sexta-feira, 29 de julho de 2022

O SBC homenageia um grande cinéfilo


Não é novidade o SBC falar bem do cinema francês. "Mesmo quando é ruim é bom". Tanto falamos que recebemos o pedido de uma resenha do festival Varillux deste ano, que acaba de acontecer. E sempre, passando o festival, alguns filmes entram de novo em cartaz, sendo uma ótima oportunidade ou de revê-lo e, se você não viu no festival, corra para o cinema... e veja.

Neste ano o Festival fez homenagem aos 400 anos de Molière, apresentando o filme AS AVENTURAS DE MOLIÈRE, de 2007, direção de Laurent Tirard: "em 1644, Molière tem apenas 22 anos. Cheio de dívidas e perseguido por oficiais de justiça, ele insiste em encenar tragédias nas quais é inegavelmente ruim. E então um dia, depois de ser preso por credores impacientes, ele desaparece". Como quase todo filme francês, o riso e a diversão também nos ensinam muito sobre a vida e as relações. 

Depois do filme fomos conhecer um pouco sobre o homenageado do festival:

Jean-Baptiste Poquelin, conhecido pelo pseudônimo de Molière, nasceu em Paris, França, 1622 e morreu em 1673, com 51 anos. Considerado o pai da Comédia Francesa, Molière chegou em um cenário onde a comédia era inspirada na italiana e na espanhola e se resumia a intrigas mirabolantes. Começou com o estilo da farsa, baseada em caricaturas, e foi oposição ferrenha a alcunha de farsista. 
Usou suas obras como ferramenta de crítica aos costumes da época, abordando temas cotidianos com um olhar crítico e satírico. Criticou o pedantismo dos falsos sábios, a pretensão dos burgueses e a corrupção em todos os setores da sociedade. Apoiado por Luís XIV, admirador de suas sátiras, comédias e tragédias, tornou-se o provedor dos divertimentos do rei.
Molière produziu ainda uma série de comédias e tragédias para o divertimento do rei, são elas: Psiché, O Burguês Fidalgo e As Amantes Magníficas e As Mulheres Sábias, retomando então o teatro de conteúdo social e fazendo grande sucesso.
Além das críticas sociais, abordou também como temática os grandes defeitos e virtudes da alma humana. Sentimentos como inveja cobiça, orgulho, avareza e arrogância são objetos importantes para a composição de suas obras. Pela temática de suas obras, enfrentou uma luta constante contra as acusações de imoralidade e as proibições.
Em função do realismo e do tom cômico de suas obras, recebeu, durante grande parte de sua carreira artística, protestos, perseguições e até ameaças de morte. Esta oposição vinha, principalmente, dos setores mais conservadores da sociedade, como a burguesia, a Igreja e os políticos, incomodados com as temáticas das obras de Molière.
Uma frase sua, super atual: 

"Todos os vícios, quando estão na moda, passam por virtudes".

Um outro filme francês mais antigo, um clássico exibido neste festival, foi a comédia PAPAI NOEL É UM PICARETA, filme de 1982, do diretor Joan-Marie Poiré

Sinopse: A linha direta parisiense de SOS é interrompida na véspera de Natal pela chegada de personagens marginais excêntricos que causam desastres em cadeia. Realizado pela trupe Splendid, este filme é a adaptação de sua peça de mesmo nome, criada em 1979.

"Lançado nos cinemas em 1982, Papai Noel é um Picareta continua sendo uma das maiores comédias populares. (…) O filme marca um apogeu do “tropa do esplêndido”, com seu espírito iconoclasta, essa arte delicada de caricatura feroz". (no jornal Ouest-France)

Fora o Clássico e o Homenageado, temos 17 filmes recentes, de 2021 e 2022, todos ótimos, alguns melhores e que nos levam a grandes reflexões.

Concordamos inteiramente com a fala dos curadores do festival, Emmanuelle e Christian Boudier:

"O mundo está mudando, e o mundo das imagens está mudando junto..."

