terça-feira, 30 de maio de 2023

Conversas SBCenses: sobre ETARISMO

O etarismo, também conhecido no idioma português como idadismo ou ageísmo, é o nome que se dá para as práticas discriminatórias realizadas contra uma pessoa com base em sua idade. Essa discriminação é fruto de estereótipos que são construídos contra um grupo de pessoas de idades diferentes da nossa. Trata-se de um preconceito que pode atingir pessoas de diferentes idades, mas é muito mais comum em relação a pessoas idosas. Assim, o etarismo é um problema que se intensifica na vida das pessoas à medida que elas envelhecem. O etarismo pode se manifestar por meio de violência psicológica, verbal ou física. No entanto, o etarismo é considerado um preconceito silencioso, porque está difundido em nossa sociedade e se manifesta por meios que podem ser bastante sutis. Pode ser encontrado, por exemplo, nas relações familiares, no mercado de trabalho e em diversos outros locais da sociedade.

"Apesar de o etarismo também ser praticado contra jovens, o grupo que mais sofre com esse preconceito são os idosos. À medida que uma pessoa envelhece, uma forte pressão social se estabelece tentando controlar a forma como essas pessoas se comportam. Existe também um grande descrédito sobre as ações de uma pessoa idosa, como se ela fosse incapaz de tomar suas próprias escolhas. É bastante comum que as vontades de idosos sejam desconsideradas, pois são entendidos como incompetentes para tomar suas escolhas por causa de sua idade. Isso acontece no âmbito familiar, médico e em muitos outros".

"A palavra etarismo se origina de ageism, uma palavra em inglês que descreve o preconceito contra pessoas por conta de sua idade. Inclusive, “ageísmo” é um aportuguesamento da expressão em inglês. Essa palavra do idioma em inglês foi criada, em 1969, por Robert Butler, um médico que estudou o preconceito contra idosos. Existe também a velhofobia, que é uma variação do etarismo. Muitos entendem que a velhofobia pode ser tanto o preconceito contra pessoas por sua idade avançada como também o temor e a rejeição pelo próprio envelhecimento."

O etarismo é um problema no Brasil, mas não somente aqui. A Organização Mundial da Saúde apontou, por meio de uma pesquisa, que um em cada seis idosos no planeta já sofreram algum tipo de violência em algum momento de sua vida.  A pesquisa da OMS também revelou que até 2050, a população de idosos será de cerca de 2 bilhões de pessoas, sendo necessário agir para impedir que o etarismo siga tão difundido assim. No caso do Brasil, estima-se que o país terá uma das populações mais idosas do mundo nas próximas décadas. Lembrando que o etarismo pode se manifestar por meio de violência psicológica, verbal e até mesmo física. Também a pesquisa aponta que cerca de 50% dos casos de etarismo são realizados pelos próprios filhos. Vizinhos e netos são grupos que reproduzem bastante o etarismo, além desse problema ser recorrente nos atendimentos médicos - estima-se que o etarismo tenha aumentado consideravelmente durante a pandemia de covid-19. No entanto, alguns países tendem, culturalmente, a valorizar as pessoas com mais idade, pela sabedoria, entre outras características. 

O etarismo pode ser considerado crime de acordo com a legislação brasileira. No caso dos idosos, o Estatuto da Pessoa Idosa estabelece meios para protegê-los  contra possíveis abusos. O estatuto, também conhecido como Lei nº 10.741, foi uma lei sancionada em 6 de outubro de 2003, durante o ´primeiro  governo de Lula. Essa lei procura estabelecer os direitos das pessoas idosas no Brasil, criando um mecanismo para garantir a dignidade das pessoas idosas e o respeito aos direitos delas. Dentro dessa lei existem alguns importantes artigos que delimitam que o etarismo e a discriminação contra pessoas idosas por conta de sua idade é crime.

