhar intensidade com a criação da Federação das Mulheres do Brasil e a consolidação da presença feminina nos movimentos políticos. Mas logo vem outro período ditatorial, a partir de 1964, e as ações do movimento arrefecem, só retornando na década de 70.
Um dos fatos mais emblemáticos daquela década foi a criação, em 1975 (Ano Internacional da Mulher), do Movimento Feminino pela Anistia. No mesmo ano a ONU, com apoio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), realiza uma semana de debates sobre a condição feminina. Ainda nos anos 70 é aprovada a lei do divórcio, uma antiga reivindicação do movimento.
Nos anos 80, as feministas embarcam na luta contra a violência às mulheres e pelo princípio de que os gêneros são diferentes, mas não desiguais. Em 1985 é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), subordinada ao Ministério da Justiça, com objetivo de eliminar a discriminação e aumentar a participação feminina nas atividades políticas, econômicas e culturais.
O CNDM foi absorvido pela Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, criada em 2002 e ainda ligada à Pasta da Justiça. No ano seguinte, a secretaria passa a ser vinculada à Presidência da República, com status ministerial, rebatizada de Secretaria de Políticas para as Mulheres.
As ações do movimento feminista, nas últimas décadas do século passado, foram decisivas para articular o caminho da igualdade entre os gêneros, que, apesar de todos os avanços, ainda não é plenamente garantida.
Enfim, ao entrar na segunda década do século XXI, as feministas têm em sua pauta de reivindicações pontos como:
• Reconhecimento dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais das mulheres;
• Necessidade do reconhecimento do direito universal à educação, saúde e previdenciária;
• Defesa dos direitos sexuais e reprodutivos;
• Reconhecimento do direito das mulheres sobre a gestação, com acesso de qualidade à concepção e/ou contracepção;
• Descriminalização do aborto como um direito de cidadania e questão de saúde pública.
Além desses temas, um em especial tem ganhado por suas estatísticas: a violência contra a mulher.  A cada dois minutos, cinco mulheres são espancadas no País, de acordo com pesquisa da Fundação Perseu Abramo (Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado), realizada em 25 estados, em 2010. No entanto, as agressões diminuíram entre 2001 e 2010. Anteriormente, oito mulheres eram agredidas a cada dois minutos. Um dos motivos para essa diminuição foi a elaboração da Lei Maria da Penha (2006), que garante proteção legal e policial às vitimas de agressão doméstica. Qualquer pessoa pode comunicar a agressão sofrida por uma mulher à polícia, a despeito da vontade da mulher em fazê-lo.
A Secretaria de Políticas das Mulheres atua, não apenas pela redução da desigualdade dos gêneros, mas também para ajudar na redução da miséria e de pobreza para, assim, garantir a autonomia econômica das brasileiras.
Fontes:
  • Secretaria de Políticas para as Mulheres
  • Acervo – Revista do Arquivo Nacional
  • Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM) - Rio de Janeiro
  • Conselho Nacional dos Direitos da Mulher – Legislação
 
Na atualidade: o Feminismo Intersecional

O que é feminismo?

Nas palavras de Bell Hooks – escritora, crítica e feminista norte americana –, “feminismo é um movimento para acabar com sexismo, exploração sexual e opressão”.
Com base neste conceito, é contra todos os pensamentos, ações e aspectos sexistas institucionalizados, estruturais e individuais na nossa cultura que o feminismo luta, pois é a origem não só da discriminação e exclusão de gêneros como também da relação com opressões sofridas por grupos marginalizados.
Para acabar com o sexismo, é preciso entender que não é um poder exercido por si só e que o feminismo não deve ser entendido pela perspectiva da supremacia branca capitalista patriarcal — a de que todas as mulheres e os grupos excluídos têm como objetivo direitos iguais aos de homens em posições de poder. A meta não é o poder, a meta é a libertação através da revolução. A luta não é para alcançar os mais privilegiados, pois desta forma a hierarquia de poder e opressões continuará a existir. Ao trabalhar para eliminar opressões causadas, mantidas e incentivadas por sistemas sociais baseados em poder, dominação e submissão, o feminismo cria a possibilidade de um dia garantir essa libertação de forma plena.
“Nós acreditamos que o feminismo é uma ideologia sociopolítica, não uma identidade. Por isso toda luta contra opressão é uma causa feminista".

O que é intersecionalidade?