"O cinema não só é inspirado por nossas vidas, mas também as transforma. O cinema francês, mais do que qualquer outro, tem a capacidade singular de se inspirar em tudo o que perturba a nossa sociedade. Nossos medos, nossas desordens, mas também nossas esperanças e nossas alegrias refletem-se nele, de forma fiel, exagerada ou minimalista, mas sempre criativa e surpreendente.
Os filmes da edição de 2022 apresentam as espectadores uma visão de mundo sem dúvidas menos leve do que o habitual: a pandemia, a guerra às portas da Europa, as migrações forçadas, as ameaças ambientais, a ascensão dos extremos. Mas essa urgência os torna ainda mais ricos, mais relevantes, mas inspiradores."

A seguir nossa indicação dos filmes que mais nos tocaram :

O primeiro deles O ACONTECIMENTO, já conversamos no nosso post do dia 21 de julho, um drama com a Direção de Audrey Diwan, adaptação do romance de Anne Ernaux: Na França de 1963, Anne, uma estudante promissora, engravida. E decide abortar. "Trata-se de um filme justo em sua dureza, que opõe um olhar livre e destemido à moralidade obtusa de uma sociedade que aprisiona os corpos das mulheres", como analisa LES FICHES DU CINÉMA. Leiam nossas conversas sobre este filme no post citado. 



Outro filme sobre nós, mulheres, e nossas lutas diárias: CONTRATEMPOS, direção de  Eric Gravel.

"Julie luta sozinha para criar seus dois filhos no subúrbio e manter seu emprego em Paris. Quando ela finalmente consegue uma entrevista para um cargo correspondente às suas aspirações, uma greve geral eclode, paralisando o transporte. Ela então embarcará em uma corrida frenética para salvar seu emprego e sua família". 

"CONTRATEMPOS nos faz vivenciar o tempo que nos escorre pelos dedos, na organização padrão de nossas vidas..." diz o JORNAL LE MONDE.

Vencedor dos prêmios de Melhor Diretor e Melhor Atriz (Laure Calamy) no Festival de Veneza. Indicado para a categoria de Melhor Filme


Para compreendermos melhor o mundo que vivemos, necessário ir à história. E o filme O DESTINO DE HAFFMANN, Direção de Fred Cavayê, adaptação de peça que recebeu quatro prêmios Molière, nos conta lados obscuros dessa história.
"Paris, 1941. François Mercier é um homem comum que sonha em começar uma família com a mulher que ama. Ele trabalha para um talentoso joalheiro. Mas, frente à ocupação alemã, os dois homens não terão outra escolha senão concluir um acordo cujas consequências perturbarão seus destinos".

Vencedor nas categorias Melhor Atriz e Melhor Filme (Prêmio do Público) no Festival du Film de Sarlat 2021.


OS JOVENS AMANTES, direção de Carine Tardieu, é um filme delicado e comovente, que pretende mostrar que o amor entre dois seres é muito mais poderoso do que as convenções sociais.

"Dois amantes se reencontram no corredor de um hospital, 15 anos após o primeiro contato. Shauna tem 71 anos, enquanto Pierre tem 45. Opostos, mas hipnotizados um pelo outro, eles se reconectam, enquanto Shauna, que já é mãe, avó e viúva, quer reafirmar que ainda é uma mulher e que a diferença de idade entre eles não importa".

"Respiramos o mesmo ar!"... é a mensagem do filme, nos dizendo principalmente sobre o preconceito de idade, porém, muito mais do que isso, sobre outros preconceitos "aprendidos" que tornam nossas vidas mais pobres. Pois o preconceito se origina no medo do diferente, quando, na verdade, o diferente nos enriquece. 

E a arte nos ajuda a abrir nossas cabeças e corações. Para nós do SBC, este filme dialoga com Adélia Prado, grande poeta mineira:

A Serenata
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele virá com a boca e mão incríveis
tocar flauta no jardin.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
me pego chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?


E vale a pena, também, reler ou ler pela primeira vez nosso post de 8 de julho, quando o SBC conversa sobre VELHICE e HISTÓRIA, sobre ETARISMO... e também sobre cinema.

Outros filmes muito bacanas... não vamos falar de todos aqui. O festival já acabou, mas alguns voltam ao cartaz nos cinemas... outros já estão nas plataformas...