O Professor de História Daniel Neves Silva cita alguns exemplos de situações que podem ser enquadradas como etarismo:
  • chamar uma pessoa de “velha” ou “velho” de maneira pejorativa;
  • desconsiderar a opinião de uma pessoa unicamente porque ela é idosa ou muito nova;
  • considerar que uma pessoa é incapaz de fazer algo pela sua idade;
  • afirmar que todo adolescente é irritante apenas por sua idade;
  • demitir uma pessoa por considerá-la “velha demais” para exercer um ofício;
  • considerar que uma pessoa é incapaz de assumir um posto de trabalho por ser muito jovem;
  • não dar oportunidades, propositalmente, para que pessoas mais velhas sejam contratadas em uma empresa;
  • falta de políticas públicas em benefício de pessoas de determinada idade;
  • considerar pessoas idosas incapazes de fazer suas escolhas unicamente por serem idosas;
  • fazer uma análise médica com base unicamente na idade de uma pessoa, ignorando o relato do paciente;
  • julgar uma pessoa idosa por não ter conhecimentos de tecnologia.
Como citado, o etarismo é um preconceito, geralmente, silencioso, que ocorre sem que muitas pessoas percebam, e é manifestado, principalmente, por pessoas próximas. Vimos também que, embora aconteça nos vários ambientes sociais, é no  contexto familiar que esse tipo de violência mais ocorre. De um lado, precisamos desenvolver nossa atenção em relação à prática do etarismo com as pessoas mais próximas a nós... Parece que são com as pessoas que mais amamos que as "violências sutis" ocorrem.  Por outro lado, pensando no conceito de "lugar de fala", cabe também, relacionalmente,  à pessoa que está se sentindo violentada por este preconceito, denunciá-lo sempre, a fim de que nossas relações "se movimentem" para a construção de relações mais bonitas e saudáveis... mais humanas, enfim... com a prática da aceitação do feedback, do exercício da alteridade e da empatia. Além disso, rir da gente mesmx (dos nossos próprios pré-conceitos, "medos de envelhecermos"), como sempre conversamos no SBC, desoxida talentos, inclusive o talento para "bem viver".



Com isso passamos ao depoimento a seguir, um relato do "ponto de vista" (esse termo me parece bastante interessante, ponto(s) de vista existem vários, e é bacana estarmos atentos a pelo menos alguns deles) de uma velhinha, que, de maneira alguma, considera pejorativo o termo "velhinha", pois a idade, para ela, está sendo a aprendizagem da humanidade, da humildade e da sabedoria:

" Quando remexo minhas lembranças, parece que foi ontem que eu era adolescente, nos anos 60... E eu, nessa época, pensava em como seria a virada do século... E pensava em como eu estaria velha! 
Pois a virada do século chegou, depois de dois casamentos, filhos, netos... E eu com quase 50 anos... 
Então, curioso, não senti o que pensava que sentiria... Pelo contrário, me senti talvez com uns 20 anos... Mas como? me perguntei... Bem, no sentido físico estava bem, não sentia, ainda, nenhum PVC (porra da velhice chegando), aqueles pequenos incômodos que sinto agora ao levantar, que passam com o "endireitamento" do corpo... No sentido do "espírito", me sentia com muita vontade de "cair no mundo"... E foi o que fiz (isso significou, pra mim, conhecer pessoas, me envolver, amar, transar) ... No sentido "intelectual" me sentia mais ou menos no princípio de uma jornada que eu vislumbrava pra mim mesma, a de ser uma profissional competente, uma palestrante de peso (com conteúdo suficiente para boas trocas com seu público); queria, também, continuar escrevendo, já gostava muito de escrever nessa época... E eu comemorei a vidada do século pensando em Rosa Luxemburgo, que comemorou a virada de 1999 para 2000, me pensando, também, sob o ângulo político, queria muito mais aprender e desenvolver uma visão de mundo - e participar da construção de um mundo mais justo e bonito.