Intersecionalidade é “como inúmeras características biológicas, sociais e culturais — como gênero, raça, classe, orientação sexual, deficiência física e/ou mental, idade, tipo de corpo, religião, nível escolar e outros eixos de identidade — interagem em múltiplos e simultâneos níveis”.
Este conceito foi criado pela crítica e teórica norte americana Kimberlé Crenshaw , em 1989, para analisar como raça, gênero e classe se intersecionam e geram diferentes formas de opressão. Alguns anos mais tarde, a feminista e socióloga Patricia Hill Collins ampliou o conceito para que abrangesse outras características e discriminações, tendo sempre como base e foco raça e gênero.
A análise intersecional no feminismo tem como prioridade raça, gênero e classe, pois a intersecionalidade foi criada com esses princípios. Significa que, para mulheres que sofrem variadas opressões, não é possível dividir tais experiências em categorias. Foi desenvolvida para que partes da identidade das mulheres negras não sejam ignoradas em detrimento de outras, e para que mulheres brancas e privilegiadas não cooptem nem passem por cima das experiências de mulheres negras e de outras raças e etnias. “A grande maioria das mulheres experimentam diversas opressões intersecionadas e é nosso dever, como movimento, dar atenção igual e específica a todas as opressões e suas interseções”. 
O feminismo intersecional acredita que o movimento não deve atingir apenas quem o conceito tradicional entende como mulher: branca, cisgênera, heterossexual, de classe média, com alta escolaridade, que segue padrões físicos e mentais impostos como “normais” — algo que não devemos aceitar. Pessoas com tal perfil fazem parte do feminismo intersecional, mas são o foco da corrente principal do movimento e, por isso, usam tal privilégio para apagar a voz e ignorar o espaço e a luta de quem não é igual a elas. A intersecionalidade foi criada e desenvolvida por mulheres negras, marginalizadas pelo próprio feminismo, e tem como foco as causas ignoradas, as outras questões, as questões plurais.
A intersecionalidade tem ganhado cada vez mais espaço no mundo e até no Brasil. Mas ainda é uma concepção pouco aplicada no dia a dia, especialmente devido à compreensão falha e rasa do conceito que tem se espalhado em espaços mais populares. Mesmo feministas com anos e anos de experiência começaram a ter contato com ela recentemente. E isso também é sinal de como questões que não dizem respeito a elas são tratadas. Não é porque não lidamos com determinadas opressões que elas não existem e não é porque não conhecemos certas realidades que elas deixam de ser nossa responsabilidade. É exatamente por isso que elas devem ser a prioridade do feminismo.
O feminismo não foi criado e não continua a existir somente para um grupo privilegiado. E a intersecionalidade é e será a responsável pelo fim desse pensamento retrógrado, principalmente através da reivindicação do protagonismo do movimento e não pelas mãos de quem se apropriou da luta de grupos explorados. “Nós queremos ter voz e, principalmente, dar voz a quem é marginalizada e não encontra espaço para contar a sua história e vivenciar mais o seu feminismo”.
“Também acreditamos num feminismo que nos permite criticar feministas. Ser feminista não significa ser uma pessoa perfeita e ciente de tudo, muito menos nos dá imunidade aos questionamentos. Um movimento que não se permite ser questionado por quem faz parte dele fica estagnado”.
"Nosso feminismo ainda tem muito a crescer, mas sua prioridade está definida: ser inclusivo, intersecional, responsável e ético sempre".

Histórico de Lutas e Conquistas

A Revolução Industrial foi um fator que influenciou o movimento feminista. A mão de obra das mulheres era mais barata do que a dos homens e o lucro dos patrões seriam maior, então começaram a mandar os homens para a guerra e as mulheres começaram a trabalhar em fábricas.
Em 8 de Março de 1857, as operárias têxteis de uma fábrica de Nova York entraram em greve ocupando a fábrica, para reivindicarem a redução do horário de mais de 16 horas por dia para 10 horas. Estas operárias, que recebiam menos de um terço do salário dos homens, foram fechadas na fábrica, onde se deflagrou um incêndio, e cerca de 130 mulheres morreram queimadas.
 Em 1910, numa Conferência Internacional de Mulheres, realizada na Dinamarca, foi decidido em homenagem àquelas mulheres, comemorar o dia 8 de Março, como dia Internacional da Mulher.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), os 12 direitos das mulheres são:

*Direito a vida;
*Direito a liberdade e a segurança social;
*Direito a igualdade e a estar livre de todas as formas de discriminação;
*Direito a liberdade de pensamento;
*Direito a informação e a educação;
*Direito a privacidade;
*Direito à saúde e proteção desta;
*Direito a constituir e planejar a sua família;
*Direito a decidir ter ou não ter filhos quando tê-los;
*Direito aos benefícios do progresso cientifico;
*Direito a liberdade de reunião e participação política;
*Direito a não ser submetidas a torturas e maltrato.

    Nos anos 60 aos anos 80, a luta se baseia na questão da inferioridade feminina.  Grandes intelectuais e líderes feministas buscam o fim da discriminação do gênero que são contra a ideologia de que a mulher conquista sua felicidade em cuidar dos filhos e do lar. Protestos como a queima de sutiãs são marcos da busca da renovação da ideologia social deflagrada no momento.

 (Foto: Gabriela Oliveira)
    Apesar das grandes conquistas feministas terem se estabelecido no mundo atual, ainda não se pode dizer que é uma conquista mundial. Em alguns países a cultura machista impede quase que completamente a liberdade e a igualdade feminina. Um estudo da Fundação Thomson-Reuters apontou Afeganistão, Congo e Paquistão como os países mais perigosos para mulheres no mundo. Os motivos que tornam estes os piores lugares para o sexo feminino vão desde violência sexual e precários cuidados de saúde aos chamados "assassinatos por honra". Índia e Somália ficaram em quarto e quinto lugar, respectivamente.
O Afeganistão, país asiático, teve a pior avaliação em três categorias de risco importantes: saúde, violência não-sexual e discriminação econômica. Cerca de 87% das mulheres no país são analfabetas, apontou o estudo. Entre 70% e 80% das meninas e mulheres são obrigadas a se casar em matrimônios forçados. Ainda se recuperando da guerra civil entre  que deixou 5 milhões de mortos, a República Democrática do Congo ficou em segundo lugar na lista. O principal motivo que levou o país ao resultado na classificação foram os altos níveis de violência sexual. A campanha Mulheres Congolesas Contra a Violência Sexual diz que o número de mulheres violentadas por dia é de 40. Nesse país africano, 57% das mulheres grávidas têm anemia. O Paquistão, país vizinho do primeiro da lista, foi eleito o terceiro pior lugar no mundo para as mulheres viverem. Os especialistas listaram práticas culturais, tribais e religiosas como fatores de risco - incluindo ataques com ácido, casamento forçado (às vezes ainda na infância), punições por apedrejamento e outros abusos físicos. Noventa por cento das paquistanesas são vítimas de violência doméstica no país. As mulheres têm renda 82% menor do que os homens. A Índia, maior país democrático do mundo também é o quarto lugar mais perigoso para mulheres. O aborto de fetos do sexo feminino, o casamento infantil e altos níveis de tráfico humano e servidão doméstica são os principais motivos que colocaram a Índia nessa lista. Mais de 50 milhões de meninas "desapareceram" no último século devido ao infanticídio e ao aborto de fetos do sexo feminino. A Somália, um dos países mais pobres, violentos e sem lei, ficou em quinto lugar, segundo a Fundação Thomson Reuters. Os principais motivos são alta mortalidade materna, estupro, mutilação genital feminina e o casamento infantil. Na Somália, 95% das mulheres são vítimas da mutilação genital feminina, a maioria entre os 4 e 11 anos. 
Avanços e retrocessos