Mas onde está a homenagem do SBC ao grande cinéfilo? Certamente não é o Molière, no seu tempo não havia cinema... então:

Caetano Emanoel Viana Veloso, famoso baiano que fará 80 anos no próximo 7 de agosto, nasceu em 1942

A paixão de Caetano pelo cinema é antiga. Filmes neo-realistas de Frederico-Fellini, como La Strada e Noites de Calíbria são tidos por ele como referência cinematográfica. Não por acaso compôs uma canção a qual intitulou Guilietta Masina, atriz que era musa do Fellini.


E, bastante interessante para nós, foi o diálogo, através do Caetano,  entre o cinema francês e o cinema brasileiro. Na música CINEMA NOVO Caetano faz citação de filmes que o marcaram, enquanto cinéfilo,  filmes brasileiros que devem ser vistos por todas as pessoas que se interessam pelo país, pela nossa história no século passado e pelo cinema: Deus e o diabo na Terra do Sol, do diretor Glauber Rocha, filme de 1964; Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, filme de 1963, baseado no livro do mesmo nome de Graciliano Ramos;
Os fuzis,  filme brasileiro e argentino de 1964, drama dirigido por Ruy Guerra. Juntamente com Vidas Secas e Deus e o Diabo na Terra do Sol, este filme faz parte da chamada TRILOGIA DE OURO do Cinema Novo.

E mais: O padre e a Moça, filme de 1967 do diretor Joaquim Pedro de Andrade;  e A Grande feira, do diretor Roberto Pires, filme de 1961; Os cafajestes, drama de 1962, escrito e dirigido por Ruy Guerra; E O desafio, filme de 1965, direção de Paulo Cesar Saraceni.

Todos esses filmes estão disponíveis no YOU TUBE. 


 E a música, feita com o grande Gilberto Gil,  está no álbum Tropicália 2 de 1993 Ouça a música do nosso aniversariante homenageado e veja os filmes.



Então... o convite é para quem acha que mereça destaque e comentários, reflexões pessoais e visão de mundo,  sobre outros filmes desse festival... por favor, nos mande... teremos o maior prazer de publicar aqui... 

Pensamos, também, em homenagear outro grande "velhinho" que tem uma ligação íntima com o cinema, brasileiro, francês e internacional: Chico Buarque... quem sabe no próximo post...
Até lá... abraços carinhosos a tod@s 

sábado, 23 de julho de 2022

VIRANDO A CHAVE 2

 

No dia seguinte fomos nas Andorinhas... que não é uma cachoeira, apenas. 
Trata-se de um Parque Natural Municipal das Andorinhas, com suas 
piscinas ... e com muita beleza da natureza:

E a pedra do Jacaré, entre outras atrações maravilhosas que a natureza nos oferece...

E sentamos nas pedras e continuamos nossa conversa:

- Percebo, então, que VIRAR A CHAVE é um movimento para a vida toda... 
exige coragem... e humildade... mas tem um começo: quando "viramos a 
chave" não é que deixamos tudo que está para trás da chave, de jeito 
nenhum! Me parece que significa olhar para trás... e para o que pode ser 
visto, construído depois dessa porta que se abre com a VIRADA DE CHAVE.  

Uma 'teorização' sobre esse tema é o que os cientistas chamam de 
'mudança de paradigma":

Thomas S. Kuhn iniciou sua carreira universitária como físico. As circunstâncias 
levaram-no ao estudo da história e a preocupações de natureza filosófica. 
Múltiplas áreas, desde as exatas até as humanas, convergem para as agudas 
análises, que levam o autor, questionando dogmas consagrados, a ver o 
progresso da ciência não tanto como o acúmulo gradativo de novos 
dados, e sim como um processo contraditório, marcado pelas evoluções do 
pensamento científico. Tais revoluções são definidas como o momento de 
desintegração do tradicional numa disciplina, forçando a comunidade de 
profissionais a ela ligados a reformular o conjunto de compromissos em que 
se baseia a prática dessa ciência. 
Um dos aspectos mais interessantes do livro é a análise do papel dos fatores 
exteriores à ciência na erupção desses momentos de crise e transformação 
do pensamento científico e da prática correspondente.
E temos, em 2013, em comemoração aos 50 anos do livro de Thomas Kuhn, 
o novo livro A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS, onde 
vários autores prestam homenagem àquele que influenciou a todos no 
sentido de "virar a chave":
"As múltiplas possibilidades de abordagem e inserção de "A Estrutura das 
Revoluções Científicas presentes neste livro mostram, não apenas a riqueza 
da obra de Kuhn, mas também como esse autor influenciou de modo diverso 
os diferentes pesquisadores que aqui escrevem. Todos nós, filósofos e 
historiadores da ciência, fomos impactados por Kuhn".

