terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Conversas SBCenses 3: Quando amo, O QUÊ estou amando?

Terminando nossa trilogia "quando amo, O QUÊ estou amando?", uma ampliação do conceito para outros níveis de relação, além da relação íntima.

Não me lembro nem onde nem quando li um artigo sobre o tema “relações simbióticas”, dizendo sobre as relações íntimas, afetivo-sexuais. Mas este tema me ocorreu a propósito da pergunta: quando amo O QUÊ estou amando?

Então... primeiro vamos ao google:  “...a simbiose nasceu da busca estratégica de interações entre organismos de diferentes espécies... os exemplos mais comuns são os de verminoses, o que muitas vezes pode levar o hospedeiro à morte...”

“o conceito de simbiose é uma metáfora biológica, que usamos na psicologia para descrever a situação de dependência emocional entre indivíduos. Essa dependência é normal em etapas muito iniciais da vida, principalmente do bebê com a mãe, logo após a gravidez, mas deixa de ser saudável se perdura...”

E, continuando na pesquisa googolistica (rsrs), os tipos de simbiose existentes:

. no Mutualismo, ambas as partes se beneficiam da relação, mesmo que não igualmente, tampouco existe uma avaliação do quanto custa a cada um tal benefício;

. no Comensalismo, uma das partes obtém benefícios sem prejudicar ou beneficiar a outra, ou seja, a parte beneficiadora se orgulha de ser protetora e a parte beneficiada agradece... pode ser uma relação produtiva para ambas as partes, embora assimétrica. Assim como pode ser produtiva somente durante um certo tempo... daí, pode passar, aos poucos, para o tipo a seguir, o parasitismo;

. já no Parasitismo, um dos simbiontes se beneficia às custas do outro, e pode levar à morte do beneficiante, o que está sendo sugado.

Obrigada Google...

Vamos à reflexão: quando li sobre relações simbióticas pensei mais nas relações afetivo-sexuais entre nós, mulheres, e os homens... acontece por demais! Quando as relações não estão na base da simetria... de pensar, de sentir, de agir... e que passa pelo bolso, o econômico, como já falamos... as relações acabam sendo simbióticas... e nós, mulheres, sofremos consequências terrivelmente “invisíveis”. Li uma vez num livro de um jornalista italiano contemporâneo, Francesco Alberoni, “Enamoramento e Amor”, que o homem se enamora “daquele ser explendoroso” e, rapidamente (ou aos poucos), a transforma “num ser domável”, ou seja, destrói exatamente aquela característica que o fez amá-la!  Que motivos o fariam realizar esse “movimento inconsciente”!!!

Pois bem, acham que isso só acontece nas relações afetivo-sexuais entre homens e mulheres? Nem pensar! rsrs. Eu achava que as relações homo afetivas aconteciam de formas mais livres... e, sim, acontecem de uma forma mais livre em outros aspectos. Porém, infelizmente, as relações homo afetivas reproduzem, também, obviamente, nossos padrões culturalmente enraizados. Portanto, não estamos imunes!!!

Atenção!!! Os conceitos enraizados de “amor” estão em todas as relações! “só sei viver se for por você”... ai... odeio Djavan...

Então, percebo também que as relações simbióticas parasitárias se desenvolvem, também, nas amizades! Assim como o “amor romântico”... pois a idealização da outra pessoa, a mitificação, é uma das principais características desse amor ... e da idealização é um pulo para o desprezo, é só um chutinho no pedestal onde colocamos a pessoa mitificada, qualquer “humanidade” da mesma é pretexto para o desprezo, perdemos a condição humana de admiração. E precisamos estar bastante atentxs a isso, corremos sérios riscos!

Essa “teorização” me vem a partir de relato de uma pessoa amiga que, segundo ela, quase sucumbiu à relação simbiótica. Pois  percebia que a outra pessoa, uma amiga,   a amava e admirava muito, e era recíproco. Então, o que foi acontecendo, sem que as duas percebessem (Freud tinha razão: inconsciente existe, daí o sentido da pergunta: “O quê” estamos amando, a fim de "irmos descobrindo...")? 