Pois bem, estamos agora em 2023... E eu estou "velhinha"... meu corpo já sente os incômodos ao levantar, mas nesses vinte e poucos anos tentei me cuidar, fazer exercício físico é imprescindível, construir hábitos saudáveis - alimentação, parar de fumar, dormir bem, essas coisas... Mas no sentido intelectual, percebo que foram os anos mais produtivos da minha vida. Não sem esforço, costumo dizer que é o mesmo esforço que gastamos para a inércia, consigo hoje "ser quem eu queria ser", e este estado não é, de jeito nenhum, estático... Sei que posso caminhar muito mais... E quero isso, o "esforço" se transforma em prazer, acreditem... No plano afetivo-sexual me sinto, agora, com "energia para o amor" talvez maior do que a da virada do século, talvez um pouco mais sábia, ou um pouco mais besta, não sei ainda muito bem... Bem, trabalho muito para me manter atualizada (e sei que perco muitas coisas), o mundo se transforma mais rapidamente do que no século passado, a tecnologia anda "a galope" (nossa, esse termo é muuuiiiito antigo...); mas, talvez, a "sabedoria de quem sabe que nada sabe" seja a que nos faz rir da gente mesma e querer viver cada momento como se fosse o mais importante das nossas vida... E disso é feita a vida! Brindemos à vida!"


Agradeço imensamente a essa querida "velhinha" amiga, super SBCense, pelo seu depoimento, que me identifico plenamente, pois me vejo como essa mulher "do século passado" e que se vê como "em constante aprendizagem" ... Comovente, uma lição de vida.

E, para mim, uma das experiências de vida mais prazerosas, foi, nesse século, a construção desse coletivo SBC (Samba, Bobagem, Cerveja), pois através dele - e da arte - me enriqueço e coloro a minha vida com  as mais alegres e brilhantes cores.  "A arte salva", a arte é vida pulsante, em movimento, as angústias, os amores não correspondidos, os não reconhecimentos, as micro violências,  tudo isso transformado em arte produz "superações"... Assim como os "amores bem vividos", a vida bem vivida, também é uma arte...




Conheci semana passada a querida Marluce Cerqueira, que já é  SBCense "amiga de infância"... e parece que vive, também,  inquietações da nossa idade... inquietações que transforma em arte, em poesia, crônicas... Ela é professora, atriz, e "uma mulher em constante construção". Obrigada querida, por compartilhar conosco suas crônicas: a seguir, uma delas que nos faz "rir - e chorar - da gente" e seguir na vida:


SENILIDADE

Tempos atrás fui ao médico, dermatologista, por causa de umas pequenas manchas nos braços.
Após o exame, veio o diagnóstico: senilidade! Assim, dado à queima-roupa, sem preparo algum –
achei de uma insensibilidade -, olhei para o médico com um misto de incredulidade, surpresa e
indignação. E ele, ironicamente, disse: “a outra opção era pior ...”. Que opção? Câncer de pele ou a
morte? Escolhe-se alguma delas, ou é fatalidade? Levantei-me dignamente no alto de meus 1,61 m
– por que não calcei aquela sandália de salto, pensei. Não adiantaria muito já que o doutor
quarentão era um gigante na altura e ainda tentou me convencer de que eu estava “muito bem
para a minha idade”. Azedou. Nunca mais piso no solo daquele consultório.
Hoje recebi o resultado de meus exames de sangue. Colesterol, o bom, baixo, o mau, alto. Índices
glicêmicos: alterados. Seguro de vida: redução do “prêmio” devido aos resultados e à mudança de
faixa etária! Cadê os benefícios do envelhecimento? A sabedoria, o equilíbrio, o meio termo ...
Nesse momento, tudo isso me parece prêmio de consolação.
Daí, estou ouvindo “Casta Diva”, primeiro ato de “Norma” ópera de Vicenzo Bellini, com Maria
Callas em divina performance (que voz!) e eu abrindo os alçapões da tristeza e do drama. E depois,
lembrei-me da linda e tristíssima cena do filme “Filadélfia” em que Maria Callas canta “La Mamma
Morta” e fui ao YouTube ver, rever e chorar.
Como desgraceira pouca é bobagem, entrei no túnel do tempo (ao som de Norma, ópera
completa) e fui buscar todas as vezes em que entristeci e chorei. Lembrei-me de minha primeira
briga de verdade em que revidei um empurrão e tive o vestido rasgado – e apanhei de minha mãe
pelo vestido descosturado (por causa disso aprendi a bordar, fazer crochet e tricô, mas nada disso
atenua o desalento de agora). E a história do vestido rasgado resgatou outra recente, de uma
eleição passada, em que uma criança ao escapar da mão da mãe, correu em minha direção e
levantou meu vestido, enquanto eu assinava. E eu só conseguia pensar: será se estou usando uma
calcinha bonitinha ou é uma daquelas de Bridget Jones? Deletei o que aconteceu depois, o sorriso
amarelo, a vergonha, a vontade de sair correndo.
E continuo desfiando o rosário das desgraças e os nãos que ouvi na vida (momentaneamente,
esqueci os muitos sins); dos amores que não deram certo (defenestrei as boas lembranças). E
chorei. E até poetizei o choro. Sim! Escrevi um poema (nunca admiti que já escrevi algumas rimas
pobres), uma ode às lágrimas e aos desalentos amorosos: Choro quando me torno invisível aos
seus olhos/Choro quando você me ignora/Choro quando você não me vê/Choro, choro
úmido/Choro, lágrimas não derramadas/Choro por desamor/Choro também por amor /Choro, não
me contenho/Choro por mim/Choro por nós/Choro pelo que podia ser/Choro pelo que não
foi/Choro pela sua falta/Choro pela sua volta/Choro, solitária/Choro, choro, choro. Misericórdia! É
muita emoção pra tão pouca dor.
Velha, eu? Idosa? Caramba! Retorno, lentamente, à sabedoria creditada às anciãs. Apaziguo minha
mente confusa, faço as pazes com meu corpo esguio, afago meu consolável coração. E reconheço
a lindeza de minha história. Vida que pulsa.


Por último, ótimo será quando,  superando o medo do próprio envelhecimento,  exercermos nossa cidadania e realizarmos ações afirmativas, reivindicando nossos  direitos, por exemplo, lutando por uma cidade mais inclusiva para todas as idades... e também para "todos os gêneros", necessidades especiais...  e por aí vai... Junto com os cabelos brancos - ou da cor que vc quiser - "tem muitos anos de experiência e trabalho...", como diz nossa vereadora Cida Falabella.



Gratidão querida Marluce, gratidão aos que nos leem... até a próxima...




sábado, 27 de maio de 2023

Reflexões SBCenses: sobre PAZ

 


Este símbolo da paz foi criado no ano de 1958, pelo designer britânico Gerald Holtom (1914-1985), com o objetivo de servir como protesto contra a construção de armas nucleares na Inglaterra. Já que eles estavam num momento de pós-Segunda Guerra Mundial, em que os países estavam planejando dar início a uma corrida armamentista. Assim sendo, para criar o símbolo, o artista decidiu utilizar as letras N e D, que significavam “nuclear disarmament”, ou seja, desarmamento nuclear. Basicamente, era esse o pedido da população, de modo geral. Afinal, a sociedade estava se sentindo desprotegida e ameaçada pela guerra nuclear. 

Além das letras do símbolo da paz, vale destacar também que os traços internos poderiam ser vistos como parte do corpo de um boneco de palito. Ou seja, a intenção era visualizar o boneco com os braços para baixo e as mãos espalmadas, em sinal de agonia e desespero. Além disso, o círculo em volta representaria a terra, nosso planeta.