A história de Nada al-Ahdal, de apenas 11 anos, ganhou o mundo em julho de 2013. Nada parecia condenada ao destino de milhões de jovens mulheres em países muçulmanos: o casamento arranjado. Mas ela decidiu fugir de casa, e gravou um vídeo denunciando a situação, e o mesmo, em apenas dois dias, foi visto por mais de 5,6 milhões de pessoas no YouTube. Este episódio iniciou debates sobre a liberdade das mulheres no mundo islâmico e lançou luz sobre como a internet tem sido usada pelas muçulmanas para se fazer ouvir. Elas querem respeito, segurança, manter contato com amigos e familiares, correr atrás de carreiras e usar a rede como ferramenta de divulgação. Alguns exemplos mostram que estão conseguindo.
No Brasil, Após a promulgação da Lei Maria da Penha (2006) as denúncias de violência contra a mulher aumentaram em 600%, No entanto, possuímos ainda altos índices de violência doméstica. As principais causas são alcoolismo e drogas, além de pobreza e baixa escolaridade. As mulheres de baixa renda que sofrem com o problema têm acesso limitado à Justiça.
Tudo isso se não avaliarmos o dito “machismo estrutural”. Conforme especialistas, a imagem da mulher na publicidade brasileira "parou no tempo" e "não reflete avanços sociais". Como exemplo, publicidade de produtos de limpeza acabam sendo mostrados como "sendo usados com prazer pela mulher, que sempre aparece sorrindo, limpinha, mesmo que para muitas as tarefas domésticas não sejam tão realizadoras”.
No mercado de trabalho, a participação da mulher cresceu de 18,3 milhões em 2010 para 19,4 milhões em 2011. Mesmo assim o salário das mulheres em 2011 era 21% a menos que os homens. E veja a crítica ao movimento feminista feito pelo Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Marcos Feliciano:

“Quando você estimula uma mulher a ter os mesmos direitos do homem, ela querendo trabalhar, a sua parcela como mãe começa a ficar anulada, e, para que ela não seja mãe, só há uma maneira que se conhece: ou ela não se casa, ou mantém um casamento, um relacionamento com uma pessoa do mesmo sexo, e que vão gozar dos prazeres de uma união e não vão ter filhos. Eu vejo de uma maneira sutil atingir a família; quando você estimula as pessoas a liberarem os seus instintos e conviverem com pessoas do mesmo sexo, você destrói a família, cria-se uma sociedade onde só tem homossexuais, você vê que essa sociedade tende a desaparecer porque ela não gera filhos”.


Essa declaração, duramente criticada por movimentos feministas (...”atrasada ... não acompanha o avanço da sociedade") traduz pensamento majoritário entre os integrantes da Frente Parlamentar Evangélica.


Agora, a boa notícia: pesquisa da antropóloga Walquiria Domingues Leão Rêgo, da Unicamp, diz que nos últimos cinco anos está havendo uma mudança de comportamento nas áreas mais pobres e talvez mais machistas do Brasil. E essa mudança se deve, em parte, ao dinheiro do Bolsa Família, que trouxe poder de escolha às mulheres. Elas agora decidem desde a lista do supermercado até o pedido de divórcio.
Mais de meio século depois da pílula anticoncepcional, uma revolução feminista no sertão, silenciosa e lenta, está em curso. O interior do Piauí, o litoral de Alagoas, o Vale do Jequitinhonha, em Minas, o interior do Maranhão e a periferia de São Luís são o cenário desse movimento. Nos últimos cinco anos, Walquiria acompanhou, ano a ano, as mudanças na vida de mais de cem mulheres. Foi às áreas mais isoladas para fazer um exercício raro: ouvir da boca dessas mulheres como a vida delas havia (ou não) mudado depois da criação do programa. Adiantamos parte das conclusões de Walquiria. A pesquisa completa será contada em um livro, a ser lançado ainda este ano.

“Há mais liberdade no dinheiro”, resume uma das entrevistadas de Walquiria. As mulheres são mais de 90% das titulares do Bolsa Família. Qual o significado dessa opção do governo por dar o cartão do benefício para a mulher: “Quando o marido vai comprar, ele compra o que ele quer. E se eu for, eu compro o que eu quero.” Elas passaram a comprar Danone para as crianças. E a ter direito à vaidade. Walquiria testemunhou mulheres comprarem batons para si mesmas pela primeira vez na vida. Finalmente, tiveram o poder de escolha. E isso muda muitas coisas. “Boa parte delas têm uma renda fixa pela primeira vez. E várias passaram a ter mais dinheiro do que os maridos”, diz Walquiria. Mais do que escolher entre comprar macarrão ou arroz, o "cuidar do dinheiro" permitiu a elas decidir também se querem ou não continuar com o marido. Walquiria relata ainda que aumentou o número de mulheres que procuram por métodos anticoncepcionais. Elas passaram a se sentir mais à vontade para tomar decisões sobre o próprio corpo, sobre a sua vida.