Uma delas foi incentivando a outra para o papel de palco em várias situações. E a primeira fazia o papel de bastidor, muitas vezes de uma maneira controladora e autoritária, minando aos poucos o brilho da outra. 

Perceberam a “sutileza” do vínculo destrutivo? E a saída possível seria a tomada de consciência do próprio brilho por parte de uma delas, e a tomada de consciência da vaidade por parte da outra, que facilmente caia na armadilha do reconhecimento, e ia ficando do jeito que a outra queria, ia se perdendo de si mesma.

E, pensando mais sobre a origem dessas relações: a INVEJA.

Que sentimento potente!!! Tanto para a destruição quanto para a vida... e o tanto que precisamos estar atentxs a este sentimento, enquanto objetxs da inveja e enquanto sujeitxs invejantes.




Salieri, compositor de óperas, italiano de final do  século XVIII e princípio do século XIX, conseguiu ir destruindo Mozart, até a morte, por não reconhecer seu próprio brilho. E Mozart, por imaturidade, e|ou vaidade, entre outras características, permitiu isso. Depois Salieri ficou louco. O filme “Amadeus”, de 1984, do grande diretor Milos Forman, mostra a destruição (do outro e de si mesmx) de uma maneira esplêndida.

Uma grande pessoa me disse, uma vez, uma metáfora valiosa pra minha vida: desde que nascemos, vamos aprendendo a construir uma prateleira dos sentimentos, das emoções. Nessa prateleira, as emoções que ocupam os lugares mais altos são as “emoções nobres”, aquelas que devemos ter, ou “fingir que temos”, o altruísmo, a generosidade... como se essas emoções fossem aprendidas numa sociedade capitalista... Ô dó... até a generosidade é manifestada na ação de forma arrogante, por uma classe social privilegiada... ou seja, os sentimentos e emoções são artefatos culturais, são, também, fabricados culturalmente!!!

Ai... vai descendo a prateleira e veem os sentimento “menos nobres”... vai descendo... lá embaixo na prateleira está um desses sentimentos: a inveja...

A inveja é um sentimento horrível! Um pecado, um dos sete pecados capitais. Não devemos ter inveja! E, se a reconhecermos, devemos fingir que não a temos!!! Vamos substituindo-a, por exemplo, por admiração... a admiração é um sentimento que coloca o admirado num pedestal, como já disse... e qualquer “humanidade” que a pessoa se manifeste ela será “destruída”.

E fico pensando: como é importante a gente tomar consciência dessas emoções “negadas” culturalmente, apropriar delas e ir construindo na direção das escolhas, que podem ser: . . ou de cortar a relação, porque não dou conta ou não quero lidar com isso, pelo menos agora; ou aprender a viver e relacionar com a  pessoa tendo consciência e minimizando essa faceta da relação; . e|ou tentar conversar com a pessoa (dar e receber feedback) para construir uma interpretação bonita e produtiva das coisas, hipótese mais bacana e menos provável; 

Enfim, podemos  escolher crescer com isso... e nos proteger enquanto objeto de inveja, admiração e simbiose parasitária.

E enquanto sujeito, também de admiração... que, necessariamente, para crescimento pessoal, deve ser enxergada como inveja, pelamordedeus, não me fale em “inveja boa”, me fale de “inveja potente”, que se transforma em desejo... o que invejo é o que desejo! Seja ter ou ser... persiga!!!

Não neguemos nossas invejas! Apropriemos delas como fontes de construção da nossa identidade... daquilo que queremos ser... só desse jeito ela será enriquecedora.