Para fazer tal símbolo, Holtom se inspirou no quadro “Três de Maio de 1808”, do pintor espanhol Francisco de Goya, que representa o acontecimento que se conhece como o levante de 3 de Maio, ocorrido em 1808, após Napoleão invadir a Espanha e a casa real seguir as suas ordens. A revolta estoura nesse dia, quando uma parte do povo de Madrid tenta evitar a saída, ordenada pelos franceses, do infante D. Francisco de Paula de Bourbon. As tropas francesas atiraram contra os madrilenos revoltosos. Foram ao redor de 400 vítimas. 44 revolucionários foram juntados e fuzilados na noite de 2 a 3 de Maio na colina do Príncipe Pío, em Madrid. Este é o episódio que Goya mostra no seu quadro, de 266 x 345 centímetros,  feito em 1814, atualmente no Museu do Prado, em Madrid.


Ainda na segunda metade do século passado,  o símbolo acabou ganhando outro significado. O que era para representar medo, euforia e desespero, passou a representar uma ideia de paz. Este segundo significado do símbolo da paz foi ganhando repercussão nos anos 60, particularmente na Inglaterra e EUA,  com o movimento de contracultura. Basicamente, esse movimento prezava por um modo de vida mais comunitário. Além de aderir a um estilo de vida mais nômade, com uma forte ligação com a natureza, espírito livre e, acima de tudo, contra todo e qualquer tipo de guerra. Por isso, engajaram tanto no lema “Paz e Amor”. Aliás, “Paz e Amor” é uma das frases idiomáticas associada ao movimento hippie. Eles são os responsáveis por imortalizar esse símbolo.

Assim sendo, esse símbolo representou a postura política dos hippies. Até porque eles eram responsáveis por inúmeros movimentos que buscavam os direitos civis, a igualdade e o anti-militarismo.
Vale destacar também que um dos objetivos desse movimento era promover manifestações a favor da campanha pelo Desarmamento Nuclear, para o qual o símbolo da paz e do amor realmente foi criado.

Voltando um pouco na história, também após a Segunda Guerra foram organizados, na cidade de Paris, Congressos Mundiais pela Paz.  A artista francesa Françoise Gilot, que era companheira de Picasso na época, dera à luz uma menina,  Paloma. Para Picasso, os pombos eram um lembrete de sua infância e de seu pai, que o havia ensinado a desenhar pombosPicasso foi considerado um símbolo pela defesa da paz e da liberdade depois de pintar Guernica em 1937. em resposta aos bombardeios alemães na Guerra Civil Espanhola.


A partir da década de 1960, Picasso passou a estilizar cada vez mais seu desenho para representar a Pomba pela Paz. Também acrescentou um ramo de oliveira no bico, esse é um símbolo que segundo a Bíblia, trouxe a Noé a notícia de que a terra estava próxima.

Vejam que o conceito de PAZ não é absoluto, como todos os conceitos ... AMOR, DEMOCRACIA, LIBERDADE ... e por aí vai... O mais bacana no humano é que podemos - e devemos - sempre, conversar sobre o significado dos conceitos para cada um de nós, aqueles significados "prontos e internalizados" e consequências disso para nossas vidas e nossas relações... e novos significados, que podemos construir, e que podem servir de orientação para uma vida mais bonita, para relações mais prazerosas.


Nosso grande inspirador Rubem Alves, educador, teólogo e escritor brasileiro (1933-2014) faz uma crítica à imagem do pombo como símbolo da paz, numa de suas crônicas sobre relações humanas, muito importante para nós na época em que lemos, "traduzida" agora como se segue:
- Os animais da mesma raça, geralmente entram em briga por território ou pela fêmea. Mas eles não se matam, pois todos possuem uma espécie de "mecanismo de rendição". Por exemplo, os lêmures (primatas de Madagascar - vejam o filme...), parecem uns macaquinhos... quando um bando entra em briga por território com outro bando, e um dos bandos percebe que estão perdendo, eles exalam um cheiro forte, de maneira que o outro bando que está ganhando para a briga, os perdedores vão embora e o bando ganhador se apossa do território. Já os pombos - e os humanos - são os únicos que não possuem esse "mecanismo de rendição", de maneira que quando dois pombos adultos são presos numa gaiola... e, por algum motivo, começam a brigar, eles se matam, ou seja, os dois  morrem ao mesmo tempo, ou quase, pois têm mais ou menos a mesma força. Triste isso não é? Justamente os símbolos da paz, não dispõem de uma "bandeira branca". Nós, humanos, inventamos essa bandeira branca, porém, geralmente não a usamos... e isso percorre todos os níveis de relação, "na cama e no mundo" como nós, SBCenses, costumamos dizer...