É claro que as mudanças ainda são tênues. Ninguém que visite essas áreas vai encontrar mulheres queimando sutiãs e citando Betty Friedan. Mas elas estão começando a romper com uma dinâmica perversa, descrita pela primeira vez  pelo filósofo inglês John Stuart Mill. Em 1869 ele escreveu "Sujeição das Mulheres", onde ataca o argumento que dizia que as mulheres são naturalmente piores do que os homens em certos aspectos e que, por isso, elas deviam ser desencorajadas e proibidas de realizarem certos atos. De acordo com Mill, as mulheres são treinadas desde crianças não apenas para servir aos homens, maridos e pais, mas para desejar servi-los. 

Então... quase 150 anos de história, de avanços e retrocessos, e de descobertas de que podemos desejar mais do que isso. Desejar e construir. Como diz uma amiga: temos que nos descobrir vacas, nós (e as vacas) não sabemos a força que temos. Mulher é tudo vaca...

Beijos a todxs, obrigada...

SantuzaTU






















segunda-feira, 21 de julho de 2014

SOBRE AMIGOS... E HISTÓRIA... PARA A VIDA.

Meu querido Rafa... não consegui recortar e colar... tá tão bom!!! fiquei tão feliz!!! aí publiquei na íntegra... estou revendo a História do Feminismo e mando, tá? beijos carinhosos... obrigada pela sua amizade. TU



Minha amada TUTUzinha,

Li mais de cinco vezes seu texto sobre o amor romântico, até os comentários e também o seu, sobre como te impressiona o “eu” fora das pessoas em seus comentários, o se ausentarem como você disse, como se não fizessem parte desse tempo (ainda) em que vivemos impregnados pelo modelo de relação vassalo/senhor (ou senhor/escravo ou autoritário/submisso, como queira... acabo de ouvir uma palestra sobre competências do líder e o palestrante disse de uma que ele considera importantíssima: o temor, o líder impor temor!!!), relações assimétricas, isso não somente na relação intima mas em todos os níveis de relação, como acabo de ouvir! Tutu, você falou da necessidade de humildade, tão confundida na nossa cultura com humilhação, daí nossa dificuldade em desenvolver essa tão imprescindível virtude. Me lembro de conversas nossas: é a humildade que nos traz a noção de tamanho... que não é estática, e sim de onde começamos a construir para chegar onde queremos... é a humildade que nos dá a noção de tamanho e nos ajuda na auto estima (que também é construída) e que gera o amor (próprio e ao outro)... boas conversas...

E não pude também deixar de lembrar outras maravilhosas conversas sobre nosso grande inspirador, entre outros, Friedrich W. Nietzsche. Sim, também reli seu post de 23/abril/2013, quando você o coloca na galeria de SBCences famosos com o belíssimo post: Quem não for louco que atire a primeira pedra. E fui ler de novo a  segunda “Consideração Extemporânea”, escrita em 1874, intitulada “Sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida”, e tão atual...penso que essa alienação do “eu fora” tem tudo a ver com uma cultura que não deseja o sentido histórico, pois para a reprodução de tal modelo (aquele do senhor/escravo) é necessário a “naturalização” de vários conceitos, idéias... formas de ver (e reproduzir) o mundo. 

Como, por exemplo, o machismo estrutural, não é TU? Sei que você tem pronto uma pesquisa sobre a história do feminismo no mundo e no Brasil, e quero conhecê-la, não sem antes oferecer minha contribuição com alguns comentários e recortes sobre esta obra do nosso ídolo, pois acredito que ajudará todxs a se colocarem nessa história feminina, que é a de todxs nós, tanto no sentido de nos avaliarmos como cúmplices na reprodução de machismos que nos fazem sofrer (assim como fazemos sofrer os outros), como também nos colocarmos como sujeitos ativos na construção de relações mais livres e bonitas. E que aconteça cada vez menos, por exemplo, aquele caso que você me contou que te fez sentir tão mal: o da pessoa dizendo que todas as feministas são chatas, aí você disse que não e que você era feminista... aí a pessoa te coloca como exceção, você está “acima” das feministas... é muito inteligente... aí, parece até um elogio!!! porque machuca tanto? Por que, ao me colocar num lugar de diferente do que ocupo, reforça todo o seu preconceito e fere exatamente a categoria a qual pertenço... isso você me dizendo e eu percebendo o quanto fazemos isso, daquela maneira “sutil do tamanho de uma patada de elefante” como você diz... veja como a ausência de história nos faz repetir pré-conceitos.