E, conversando sobre isso, um amigo me lembrou da expressão metafórica desse tipo de relação tóxica:

RELAÇÕES VAMPIRESCAS. Claro!!! relações vampirescas vem a ser um tipo de relação abusiva, relação em mão única, relação de exploração ... e ocorre em todos os níveis de relação: o homem vampiresco; a mulher vampiresca; X filho vampiresco; A mãe e|ou o  pai vampiresco; X amigx vampiresco; o colega de trabalho; o chefe; o cidadão e a cidadã vampirescos... e o politico vampiresco.

E lembrei de um filme super legal:


São vários pequenos vídeos de vários diretores, em homenagem a Paris... cada um rodado num lugar diferente de Paris... e um deles, de Vincenzo Natali, Quartier de la Madeleine,  apresenta de uma forma arrasante, uma cena vampiresca... na forma de amor, o amor que conhecemos, o amor romântico. Procurem no YouTube...

E concluo dizendo que precisamos rever urgentemente nossos conceitos de amor, em todos os níveis de relação. Grande trabalho que não podemos nos furtar, pois esse será um grande legado que deixaremos para as próximas gerações. Deusas e Deuses nos ajudem... Amém...

Santuza TU


 

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

HISTÓRIA BONITA DE UM PROCESSO DE EMPODERAMENTO

 

Fico tão orgulhosa dos meus amigos e amigas! Realmente, Vinicius (o Moraes) tinha razão, não conseguiria viver sem amigos. São, no meu entendimento, as relações mais preciosas, que mais fazem a gente crescer... e sempre em mão dupla, oferecer minhas reflexões, minha experiência de vida, para que elxs também cresçam comigo.

Conheço a Silvana há uns quinze anos... do samba... da diretoria do SBC. E nos identificamos tanto que ela parece que escreve como eu, parece meu alter ego. E isso lá da Bahia, pois ela voltou pra lá há uns cinco anos. E continuamos nossos contatos virtuais, escrevendo, falando, fazendo rodas de conversa com homens e mulheres que querem aprender a serem melhores consigo mesmxs e melhores relacionalmente.

Mas não podia deixar de publicar esta sua carta. Parece muito com o que estou também vivenciando. Obrigada minha grande amiga.

TU querida! Estou aqui na Bahia... acompanho seu blog, leio suas postagens e me lembro com saudades das nossas longas conversas sobre nós, mulheres, quem somos, o que queremos, nossa identidade reflexa (o que somos criadas para...) e nossa identidade construída por nós mesmas, um trabalho para a vida toda.

Como aprendi com você TU!, ou melhor, como você gosta de dizer: como aprendemos juntas!!!, pois o processo de aprendizagem só ocorre em mão dupla. E aqui na Bahia eu multiplico nossas teorias, construídas a partir da reflexão sobre nós mesmas, nossas vidas. Claro que apropriando de outras teorias já prontas, um filme, um livro, que servem como pretexto... ou pré-texto... o texto fazemos nós.

E agora acabo de ler estes dois posts no blog “quando amo, O QUÊ estou amando” e me deu vontade de escrever um depoimento sobre minha vida, sobre meu processo de empoderamento...

Lembra aquela reflexão que fizemos numa noite regada a muita cerva, sobre estar no palco ou estar nos bastidores, sobre os papéis de palco e os papéis de bastidor. Essa frase tão cravada na nossa alma “por trás de um grande homem existe uma grande mulher” (e ainda atual, acredite...) traduz o papel de bastidor exercido por nós nas relações íntimas... e, para exercermos “bem” este papel nossa auto estima tinha que “ir, aos poucos, sendo abaixada”...

Por isso, ou melhor, lutando historicamente contra isso, fui internalizando um juízo de valor depreciativo sobre o papel de bastidores. Claro, o que mais eu queria, e fui construindo, era caminhar para estar no palco, minha autoestima estava relacionada ao tanto que eu dava conta de me mostrar, pois foi isso que foi sendo destruído em mim para eu desempenhar o papel de bastidor.