Talvez nos falte a aprendizagem necessária ao exercício de alteridade e de empatia, como conversamos há pouco tempo (post de 18.05). Tampouco exercitamos o raciocínio dialético (tese - antítese - síntese, que já é uma nova tese, o início de outro movimento...). E alguns conceitos, tão importantes para a vida e as relações, necessitam tanto desse raciocínio! No entanto, costumamos nos fechar em verdades... o que nos leva a tantos "dramas relacionais" e sofrimentos que poderíamos evitar... 

Nessa toada entabulamos conversa e interpretações diferentes sobre a PAZ, buscando referências poéticas, musicais... que nos provocam o auto conhecimento (para aqueles que conseguem se despir dos mecanismos de defesa aprendidos na sua história de vida ...  negação, projeção, ...), e o desenvolvimento de relações mais bonitas e saudáveis, construindo, assim, uma vida tão livre e prazerosa quanto possível.

Começamos com nosso grande filósofo Gilberto Gil. Ouçam, a letra da sua música A PAZ, composta em 1986 com João Donato.

"QUE CONTRADIÇÃO, SÓ A GUERRA FAZ, NOSSO AMOR EM PAZ..." Segundo Gil: "A imagem dele [João Donato] dormindo sossegado, em plena luz do dia, me chamou a atenção para o sentido da paz."  - a paz de espírito. Essa imagem o fez lembrar da obra de Leon Tolstói, Guerra e Paz,  e a letra foi sendo composta com base nessa contradição. O paradoxo é recorrente na obra de Gil, segundo ele mesmo afirma: "essa é a recorrência básica no meu trabalho: yin e yang, noite e dia, sim e não, permanência e transcendência, realidade e virtualidade: a polaridade criativa (e criadora)"

Ao acompanhar o percurso de cinco famílias aristocráticas russas no período de 1805 a 1820, Tolstói narra a marcha das tropas napoleônicas e seu impacto brutal sobre a vida de centenas de personagens.

"O que é Guerra e paz?”, esta foi a pergunta que Liev Tolstói fez em um texto que detalha o processo de pesquisa e de criação de sua obra-prima. “Não é um romance, muito menos uma epopeia, menos ainda uma crônica histórica"..." Ninguém antes de Tolstói mostrou a guerra com tal realismo e poder artístico, negando qualquer interpretação romântica e vendo a guerra como a maior manifestação do mal, um fenômeno contrário à própria natureza do homem." O que e é ruim? O que é bom? O que se deve amar, e o que se deve odiar? Para que se deve viver e o que eu sou? O que é a vida, o que é a morte? Que força governa tudo?', ele se perguntava. [...] Você vai morrer e tudo vai terminar. Você vai morrer e vai ficar sabendo de tudo… ou vai parar de perguntar." Por fim, a obra-prima de Tolstói é uma leitura obrigatória para qualquer pessoa que queira ter uma experiência literária única. "Guerra e Paz é uma obra-prima que todos devem ler para se conectar com a profundidade e a complexidade da vida humana. É uma leitura que deixará o leitor profundamente tocado e com uma nova perspectiva sobre a vida".

O provérbio acima, em latim, pode ser traduzido como "se quer paz, prepare-se para a guerra". A frase é atribuída ao autor romano do quarto ou quinto século Flávio Vegécio. 