Mas este é somente um exemplo ausência de história... para a vida. Vamos a ele: Nietzsche começa citando um seu interlocutor, Goethe: “de resto, abomino tudo aquilo que me instrui sem aumentar e estimular imediatamente a minha atividade”... que serve como inspiração introdutória para a discussão polêmica, porém fecunda, sobre o valor e o não valor da história para a vida. Para Nietzsche, a instrução que não serve à vida não deve ser alimentada porque se trata de um saber infecundo, portanto paralisador da atividade humana. A crítica de Nietzsche é direcionada ao método histórico dos historiadores modernos (da época – Alemanha de mais ou menos cem anos atrás,  e ainda atuais), os quais disseminam na sociedade alemã um saber histórico estritamente supérfluo, que toma como valioso o desnecessário e esquece assim de privilegiar as virtudes necessárias para o desenvolvimento da vida. Ele, então, nos incita a refletir sobre como podemos utilizar do passado sem esquecer-se do presente que nos liga à vida. 

Tu, Nietzsche lembra nosso outro grande inspirador, Guimarães Rosa, quando diz que viver é muito perigoso, pois a mesma coisa que me salva pode me matar. Ele, de outra maneira, diz que, com nossas virtudes também cultivamos, ao mesmo tempo, nossos erros, e se uma virtude hipertrofiada – tal como o sentido histórico de nosso tempo – pode se tornar tão boa para a degradação de um povo quanto um vício hipertrofiado. Assim, o homem que vive a-historicamente, como o animal, vive apenas o presente. Já o homem supra histórico é determinista, atolado na história. Precisamos da história, na justa medida, para a saúde de um indivíduo, de um povo e de uma cultura. Olhar para trás, na consideração do processo, mas tendo como referência balizadora o presente. Isto implica desenvolver uma atitude de lembrança e, ao mesmo tempo, de esquecimento, para que a vida não seja arruinada pelos excessos de memórias.  Para Nietzsche, nossa memória deve funcionar como nosso intestino, ou seja, retendo o que serve para a vida e jogando fora o que não está ligado a ela, sabendo lembrar e esquecer...

Esta capacidade ele chama de “força plástica”, o que permite a cultura desenvolver-se, transformar-se, produzir o novo, o belo, e o que torna possível reverter o estado caótico do indivíduo, do povo, da cultura, contaminados pela “febre historicista” (do homem supra histórico, aquele da história monumental, que desenvolve uma fixação pelo passado, mumifica-o, fazendo-o esquecer-se do presente, um conhecimento histórico nocivo, vicioso, hipertrofiado). Para evitar que o passado se torne o coveiro do presente, segundo Nietzsche, é necessário desenvolver na cultura a força plástica, que é o lembrar e o esquecer necessários para o desenvolvimento da vida. Sem essa força plástica é impossível que o homem não seja soterrado pelo passado.

Pensando nisso, Nietzsche faz uma distinção conceitual, baseada em três formas de se olhar para o passado, a saber: história monumental, história tradicional e história crítica. Esta última é a solução, se aplicada em justa medida, para que a pessoa comprometida com a vida e com o presente, não incorra nos erros das duas primeiras (história monumental e história tradicional), as quais mumificam o homem no passado, ao retirar-lhe o sentido da vida, o qual se encontra no presente.

À história, para Nietzsche, cabe a tarefa de desenvolver o novo, a partir do olhar para o passado. Suas três formas de se olhar o passado vale a pena ser vista:  
a)     História monumental: Para Nietzsche, enquanto a historiografia se basear na história monumental, fechando-se somente na análise dos feitos dos grandes homens, a história será uma deformação do real. Segundo ele, o homem que quer fazer grandes coisas tem sim necessidade do passado, mas não pode deixar que os mortos enterrem os vivos.
b)     História tradicionalista: Segundo ele, os historiadores conservacionistas seriam aqueles que cultivariam, se possível, todos os objetos do passado, como um “ferro-velho ancestral”, onde tudo o que fosse bolorento, velho, seria digno de ser guardado como patrimônio para a sociedade vindoura. Esta forma de avaliar o passado atribui às coisas um valor semelhante, nisto estaria o seu erro. É um problema avaliar tudo a partir da mesma escala de valores porque faz com que as coisas minúsculas tenham a mesma importância dada às coisas mais excelentes. Essa paixão pelo antigo e, conseqüentemente, veneração do pretérito, desencadeia no historiador um espírito colecionador, de forma que o novo, o que estaria em vias de florescer, é rejeitado e esquecido em detrimento do velho, do bolorento. Quando a história deixa de servir ao presente para mumificar-se no passado, esta perde o seu fôlego, o que a degenera e a faz sucumbir. É contra esse tipo de história que Nietzsche insurgir-se-á com mais força.
c)      História crítica: Além da forma monumental e tradicional de olhar para o passado, tem-se um terceiro modo, o crítico. Para Nietzsche, a história crítica tem a função de interrogar o passado, colocando-o frente ao tribunal da história, para julgá-lo de acordo com as inquietações propostas pelo presente. O problema desta forma de se olhar o passado estaria no exacerbado senso de justiça que o historiador desencadearia, o qual o faria condenar todo o passado, porque o sentimento de justiça não pode ser considerado imparcial. Desta forma, o seu veredicto sempre seria a favor de uma determinada época em detrimento de outra. A busca pela justiça levaria o historiador a condenar toda injustiça, isto é, todas as formas de representação do passado.

E aqui, de novo, ele fala sobre a capacidade de lembrar e de esquecer: ... a solução para não condenar todo o passado é exercitar o esquecimento. Desta forma, abrindo mão de um determinado recorte do passado, a vida ganha seu fôlego e se desenvolve. No entanto, assim como a vida exige o esquecimento para poder se desenvolver, ela também exige que se rasgue o véu nebuloso que envolve todos os fatos. Para isto, é necessário o uso da justiça, que é sempre injusta em suas formas de examinar o passado. Na opinião de Nietzsche, este é um processo perigoso para vida, porque um julgamento incoerente com determinada época pode desencadear no presente e no futuro algo perigoso para a saúde de um homem, de um povo, de uma cultura.