Velha roupa colorida, música de Belchior, lançado no álbum 
Alucinação em 1976, é um hino sobre a dialética do tempo e da 
mudança social: reciclar o velho como novo e, ao mesmo tempo, 
descartar o velho como velho. A mudança é sorrateira, gradual 
e discreta: "você não sente nem vê, mas eu não posso deixar de 
dizer. meu amigo; que uma nova mudança em breve vai 
acontecer; e o que há algum tempo era jovem, novo, hoje é 
antigo; e precisamos, todos, rejuvenescer".


- Devo ter lido, ainda na década de 80 do século passado,  um 
outro "livro da minha vida" como falamos no SBC, um 
livro que me marcou muito e 'me produziu reflexões': 


Primeira edição em 1982,  Fritjof Capra nos apresenta um 
paradigma holístico de ciência e de espírito: "A dinâmica 
subjacente aos principais problemas de nosso tempo - o 
câncer, o crime, a poluição, o poder nuclear, a inflação, a
carência de energia - é sempre a mesma. Chegamos a uma 
época de mudança dramática e potencialmente perigosa, 
um ponto de mutação para o planeta como um todo. 
Estamos precisando de uma nova visão da realidade, que 
permita que as forças que estão transformando o nosso 
mundo possam fluir como um movimento positivo de 
mudança social".


- E em 1991, no álbum CIRCULADÔ,  Caetano Veloso canta 
"Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial"... 

- E caminhamos pelos lugares mais bonitos do Parque 
das Andorinhas... e caminhamos nas nossas reflexões, para um 
sentido mais amplo do "virar a chave": virar a chave no sentido 
histórico, e virar a chave no sentido político... uma relação 
intrínseca entre essas duas dimensões. 


















- SANKOFA: Esta palavra é proveniente da língua twi ou axante, 
sendo composta pelos termos san, que é “retornar; para retornar”,
ko, que significa “ir”, e fa, que quer dizer “buscar; procurar”. 
Pode ser traduzida como “Volte e pegue” .A palavra Sankofa, 
que na verdade tem dois símbolos que a representam, um 
pássaro mítico e um coração estilizado, simboliza a volta para 
adquirir conhecimento do passado, a sabedoria e a busca 
da herança cultural dos antepassados para construir um
 futuro melhor.














- Lembramos, da Roda de Conversa de ontem, de Catarina 
Mendes e da história da Princesa Isabel ...  
e lembramos de 7 de setembro: 
No dia 7 de setembro de 1822, D. Pedro 1º proclamou 
a independência às margens do rio Ipiranga..."e o Brasil 
se consolidou como uma nação independente". 
No entanto, temos também uma outra história:
















"Na madrugada de 2 de Julho de 1823, a cidade de Salvador 
amanheceu quase deserta: o exército Português deixou em 
definitivo a província da Bahia. Dizem que o dia nasceu bonito, 
sem as chuvas de junho. O sol brilhou! Os baianos conhecem 
esta data como sendo a Independência do Brasil na Bahia, 
que celebra a vitória dos brasileiros na guerra travada na então 
província da Bahia, por mais de 17 meses (de fevereiro de 1822 
a julho de 1823) contra as tropas portuguesas. Com a vitória 
do Exército e da Marinha do Brasil na Bahia, consolidou-se a 
separação política do Brasil de Portugal. Sendo assim, com base 
nos estudos de Luís Henrique Dias Tavares, historiador, professor 
emérito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o 07 de 
setembro de 1822 é uma data simbólica, não se tratando da real 
data da independência do Brasil, até porque um pedaço enorme 
do país (região Nordeste) ainda não era independente".

- Entendemos, de uma forma mais profunda, que "olhar pela ótica 
do povo, dos movimentos populares, da nossa força enquanto 
sujeitos, para transformar o mundo para "...mais bonito, mais 
justo e equânime"... significa uma "virada de chave" necessária 
e urgente.