Lembra do livro que você me deu uma grande “aula” sobre ele¿ “O feminismo espontâneo da histeria”... Nem li o livro TU, sua “aula”, sua “interpretação” do livro, foi melhor pra mim... e você me disse que a principal queixa das mulheres é: tenho medo de me arriscar e “não dar certo”... então, essa queixa está invertida, nosso maior medo é “dar certo”, pois dar certo questiona todos os nossos papéis internalizados, esses de bastidor... dar certo, agora entendi, sob vários aspectos, é estar no palco, protagonizando sua própria história, “dar certo” é, enfim, construir, para toda a vida, o “ser quem eu quero ser”, em todos os níveis de relação... Agora também, TU, estou entendendo aquilo que você dizia sobre os níveis de relação: intimo, pessoal, social e público... pois, caminhando para a construção do  “dar certo” profissionalmente, fazer o que gosto e ganhar dinheiro com isso (não tenho dúvida, agora, isso é uma construção valiosa) fui começando a perceber que, dando passos para além disso, começamos a nos perguntar: e, o que fazemos pelo mundo em que estamos, para construir um mundo melhor para além do nosso mundinho, aquele olhar horizontal que você diz... e aí é que começamos nossa consciência no nível mais amplo, enquanto cidadã, o que estamos fazendo, o que podemos fazer... e aí, TU, comecei a sair, digamos, do meu “casulo” de empoderamento, e comecei a procurar me engajar em grupos que discutem a questão da mulher, a questão de gênero, e assim por diante... e assim foi que me tornei “política” no sentido mais amplo da palavra TU!!! Agora entendo demais, profundamente, porque exerço isso, está na minha vida:  “amor e política na cama e no mundo”.

E então comecei também, agora, com a “mitideza” que você me ensinou (nem supermetida – arrogante, nem submetida, subserviente... autoestima ao ponto), me arriscando em papéis de palco e experimentando meu tamanho, o que dou conta e o que posso dar mais conta, construir mais...

E aí comecei a perceber também o papel importantíssimo de bastidor... e descobri que também posso e sei fazer este papel, porém, de uma maneira diferente daquela que eu fazia anteriormente, valorizando meu papel de bastidor e  desempenhando este papel da melhor forma possível, com a maior competência. Pois este papel é fundamental... tão importante quanto o do palco. Melhor, são papéis complementares.

E saber desempenhar com sabedoria e prazer os dois papéis é muito bom, transitar entre os dois papéis, traz um sentimento de liberdade de ser. Pois não é que voltei a ir pra cozinha e fazer umas coisinhas gostosas, lembra que neguei tudo que sabia fazer na cozinha, pois este era um lugar de bastidor da mulher. Agora adoro fazer umas receitas e convidar amigas e amigos pra tomar um vinho e comer uns petiscos feitos por mim. Parece um nada, mas pra mim é um orgulho pessoal  uma superação. E, ao mesmo tempo, me orgulho de pertencer a grupos políticos que estão pensando e agindo no sentido da construção de um mundo mais igualitário, mais fraterno, mais bonito. E, claro, me bancando ... “liberdade é de pensar, se sentir e de agir... mas passa pelo bolso”.

TU, não sei se foi o Guimarães Rosa que disse isso, mas agora me ocorre a frase:

“A vida é um espetáculo imperdível, um palco, onde cada um tem o seu trabalho de fazer o melhor desempenho”... realmente, procurei no google e não vi essa frase dele... então, agora é nossa... minha gratidão a você, querida amiga, por contribuir no meu caminho para ser uma pessoa melhor, ser quem eu quero ser...

Silvana Baiana

Gratidão querida amiga, por você existir na minha vida!

Santuza TU


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Conversas SBCenses 2: Quando estou amando, O QUÊ estou amando?

E aí eu contei o caso daquela minha amiga (de 35 anos) para uma outra (de 25 anos) com o objetivo de fazê-la entender a relação do dinheiro com o exercício do poder de dominação, que é o que nós sofremos (e também reproduzimos).