Dá trabalho... Viver é perigoso... Por que ainda não se sabe... "Por que aprender a viver é que é o viver mesmo"... E é isso é que é bonito... Vale a pena, “quando a alma não é  pequena”...

Tutu, minha querida, espero ter te ( e/ou nos, a todxs nós...) oferecido uma introdução à História do Feminismo, que estou ansioso por ler. Recorte e cole o que você achar pertinente.

No mais, minha eterna admiração e amor...

Raphael
















terça-feira, 8 de julho de 2014

CONVERSAS SBCENSES: ESTRUTURAL (E CRUEL) É O AMOR ROMÂNTICO!!!




Então, o SBC já conversou sobre o racismo estrutural, sobre o machismo estrutural (vejam post de 19/jan/2014, entre outros...)

Agora vamos conversar sobre o ROMANTISMO ESTRUTURAL, irmão gêmeo do Machismo Estrutural, e que nos faz tanto mal, a todxs nós, homens e mulheres. Por que é nosso dever falar disso, e nosso objetivo criar consciência e combater esse vírus da nossa existência.

O amor romântico nos é imposto, desde muito cedo, como única forma de amor. Contém a ideia de que duas pessoas se transformam numa só, havendo complementação total e nada lhes faltando. Prega que o verdadeiro amor é para sempre, que não é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo, que quem ama não sente desejo sexual por mais ninguém, que o amado é a única fonte de interesse do outro, que um terá todas as suas necessidades atendidas pelo outro, e por aí vai...

Um dos conceitos de MITO diz daquelas “verdades” que nos são incutidas desde que nascemos e que jamais devemos questionar sobre as mesmas. E isso determina a nossa maneira de pensar, sentir e agir. O mito do amor romântico nos diz que para cada homem no mundo há uma mulher que “foi feita para ele” e vice-versa. Além disso, o mito implica que há um só homem destinado a uma mulher e uma só mulher para um homem e que isso foi predeterminado “nas estrelas”.

Imaginem a horrível confusão e sofrimento que este mito gera: prá existir um NÓS tem que existir dois EUS. Um EUZÃO, com um zero à esquerda, não forma um NÓS!  Porém, um dos resultados da vivência do Amor Romântico é, sem dúvida, a perda da individualidade, uma “juntividade” que anula, quase sempre, os dois EUS. Outra confusão diz respeito à triste luta das cobranças e insatisfações dos dois, cada um querendo que o outro se molde à sua idealização. “Ele é uma pessoa linda... Ela é uma pessoa linda... Os dois juntos formam um quadro feio e triste...”  

“Desistem de seus prazeres e projetos pessoais, se afastam dos amigos, sempre apostando na satisfação mágica de todas as necessidades. Participam sem cerimônia da vida do outro, mas o controle sufocante que daí decorre não é evitado. É aceito como necessário para garantir a complementação total”... Esta afirmação é de Regina Navarro, psicanalista e escritora, autora de vários livros sobre relacionamento afetivo sexual.

O amor romântico é um desses fenômenos psico­lógicos realmente arrasadores que surgiram na história do Ocidente. Foi algo que alterou permanentemente nossa visão do mundo. Vamos à história, pois ela está inteiramente presente, agora, em nossas vidas...







"Não podendo suportar o amor, a Igreja quis ao menos desinfectá-lo, e então fez o casamento.” Baudelaire







Esse ideal amoroso começou no século XII, mas só passou a ser uma possibilidade no casamento a partir do século XIX. Antes, os casamentos se davam por interesses financeiros. Como fenômeno de massa começou a partir da primeira metade do século passado, segundo alguns autores e autoras, quando todxs passaram a desejar casar por amor.

Antes do Romantismo, o amor era algo representado de maneira ousada, provocante, aventureira ou divina. Quem lê a epopeia de Camões e sua “Ilha dos amores”, ou as farras sexuais nos poemas de Bocage, pode perceber um amor que vai muito além de um par. Mas, com o final das grandes cruzadas e descobrimentos, nações começavam a se estabelecer, e as pessoas começavam a prosperar em sua terra natal. Havia a necessidade de um novo modelo a seguir, um modelo de amor que poderia ser vivido dentro do lar, na vizinhança e entre os familiares. A dama deve desejar o cavaleiro, que lhe corteja gentilmente; os dois se casam e vivem felizes para sempre. Aos poucos, esse amor romântico entrava em nossa história para nunca mais sair, pelo menos até os dias de hoje!


O ideal do amor romântico foi aparecendo na socieda­de ocidental durante a Idade Média, pela pri­meira vez na literatura no mito de Tristão e Isolda, de­pois nos poemas e nas canções de amor dos trovadores. Era conhecido como “Amor Cortês” e tinha por mode­lo o intrépido cavaleiro que honrava uma bela dama e fazia dela a sua inspiração, o símbolo de toda a beleza e perfeição, o ideal que o incentivava a ser nobre, espi­ritualizado, refinado e voltado para assuntos “eleva­dos”.