- Aqui, um grande SBCense deu um depoimento importante: 
- eu estava na savassi em Belo Horizonte, caminhando no 
sentido do supermercado. Atravessando a rua, na porta de 
uma padaria estava sentada uma senhora com dois pequenos, 
não tinham mais do que 6 anos, talvez. Ela me pediu um 
biscoito pros meninos... e, antes que eu entrasse na padaria e 
comprasse os biscoitos, um senhorzinho, passeando com dois 
cachorrinhos na coleira, super bem cuidados, passando por ali 
ouviu ouviu a senhora e me disse: Não compre! ela é uma 
pedinte profissional, ora fica aqui na porta da padaria e ora na 
porta do supermercado! E repetiu: é PROFISSIONAL! Vive disso!. 
Acho que estou começando a virar a chave, pois em outra ocasião 
eu ouviria isso  e deixaria passar... mas, nesse momento, 
consegui elaborar uma resposta a este senhor, ou melhor 
uma pergunta - na verdade algumas perguntas: - Certamente ela 
não deve ganhar bem com essa profissão, não é mesmo? E o senhor 
acha que ela tem alguma escolha? Teria uma profissão "melhor"? 
Com quem ela deixaria os filhos? Ela poderia "escolher" uma 
creche? Será com com essa - ou com outra profissão - ela ganharia 
o suficiente para oferecer ao filhos uma vida digna? Talvez até ela 
pudesse ganhar o tanto que o Senhor gasta com os seus cachorros... 
Tive medo de falar... mas saiu... e saiu num tom de voz legal, sabe! 
quase como eu mesmo estivesse refletindo, pensando comigo mesmo... 
e ele me ouviu... 
e respondeu: É... é bom tentar compreender... Dei 'bom dia' a ele 
e entrei na padaria... e me senti bem na "virada a chave" 

- E continuamos "VIRANDO A CHAVE", buscando a perspectiva das 
"pessoas invisibilizadas na história"... fazendo " amor e política" em 
todos os níveis de relação - na cama e no mundo - como é um "exercício 
SBCense". E lembramos, de novo, Ailton Krenak, que nos ensina, muito, 
a "virar a chave". Vejam e ouçam o videoclipe da canção O RELÓGIO DO 
JUÍZO FINAL, de Carlos Rennó, Makely Ka e Rodrigo Quintela, interpretada 
por mais de 20 músicos e com fotos de grandes fotógrafos brasileiros, 
ativistas da causa do meio ambiente. A música é baseada na obra de 
Krenak "Ideias para adiar o fim do mundo, e o videoclipe foi feito pelo 
cineasta Marcos Prado:
                                                    https://youtu.be/LoGVGdR4Uxg

- E, terminando nossa conversa, disse uma SBCense: "Olhando 
para o que está acontecendo no mundo hoje, considero que um movimento 
importantíssimo no sentido da "virada de chave" é o que podemos 
verificar de "declínio do império americano" e do mundo unipolar, construído 
desde meados do século passado... para a emergente construção de um  
mundo multipolar. Um maior equilíbrio de poderes muda o mundo. 
Precisamos buscar muita informação sobre isso... e criticar... 
e construir nossas reflexões...". 



Abraços carinhosos e todas, todos e todes... aguardamos mais depoimentos... 

e até nosso próximo passeio-conversas-reflexões.



quinta-feira, 21 de julho de 2022

Conversas SBCenses: sobre "virar a chave"


"Ouro Preto respira arte, cultura, história!" Mas... de qual história falamos?...

Ainda em Ouro Preto, saímos da Casa da Árvore, no Morro de São Sebastião, para uma caminhada... e boas conversas... 

A alguns passos estávamos em frente a Capela de São Sebastião. Reparem o sincretismo religioso: Oxóssi e suas flechas estão nas torres da capela. Oxóssi é  rei das matas, das caças e da fartura. São Sebastião era um soldado do Império Romano que se converteu ao cristianismo e foi martirizado por conta da sua fé. É venerado como santo padroeiro contra a peste, a fome e a guerra.

E foi ali que tivemos uma bonita aula de história, misturada com geografia:

Daquele local podemos identificar duas bacias importantíssimas para Minas Gerais e para o Brasil: o RIO DAS VELHAS e o RIO DOCE.