Ela é americana... conversamos muito sobre nós mesmas... e rimos muito também... da gente mesma, quando nos vemos nos colocando completamente na posição de objeto, procurando sermos amadas, sermos objeto do amor do outro... o que precisamos fazer para ser “mais amada”, “mais objeto”... meu Deus... minha Deusa!!! Como esse "desejo" é enraizado, cravado a ferro e fogo na nossa alma !!!

E ela me conta o caso do fim de semana com seu mais novo affair: estão se conhecendo... e ele a convidou para uma viagem com os amigos (dele)... e ela aceitou... foi muito bem recebida entre xs amigxs (casais)... e tiveram poucos momentos a sós (acho que dormiram juntos mas não transaram, ela está “segurando”... creiam... ainda existe isso da mulher se fingir de difícil pelo sexo, porque, segundo ela, eles abandonam quem “dá de primeira”). Mas o que ela me conta, muito sentida, é que, ao se separarem, ele foi muito frio, nem carregou sua mala... (então: ela fica super atenta aos mínimos detalhes de “rejeição” e, ao mesmo tempo,  alheia ao que ela sente ou deseja)

E foi daí que continuamos a conversar, eu fui perguntando de uma forma maiêutica, e também para o objetivo do meu “estudo antropológico”, minha curiosidade sobre as mulheres de outras gerações: estamos caminhando para sermos mais sujeitxs, nossa luta do século passado valeu a pena?

E, nesse processo maiêutico, ela me revela que ele pagou toda a conta! Aí acontece o diálogo:

- Mas por que ele pagou toda a conta?

- Porque foi ele que convidou!

- Você o convidaria para um jantar e pagaria toda a conta?

- Claro que não! Isso do homem pagar a conta é “natural” aqui nos EUA!

- E você não acha que isso já permite que se inicie uma relação assimétrica e abra espaço para a dominação, para o uso do “poder sobre”, que já conversamos?

- Não! Isso aconteceria se já tivéssemos uma relação mais duradoura... isso acontece entre marido e mulher... agora, no princípio da relação, é a coisa mais natural do mundo o fato dele bancar! Inúmeras mulheres que conheço, inclusive minha irmã, que tem relação estável há uns dois anos, por exemplo... são mulheres super autônomas, tem seu dinheiro, não dependem do cara, mas é ele que paga as contas! Não vejo relação nenhuma entre o cara pagar a conta e essa minha dificuldade em ser sujeito que ama, que escolhe, ou seja,  o fato de estar sempre me posicionando enquanto objeto do amor do outro! Definitivamente, não é este o caso!

E a conversa acabou ai... nesse dia.

E foi só uma semana depois que conversamos de novo... e contei pra ela o caso da outra amiga, a de 35 anos do post anterior.

E ela "começou" a entender... é assim... a gente entende um pouco, age um pouco, reflete sobre nossas ações... entende mais um pouco... e assim vai... o movimento de ação... compreensão... ação... etc... e a mudança é histórica. 

Então a nossa conversa, nesse dia, resgatou um pouco o seu entendimento do distanciamento que existia, para ela,  entre o homem “prover” e  usar o poder econômico para dominar... e tudo “por amor”...




Citei Engels, ‘A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” e terminamos essa segunda conversa ouvindo a banda (brasileira)  Francisco El hombre, “triste, louca ou má”, super libertadora...  e eu contei pra ela que essa música é inspirada na tradução da expressão em  inglês   “sad, mad or bad”,  usada de forma depreciativa para as mulheres que escolheram ficar solteiras, se libertar dos padrões, da identidade definida a partir da figura masculina, se permitir ser:  “Um homem não me define”.




E tem também o livro da Lisa Appignanesi, “Tristes, loucas e más”, que narra a evolução do diagnóstico e do tratamento de doenças mentais em mulheres, desde inicio do século XIX,  quando distúrbios mentais eram muitas vezes associados a possessões... até os dias de hoje. 