Li há algum tempo um texto super interessante, minhas primeiras reflexões sobre esse “estado de espírito arrasador”: “O amor cortês”, de C.S. Lewis, onde o autor propõe-se delinear o surgimento do desse novo sentimento. Reconstrói, então, historicamente, o que seria tal “estado de espírito” – suas causas e características – perguntando-se sobre o que teria surgido primeiro: a poesia nova ou a nova emoção – com o intuito de fornecer dados para compreendermos melhor nosso presente e talvez até nosso futuro. O autor se pergunta: o novo sentimento ou a poesia, o que veio primeiro? E afirma: a vida e a literatura estão intrinsecamente ligadas. Sim, a arte em geral, e também a poesia e a literatura, ao mesmo tempo, reproduzem/refletem um momento histórico e criam/constroem/antecipam a  história, produzindo valores, formas de pensar e sentir, “estados de espírito”. Vejam, por exemplo as letras do Djavan: “Só sei viver se for por você”... e vejam, em contraposição, a linda letra do Gilberto Gil “Drão”... onde ele mostra o amor necessariamente construído: “tem que morrer prá germinar...”

Voltando ao texto do Lewis: ele considera uma “revolução” o surgimento em fins do século XI, no sul da França (Languedoc), de uma espécie nova de amor e da poesia de forma lírica que o celebra e lhe dá forma. Trata-se da poesia trovadora, de estilo artificialmente requintado, resplandecente ou enigmático. O sentimento celebrado é o amor com as seguintes características ou forma peculiar de se vivenciar: 

·        humildade e cortesia (a paixão romântica surge do antigo molde da relação vassalo-senhor. A bem amada era o senhor feudal a quem se prestava cortesias e a postura do cavaleiro era de humildade em relação à dama);
·        associação amor-adultério (na sociedade feudal o casamento nada tinha a ver com o amor, a mulher era dama e veneração dos vassalos e, ao mesmo tempo, propriedade do marido. O casamento era o pano de fundo, contrastando com a ternura e delicadeza do novo sentimento. Logo, qualquer idealização do amor sexual nesta sociedade onde o casamento era simplesmente utilitário deveria começar por uma idealização da dama e da relação);
·        e a religião amorosa do deus amor (a atitude do amante com a dama é semelhante à devoção à Virgem ou a adoração a Deus).   

   O amante ou enamorado é um ser abjeto, escravo ou prisioneiro, sempre chorando, ajoelhado aos pés da dama inflexivelmente cruel. Ele aspira às virtudes de obediência à dama, de aquiescência as suas repreensões, as mais injustas. Trata-se de uma servidão de amor associada e modelada na servidão vassalo-senhor feudal, onde o amante é servo da dama e até a trata como “minha senhora” e tem atitudes chamadas de “feudalização do amor”.


O autor situa tal Amor Cortês como uma parte da vida na corte, como a flor e a semente dos costumes aristocráticos onde se distingue os cavalheiros dos plebeus, sendo possível apenas aos “polidos”. Na poesia, o poeta ama a mulher de outro homem e pouco se importa com o marido. Mas não é um leviano galanteador: seu amor é uma emoção trágica e quase desesperada, salva por sua fé no Deus do Amor que não abandona seus crentes adoradores.

Trata-se, pois, de uma revolução, de uma quebra do passado clássico, que vai constituir a base da literatura europeia durante 800 anos, a paixão romântica da literatura inglesa do século XIX e até nossa ficção popular ainda revela o ideal de “felicidade" baseada no amor romântico bem sucedido.

Ovídio, o “mal compreendido”, foi o escritor da Idade Média que mais cantou o Amor Cortês. Não se sabe se ele ironizava ou estava reproduzindo em verso e prosa a nova forma de amar emergente. Nos versos ele trata dos desejos das mulheres (amantes de sua fantasia e árbitros de seu destino, que o castigam com uma disciplina de ferro e impõem-lhe uma vida de escravo).  Recomenda uma conduta vergonhosa e absurda com a mulher amada, fazendo uma confissão cômica dos abismos a que esse ridículo desejo pode levar o homem.

Enfim, O amor romântico é o ideal sonhado por qualquer personagem de filme ou novela, assim como também é o ideal de quase toda a sociedade ocidental moderna, o nosso ideal, de todxs nós (ou quase...). Desde muito cedo somos levados a acreditar numa relação amorosa fixa, estável e duradoura como única forma de realização afetiva. Passamos então a vida esperando o momento de encontrar “a pessoa certa”, para, a partir daí, vivermos felizes para sempre.
 



 Mas, já vimos, o amor romântico é uma mentira. Mente sobre as mulheres, sobre os homens e sobre o próprio amor. É uma mentira contada há tantos séculos que as pessoas querem vivê-la de qualquer jeito. Na realidade, amam o fato de estar amando, se apaixonam pela paixão. Sem perceber, idealizam o outro e projetam nele tudo o que desejam. No fim das contas, a relação não é com a pessoa real, que está do lado, e sim com a que se inventa de acordo com as próprias necessidades.

É claro que é possível viver um tipo de amor bem diferente, sem projeções e idealizações, longe da camuflagem do mito do amor romântico. Para isso precisamos, primeiro, ter coragem de abrir mão das nossas antigas expectativas amorosas e depois então, torcer para que mais pessoas façam o mesmo. Descobrindo outras formas de amar podemos experimentar sensações até agora desconhecidas, mas nem por isso menos excitantes.

Uma mulher me contou que se sentia mal entre suas amigas. Sentia-se julgada como se não fosse capaz de segurar um homem, de sustentar uma relação afetiva, um casamento. Algumas mulheres estão se desenvolvendo na vida profissional mas continuam procurando um homem como se isso lhes fosse trazer o "sentido da vida", nada mais faz sentido. Outras namoram e casam sem amor só por medo de ficarem sozinhas e ter de responder ao mundo – e a elas mesmas – essa pergunta chata: “Nossa, mas vocêêêê, solteira? Porque, se é tão bonita?”. E o tanto que as circunstâncias descritas acima interferem na auto estima!!! É muito cruel!!! 