As nascentes do Rio das Velhas estão localizadas dentro do Parque Municipal Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, perto de onde estávamos conversando. Este rio é o maior afluente, em extensão, do Rio São Francisco. O nome 'Rio das Velhas' tem origem indígena (tupi-guarani). Antes de ser 'Rio das Velhas' era conhecido como rio Uaimíí pelos indígenas. A antiga pronúncia foi traduzida na forma portuguesa Guaxim, da qual nasceu Guaicuy, que significa ''Rio das Velhas'. A história da ocupação da Bacia do Rio das Velhas começou no final do século XVII, quando os bandeirantes aproveitavam a rota do rio para desbravar o interior do estado à procura de ouro e pedras preciosas. Quem orientava os bandeirantes, provavelmente, eram os índios e os africanos escravizados.

A bacia do Rio Doce nasce nas serras da Mantiqueira e do Espinhaço. O Rio Doce propriamente dito é formado a partir do encontro dos Rios Piranga e Do Carmo, em Minas Gerais, e percorre cerca de 850 quilômetros até o mar, no Espírito Santo. Chamado de WATU - mar doce - pelos indígenas, durante o ciclo do ouro o Rio Doce teve sua navegação proibida pela corte portuguesa, para evitar o transporte e a exploração do ouro e pedras preciosas por suas águas, por outras pessoas que não eles mesmos. Em 2015 o Rio Doce foi devastado pelo "mar de lama" em consequência do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana. O médio Rio Doce, atingido pelo "mar de lama",  é habitado por indígenas da etnia KRENAK. Ailton Krenak é um líder indígena nessa região, grande ambientalista, filósofo e escritor brasileiro.

Acima, a Cachoeira Catarina Mendes, também perto dali... perto que eu digo para uma boa caminhada ecológica-histórico-cultural. Catarina Mendes foi uma mulher escravizada,  que conquistou sua alforria (pesquisando no GOOGLE você encontrará: "...  recebeu alforria do seu dono" - e é exatamente sobre isso que conversamos ...) -  e se fixou em um pedaço de terra que tinha essa cachoeira: O povoado de Catarina Mendes, subdistrito de São Bartolomeu, que é distrito de Ouro Preto. Em frente a Capela de São Sebastião, Seu Tatu, um simpático sinhozinho que carrega consigo uma parte da história dessa região, nos conta que Catarina, além de ter montado uma "Casa de folga" naquele povoado, defendia e protegia as mulheres que ali habitavam. Isso lá pelos idos século XVII, XVIII... por aí...

Então... nesse dia não fomos a Catarina Mendes. Fomos caminhando, subindo a serra, onde grande SBCense ouro-pretana nos apresentou as "minas a céu aberto", nos dizendo que toda grande mina começa, na verdade, a céu aberto ... e descemos  até a Mina Du Veloso (o que se chama hoje de mina seria uma das partes do processo de extração do ouro, a "galeria subterrânea") - e isso significa uma ampliação do olhar: a ideia de que a mina não é somente  a galeria subterrânea - MINA era o grande território, onde se utilizavam as várias técnicas de mineração  - e uma delas constituía nos aquedutos que estávamos vendo, que veem a ser grandes canais que conduziam água, e provocaram o desmonte hidráulico... uma ótima caminhada, para o corpo e para o espírito. E, nessa caminhada, nossa 'guia' usou a expressão "virar a chave", se referindo a uma "mudança de olhar" em relação à nossa história, a propósito de olhar para a história de Ouro Preto sob uma perspectiva mais ampla,  a perspectiva das pessoas que construíram a cidade e as que já estavam aqui antes, ou seja, os negros e os indígenas. Significa "contar outra história", não só a história que conhecemos, dos bandeirantes, dos nossos colonizadores.

E ficamos refletindo que podemos compreender - e agir - "virando a chave" num sentido muito maior do que este, ou seja, o processo de "virar a chave" pode, e deve, ocorrer em todos os níveis de relação, desde "eu comigo mesmx" até a "visão (e ação) de/no mundo", passando pelas relações íntimas, pela família, amigos, relações de trabalho, e eu enquanto cidadã e cidadão.