A autora  não enxerga as mulheres como inerentemente tristes, loucas ou más, e sim questiona por que muitas desordens mentais – histeria, anorexia, personalidades múltiplas, depressão – são diagnosticadas com mais frequência entre mulheres  do que entre  os homens. E fala sobre grandes mulheres na história que sucumbiram emocionalmente em função desse “destino de toda mulher”: Marilyn Monroe, Virginia Woolf... entre outras




E lendo este livro me lembro do filme “As horas”, que começa com o suicídio de Virginia Wolf e conta a história de três mulheres até a atualidade. A segunda é uma mulher de meados do século passado, completamente dentro dos padrões, casada com um militar; tinha um filho pequeno, e estava lendo um livro da primeira, a Virginia. O olhar da artista, Julianne Moore, passa o sentimento de vazio, de falta de sentido de vida. E a terceira, uma mulher contemporânea, se encontra com a segunda, e acontece o diálogo revelador: por quê você fez isso, abandonar sua família e fazer seu filho sofrer tanto? resposta da segunda: eu tinha duas escolhas, a vida ou a morte... escolhi a vida, mesmo sabendo que minha escolha causaria sofrimento a pessoas que eu amava tanto.

Pois é, fazemos nossas escolhas... e a liberdade de escolher é consequente e responsável. E se, por medo das consequências, abrimos mão de escolher a vida, colocamos essa vida nas mãos dos outros e não nas nossas próprias mãos.

Muito a refletir... a agir...

Abraços carinhosos...

Santuza TU






segunda-feira, 23 de novembro de 2020

QUANDO ESTOU AMANDO, 'O QUÊ' ESTOU AMANDO?

 

Minha amiga, uma mulher em torno de 35 anos, mãe de duas filhas mulheres, uma de 18 e outra de 2 anos, me conta um pouco da sua história: ela se coloca como uma pessoa fora dos padrões, se sente como uma pessoa transgressora ... com 18 anos ficou grávida, veio do interior para a capital com o pai da criança, tiveram uma filha e se separaram pouco tempo depois. Ajudada pela família, e lutando muito, criou a filha. 

Teve outros breves amores. E, há mais ou menos três anos, de uma relação tórrida com um homem bem abastado financeiramente, ficou grávida de novo. Com uns três meses de gravidez descobriu traições e terminou com a pessoa. segundo ela, ele é um bom pai. 

Ainda na gravidez conheceu outra pessoa, que praticamente assumiu a gravidez, e ficou sendo um segundo pai da criança. Mas esta relação também terminou por causa de traições. Enfim, no princípio da pandemia, ela conhece uma outra pessoa... amor à primeira vista... tiveram COVID juntos, continuaram juntos, ele a incluiu no seu meio e na sua família. Muito rico, o sujeito (detalhe... rsrs).

E a minha amiga, agora, cerca de nove ou dez meses depois, está sofrendo muito. Por quê? novamente descobre traição, ele tem uma amante de 19 anos, mais nova do que sua filha. Essa filha (a filha dele...)faz contato com ela e dá o conselho de se afastar do mesmo porque, segundo ela, ele é um canalha. Já aconteceu até violência física com a mãe. Ela mesma (a filha) já cortou relações com o sujeito. Relata ainda que ele anda com muito dinheiro vivo no carro, na casa; mostra, ou melhor, ostenta sempre o tanto que  tem.

Ela, além de relatar que, nas brigas entre os dois, fica histérica e bate nele, relata também aquelas violências mais “sutis”, muitas vezes difíceis de serem identificadas como violências.