Qualquer que seja a fonte, o provérbio se tornou um item de vocabulário que vive por si mesmo, utilizado na produção de ideias diferentes em vários idiomas. As palavras do próprio Vegécio nem sequer são reconhecidas por um grande número de escritores, que atribuem o ditado diretamente a ele.

Esta frase também foi usada como mote pelo fabricante alemão de armas Deutsche Waffen und Munitionsfabriken (DWM) para designar a sua pistola, Parabellum.

A frase também é referenciada em vários filmes como, por exemplo, na trilogia John Wick.

E, nessa toada, vamos lembrando, na história, em quantas guerras, quantos massacres, quantas tragédias humanas se fizeram "em nome da paz"... particularmente no século passado, tão próximo historicamente... Na primeira metade daquele século duas guerras mundiais... na segunda metade, período dito da "guerra fria", quantas "invasões" em nome da paz o imperialismo estadunidence fez - e ainda faz - a países em todo o mundo? Sem falar da bomba atômica sobre Hiroshima, no Japão, lançada pelos EUA em agosto de 1945, depois que já tinha acabado a segunda guerra mundial.  

Guerra das coreias, Vietnan, conflitos árabes-israelenses, guerra irã-iraque, golpes de estado na América Latina ... e, com isso, o desenvolvimento da indústria de armamentos. Imaginem o lucro com a dita economia de guerra. Agora, pensem na mais conhecida guerra atual, Rússia-Ucrânia. Para qual (ou quais) países é interessante a manutenção dessa guerra? Para a Rússia? Para a Ucrânia? pensamos que esses dois países seriam os menos interessados... E outros conflitos sangrentos pelo mundo: Etiópia, Iêmen, Haiti, Mianmar, Síria, Afeganistão... tudo em nome da paz, grande mentira!


Concluímos - provisoriamente - que os conceitos de paz podem variar de cultura para cultura e de pessoa para pessoa, assim como nos vários níveis de relação (de relações intimas até "nós no mundo e o mundo em nós"); e caminhamos para reflexões sobre o desejo de paz nos relacionamentos...


Em 1966 Elza Soares defendeu a música "De amor ou paz" de Adalto Santos e Luiz Carlos Paraná, no Festival da Record, classificando-se em segundo lugar.


Quem anda atrás de amor e paz não anda bem
Porque na vida o que tem paz, amor não tem
Seja o que for, sou mais do amor, com paz ou sem
Sei que é demais querer-se paz e amor também

Já que se tem que sofrer, seja a dor só de amor
Já que se tem que morrer, seja mais por amor

Vou sempre amar, não vou levar a vida em vão
Não hei de ver envelhecer meu coração
Vou sempre ter em vez de paz, inquietação
Houvesse paz, não haveria esta canção.

E, nos deliciando com letra e música dessa canção, pensamos nas várias expressões de paz e seus significados:
Paz no mundo... Paz nas relações... Descanse em paz... Me deixa em paz... A paz esteja convosco...

E mais essa que o SBC intitula música de lama, "precisamos" dessas músicas para chorar de amor até rir da gente e do amor idealizado...