Também já ouvi a revelação de mulheres, em relação à vida profissional, do medo de não serem bem sucedidas. Sabe-se que esse medo pode aparecer de maneira invertida: na verdade, o medo é de SER BEM SUCEDIDA, pois isso a faria rever de maneira drástica esses padrões tão enraizados. Uma escritora contou o caso de uma grande executiva que era solteira, mas usava uma aliança só para se sentir mais respeitada no seu meio de trabalho. Quer dizer, uma mulher solteira é menos competente do que uma casada? Ou será que ela faz isso para fugir da visão estereotipada “bem sucedida, mas sem vida pessoal”? É de assustar que ainda hoje algumas mulheres sejam julgadas negativamente apenas porque não estão dentro de um casamento! Sim, ainda vivemos esse “bulling social”. 

E o que dizer dos homens que ainda vivem (em sua maioria, talvez...) a cisão puta/pura, as mulheres que servem para ficar e as que servem para casar?

Tudo isso não é muito triste e cruel? Crescemos com essa idealização do casamento e do amor romântico de modo que nos tornamos aprisionadxs psicologicamente e tentamos ajustar o espírito e a mente dentro de um roteiro prescrito há séculos.

O cinema, as propagandas e diversos outros produtos culturais cooperam para manter essa ideologia de que o casamento heterossexual é o máximo de realização que uma pessoa pode esperar. Somos levadxs a transformar em “destino de vida” o que, na verdade, é uma circunstância, um “bom encontro que dura enquanto for bom”. Nada contra o casamento, nem contra a monogamia, mas é de se questionar que esse tipo de relação seja idealizada como a forma mais viável e aceitável de relação. Que seja considerada o “final feliz” do indivíduo, sua realização pessoal, e que quem não segue esse roteiro é consideradx fracassadx e/ou promíscux.

O Amor Romântico se repete também com pessoas que saem do modelo homem/mulher. Quem comenta sobre isso é Gilmaro Nogueira (psicólogo, especialista em Estudos Culturais, História e Linguagens) citando a feminista Adrinne Rocha: “...mas essa não é uma questão apenas de mulheres. Muitos homens que buscam relações afetivas com outros, assim como mulheres que buscam outras mulheres também descrevem o parceiro(a) pretendido (a) como: a pessoa certa; alma-gêmea ou pessoa que traga felicidade".

Ahhh... este modelo de idealização do outro acontece (não sem causar danos...) em todos os níveis de relação. Quem não conhece filhxs se matando emocionalmente, abandonando a construção da própria identidade, em função da realização do ideal da mãe/pai imposto a elxs? E o trabalhador que idealiza a figura do chefe? Não são, tais relações, de certa forma reproduções do modelo vassalo/senhor feudal?

Outro dia ouvi de um terapeuta: "a cliente tinha me idealizado tanto, me colocado num pedestal tão elevado, que um encontro verdadeiro entre nós não era possível" (embora este caminho da idealização seja ainda muito procurado, tanto por alguns psicólogos como por outros profissionais). Um grande perigo dessas relações idealizadas (ou mitificadas) é que perdemos a condição de humanização, muitas vezes pulamos da idealização para o desprezo. Quanto mais alto o coqueiro maior é o tombo, perigo para os dois protagonistas desse tipo de relação, o que mitifica o outro e o que é mitificado.

Então, conhecer os mecanismos do amor romântico nos dá a possibilidade de mudar esse modelo enferrujado. A relação amorosa pode e deve ser livre, sem pressões, questionamentos ou dúvidas. Existem mil e uma maneiras de amar, no lugar dessa maneira "romântica" de limitar o amor!

Não conheço ninguém, nenhum par que, ao se sentirem envolvidxs se perguntem: e agora, o que faremos? que relação queremos construir? Talvez a essa construção poderemos dar o nome de AMOR. Conheço muito mais o que podemos chamar de PETRIFICAÇÃO, o "buraco" do "pronto", como se tudo estivesse dado (namorar, casar, ter filhos...); conheço, por outro lado, pessoas que, ao se sentirem envolvidas e o outrx não quer (ou não pode) corresponder a essa programação determinada, saem da relação (de repente ou de fininho, não sem causar traumas a ambxs). Também vejo tristes desencontros causados por pessoas que, de certa forma, sabem o que não querem (o padrão) mas não sabem o que querem, o que propor. Vejo ainda outras relações tristes porque querem se enquadrar (e/ou enquadrar o outrx) nos padrões.

Enfim, acredi­to que se todxs nós tentarmos compreender os mecanismos psicológicos que atuam por trás do amor romântico e aprender a lidar com eles conscientemente, teremos nas mãos a chave para novas possibilida­des de relacionamento, tanto com os outros como com nós mesmxs. A grande questão levantada não é amar ou não amar... Trata-se de amar não rimando amor com dor, mora na filosofia!?!?

Vamos conversar mais sobre este assunto? Sim! considero a única maneira de crescer e criar novas possibilidades de amar melhor...

Beijos a todxs...

 SantuzaTU

PS.: Por favor! Não confundam a IDEOLOGIA DO AMOR ROMÂNTICO com o ROMANTISMO enquanto postura de vida (otimismo, esperança, alegria, namorar com a vida). Não sejamxs céticxs!!! Amar sempre vale a pena... de todas as maneiras possíveis... quando a alma não é pequena, já dizia o poeta...