E começamos a pensar a partir da própria experiência de vida... e surgiram exemplos, assim como reflexões, no movimento do Particular para o Geral e para o Particular, e assim por diante, numa construção bonita e proveitosa:

- Começo pensando no que ouvi ontem de uma jovem mulher: "fulano é muito legal! ele me ajuda em casa e com as crianças"... Certamente essa fala NÃO significa "virar a chave", pois quem ajuda não assume nenhuma responsabilidade! Assim como outra de nós disse: "Ele me deixa sair com as amigas"...  Para algumas de nós essas frases não têm o menor sentido. Mas, acreditem, ainda é muito comum entre muitas de nós. 

- Ouvi, também, de uma mulher de mais idade, que ela "aprendeu" a servir... que ela tem prazer em servir... e pensei: entre mulheres que têm o prazer de servir e mulheres que lutam contra a subserviência, estamos, no mínimo há 100 anos, no 'grande esforço de pensar-sentir-agir virando a chave'.

- Continuando com "o que NÃO é virar a chave": penso também em quantas de nós, ainda, têm internalizado o "grande" papel, ou "destino" de toda mulher: ser mãe... atualmente, somente uma pequena parcela de mulheres "viraram a chave" no sentido de ESCOLHER esse destino: casar e ter filhos... e sabem que outros objetivos de vida nos farão, também,  inteiras e felizes. Inclusive "olhar" para o mundo e para si mesma e se ver enquanto construtoras do mesmo, de um  mundo mais bonito, mais justo, mais inclusivo. Imaginem que a música "Triste, louca ou má" foi construída a partir de uma fala comum nos anos 90, que significava a "pecha" que se dava à mulher que "não queria esse destino", e se colocava o direito de escolher. Nos EUA se dizia, em relação a essas mulheres, que seriam "BAD, SAD OR MAD"... ouçam:


- Um "chute no estômago" é o filme francês do Festival Varillux deste ano "O acontecimento", da diretora Audrey Diwa, vencedor do Leão de Ouro de melhor filme no festival de Veneza de 2021, uma adaptação do romance do mesmo nome, de Annie Ernaux: em 1963, na França, Anne é uma aluna jovem e brilhante, com um futuro promissor. Mas, quando engravida, vê desaparecer a oportunidade de terminar os estudos e escapar aos constrangimentos das suas origens sociais. Anne resolve tomar medidas, ainda que tenha de enfrentar a vergonha, o sofrimento, e se arriscar a ir para a prisão. O filme aborda a experiência com o aborto, quando este ainda era ilegal na França nos anos 60. Então... e aqui no Brasil? Ainda estamos nos anos 60, ou antes? a resposta seria: sim... para algumas mulheres, de uma classe social. Para uma classe social favorecida economicamente, essas têm possibilidade de escolher, e isso para além de qualquer credo religioso. O conservadorismo dificulta enormemente a "virada de chave". Um amigo SBCense avaliou que, se gravidez acontecesse com os homens, teríamos possibilidade de aborto em toda farmácia... Enfim, trata-se de um debate profundo, que exige tempo, disposição e abertura. Precisamos conversar mais sobre educação sexual, assim como sobre políticas públicas. Porque não é fácil essa "escolha", mas deveria ser uma "última alternativa possível", como disse nossa SBCense.

- Para nós, mulheres, compreender o feminismo fazendo parte de uma luta maior, a luta de classes, a luta contra o sistema capitalista, significa "virar a chave". Pois, apesar de todo esforço que se faz para nos "invisibilizar" essa realidade, sabemos que a história do capitalismo foi fundida com a lógica do patriarcado, da subserviência da mulher, assim como do racismo, da lógica "naturalizada" de que existem seres humano "inferiores" e, portanto, eles podem ser explorados. Lembram da Catarina Mendes, a que deu o nome ao subdistrito de São Bartolomeu? A "história" do google é a de que ela recebeu a alforria do seu dono. Quando começamos a virar a chave nos damos conta do absurdo que é a negação de toda a luta - da Catarina e de todas as pessoas escravizadas - para conquistar sua liberdade... pois o que a "histórica oficial" nos conta é a da Princesa Isabel, que assinou a "Lei Áurea"... nada nos contam de toda uma história de luta de mulheres e homens escravizadxs... precisamos buscar essa história, todxs nós... 

Abdias do Nascimento (1914-2011),  grande parlamentar brasileiro, fala da Lei Áurea como   "uma mentira cívica da branquitude"...