Dos cinco tipos de violências apresentados na Lei Maria da Penha:

. física: bater... fácil de ser identificada;

.sexual: te forçar a ter relações sexuais, sem o seu consentimento... também mais fácil de ser identificada (às vezes não... ele insiste tanto que você não consegue dizer não... e pode não perceber como violência... mas é...);

. psicológica: mais difícil de ser identificada ... muitas vezes vem disfarçada de amor|proteção, por exemplo “vou fazer isso (qualquer coisa) pra você porque você não é capaz”, “coisinhas” que vão diminuindo nossa autoestima;

. moral: também mais difícil de identificarmos ... e também vai diminuindo nossa autoestima... falar mal de você pra seus filhos, pra sua família... essas coisas;

. patrimonial: muitas vezes passa despercebida... controlar seu dinheiro, seu celular, esconder ou te proibir de usar uma roupa, ou rasgá-la, destruir uma coisa sua... coisas desse tipo, inúmeras vezes “por amor”.

As três últimas são as mais “sutis”, concordam? sutis do tamanho de uma patada de elefante... mas, por questões culturais, costumamos não identificar, não vemos, confundimos com amor... e por aí vai...

Voltando à minha amiga: ela percebe que já está vivenciando uma relação abusiva... mas não consegue sair!!! E a minha perplexidade: por quê??? e a minha pergunta, reveladora:

. quando a gente pensa|sente|percebe que está amando... precisamos muito nos perguntar imediatamente O QUÊ estamos amando? para além da pessoa que estamos amando!

Esta pergunta, feita de uma maneira completamente sincera e tentando nos  desvencilhar dos mecanismos de auto engano a que estamos sujeitas, será completamente reveladora de nós mesmas e das possíveis armadilhas a que estamos sujeitas. E, por consequência, abrirá possibilidades de caminhar para sermos mais livres... um pouco a cada dia.

E eu tive a coragem (e o cuidado)  de fazer essa pergunta à minha amiga. E fiquei muito feliz dela ter conseguido, de uma maneira maiêutica (extrair do outrx o que o outrx já sabe e não sabe que sabe, maiêutica significa "parto") perceber que ela estava “amando” o dinheiro, o status, que vinham junto com a pessoa. E aí pudemos continuar nossa conversa...

Olha só, liberdade significa autonomia de pensar, de sentir, de agir... mas passa pelo bolso... sem essa do bolso fechamos olhos, ouvidos, boca, igual aquele macaquinho, lembram? e esquecemos de nós mesmas.



E ela descobriu sua prisão aos valores de uma sociedade consumista... status, poder... e  somos educadas (ou deseducadas) para não nos sentirmos capazes e, por consequência, obtermos “isso” através do outro, do homem... e o “isso” também deve ser questionado... mas muitas de nós somos prisioneiras ... e, também por consequência, por não nos sentirmos capazes nem de, por trabalho pessoal conseguirmos status e poder econômico... e nem, por trabalho também pessoal, conseguirmos questionar: “é isso mesmo que vai dar sentido à minha vida?”, “eu dou conta de diminuir meu padrão de vida em função da liberdade de ser?”... perguntas dirigidas a mulheres de classe média... outras perguntas são mais adequadas a mulheres de outras classes sociais: a mulheres que não trabalham, não têm seu sustento... e outras mais.



Enfim, vivemos numa sociedade capitalista... na reificação, Marx já nos ensinou: o dinheiro ganha vida e nos transforma em objetos. E como nós, mulheres, somos suscetíveis! Precisamos, urgentemente, rever nossos valores... dar conta da própria vida (inclusive, ou pra começar, no econômico) nos trará autonomia de pensar, sentir e agir... enfim, colocar a vida nas próprias mãos, mesmo significando perdas... claro! Perdas no bolso... o ganho será maior...

E, claro, mais uma vez, estou dizendo isso para mulheres de classe média...



Ainda ... aprendamos com mulheres negras que, na nossa história, já trabalhavam e tinham seu sustento há muito tempo! Isso não deve passar por suas angustias... essas são outras... as quais também devemos estar sororidariamente perguntando.

E caminhando...



Enfim... pensem... não como eu... mas pensem...

Abraços sororizantes... e fraternais...

Santuza TU