- Outra virada de chave que vivencio e reflito sempre está na relação pai-mãe/filhx... e filhx/mãe-pai:  um processo difícil, mas necessário, xs filhxs chegarem a reconhecer e amar mães e pais naquilo que eles têm de "amáveis", o processo de "humanização" dos pais, penso, interfere em todas as outras  relações, e até na relação comigo mesmx, na autoestima: significa o processo de sair da idealização e nos humanizarmos e humanizarmos x(s) outrx(s). A mesma reflexão sobre o processo de humanização serve para as mães e pais em relação axs filhxs, importante e necessária a mão dupla de estarmos sempre atentxs em relação às projeções que fazemos em relação a nossxs filhxs, e as "cobranças" decorrentes dessas projeções.


- Mãe suficientemente boa é um conceito do pediatra, psiquiatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971). Em 1949, numa entrevista de rádio, Winnicott fala de como seu conceito foi, de certa forma, distorcido: para ele, a 'mãe suficientemente boa' não é perfeita, como muitas vezes era - e ainda é cobrado de nós pela sociedade (até mesmo por outras mulheres) -, uma 'mãe suficientemente boa' é aquela que, além de prover as necessidades do indivíduo para se constituir como sujeito, também falha - o tempo todo -, e está continuamente corrigindo essas falhas. Ou seja, nem 'suficientemente boa', nem 'suficientemente má'... humana, demasiado humana, como diria Nietszche.

- Uma querida, da Coletiva Indômitas, grande parceira SBCence, disse de uma "virada de chave": "Apesar de ser difícil, pois não aprendemos isso, vale a pena estarmos sempre construindo "RELAÇÕES HORIZONTALIDADAS".  Sim... não faz parte da nossa cultura, "a ideologia burguesa, capitalista,  permeia todas as nossas relações - e faz parte dessa ideologia a construção de relações assimétricas, pois são essas que se prestam à exploração".  E aprendemos, em todos os níveis de relação, a reproduzir o modelo da subalternização, do poder sobre, enfim, reproduzir a relação senhor-escravo. 'Virar a chave' nas relações significa a construção permanente de simetria e reciprocidade.                                                    

- Pensando no sentido da metáfora:  me parece que virando a chave abrimos uma porta... e podemos ver uma sala grande...uma paisagem, uma estrada... que pode ser bonita e/ou pode dar medo... e, se formos impelidxs a dar um passo sem olhar atrás de nós, podemos cair num abismo. Portanto,     não é o caso de deixar de olhar para trás, nossa história conta muito na construção dessa caminhada pela nova estrada. Sejamos históricxs, nem a-históricos, nem supra históricos, como conversamos no post de 8 de julho, leiam...

E terminamos comentando sobre os homens, sobre cultura masculina:

- Não é que tem homens que se dizem não machistas? Eu tenho medo, pois esses "acham" que estão,  mas NÃO estão,  virando a chave... NEGAM a história, a "cultura internalizada", provavelmente estão na arrogância, como se pudesse existir, na nossa sociedade, o não machismo. 

E é necessário muita humildade, de TODXS NÓS,  para começarmos a VIRAR A CHAVE  do machismo. Pois, como conversamos, VIRAR A CHAVE não é esquecer ou negar a história (e a cultura)... é um movimento contínuo de enxergar/andar pra frente, estando, sempre olhando pra trás, na medida certa, ou seja, olhando pra trás para aprendermos a apropriar e a rejeitar  a história, PARA A VIDA E PARA A AÇÃO. Os homens daquela Roda de Conversa, fazendo um exercício de humildade, concordaram... 


- Recordamos a música do Gil de 1978, SUPER HOMEM. "Mas a conversa não termina nunca!"... declarou outra SBCense... SIM...: quem leu até aqui e se sentiu AFETADX com o "virar a chave" nos mande seu depoimento, seja ele em qualquer nível de relação, de "eu comigo mesmx" até "eu enquanto cidadã e cidadão", reflexões sobre "visão de mundo" que geram o movimento de nos transformarmos em SUJEITXS...

Abraços carinhosos e todas, todos e todes... aguardamos depoimentos... e até nosso próximo passeio-conversas-reflexões-movimentos...