A paz no mundo, inegavelmente, precisamos lutar por ela... elegendo governantes estadistas, por exemplo... também, buscando mais conhecimentos que ampliem nossa visão de mundo... capitalismo, imperialismo, socialismo, comunismo...
Porém, a busca de paz nos relacionamentos pode vir a ser um equívoco. Pensamos no equívoco de se buscar relacionamentos perfeitos, idealizados, sem conflitos...  pois sabemos das distorções que aprendemos a internalizar do conceito de CONFLITO...  de maneira tal que, ao buscarmos a paz nos relacionamentos, evitando os conflitos, nós nos desumanizamos... pois o conflito faz parte do humano, é através dele que crescemos. Então só tem um jeito: autoritariamente, impondo ao outro nosso modelo, petrificando as relações... enfim, reproduzindo nas relações o modelo maniqueísta  certo|errado, bem|mal, verdade|erro,  ...  nossa proposta é a de combatermos, sempre, este modelo, "guerreando", às vezes conosco mesmxs, quando procuramos a paz como sossego... tudo isso valendo para as relações afetivas-sexuais, afetivas-parentais, afetivas-amigáveis...
Um grande amigo me diz que está buscando a paz nos relacionamentos... e esta fala me surpreendeu: em vez de buscar a paz não seria saudável buscar alegrias de bons encontros, tesão,  crescimento mútuo, encontro de desejos...  quem está procurando paz nos relacionamentos não estaria se defendendo de frustações em função de idealização das relações... de si mesmx... do outro... grande psicanalista brasileiro, Christian Dunker , fala bastante disso, dos comportamentos de evitação,  desses mecanismos de defesa que, ao fim e ao cabo, tornam nossas vidas menos interessantes, pobres... relações acabam, se transformam, e enriquecem nossas vidas... a capacidade de amar e ser amada está em nós... não "envelheça" seu coração, como nos diz Elza...
Por fim, nos deparamos com uma outra concepção de paz que denuncia, como um soco no estômago, a "mentira" da busca da paz enquanto se matam crianças:

DA PAZ

por Marcelino Freire 

Eu não sou da paz.

Não sou mesmo não. Não sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. Não solto pomba nenhuma, não, senhor. Não venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A paz é uma desgraça.

Uma desgraça.

Carregar essa rosa. Boba na mão. Nada a ver. Vou não. Não vou fazer essa cara. Chapada. Não vou rezar. Eu é que não vou tomar a praça. Nessa multidão. A paz não resolve nada. A paz marcha. Para onde marcha? A paz fica bonita na televisão. Viu aquele ator?

Se quiser, vá você, diacho. Eu é que não vou. Atirar uma lágrima. A paz é muito organizada. Muito certinha, tadinha. A paz tem hora marcada. Vem governador participar. E prefeito. E senador. E até jogador. Vou não.

Não vou.

A paz é perda de tempo. E o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Arroz e feijão. Sem contar a costura. Meu juízo não está bom. A paz me deixa doente. Sabe como é? Sem disposição. Sinto muito. Sinto. A paz não vai estragar o meu domingo.

A paz nunca vem aqui, no pedaço. Reparou? Fica lá. Está vendo? Um bando de gente. Dentro dessa fila demente. A paz é muito chata. A paz é uma bosta. Não fede nem cheira. A paz parece brincadeira. A paz é coisa de criança. Tá uma coisa que eu não gosto: esperança. A paz é muito falsa. A paz é uma senhora. Que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. A paz é muito branca. A paz é pálida. A paz precisa de sangue.

Já disse. Não quero. Não vou a nenhum passeio. A nenhuma passeata. Não saio. Não movo uma palha. Nem morta. Nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Eu não abro. Eu não deixo entrar. A paz está proibida. A paz só aparece nessas horas. Em que a guerra é transferida. Viu? Agora é que a cidade se organiza. Para salvar a pele de quem? A minha é que não é. Rezar nesse inferno eu já rezo. Amém. Eu é que não vou acompanhar andor de ninguém. Não vou. Não vou.

Sabe de uma coisa: eles que se lasquem. É. Eles que caminhem. A tarde inteira. Porque eu já cansei. Eu não tenho mais paciência. Não tenho. A paz parece que está rindo de mim. Reparou? Com todos os terços. Com todos os nervos. Dentes estridentes. Reparou? Vou fazer mais o quê, hein?

Hein?

Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, ao lado de polícia. Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Uma saudade. Sabe? Uma dor na vista. Um cisco no peito. Sem fim. Ai que dor! Dor. Dor. Dor.

A minha vontade é sair gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! Matando todo mundo. É. Todo mundo. Eu matava, pode ter certeza. A paz é que é culpada. Sabe, não sabe?

A paz é que não deixa.


Enfim... penso que precisamos MUITO de estadistas que lutem pela PAZ... lutemos com eles!!!

e, nos relacionamentos, precisamos MUITO nos livrar de idealizações...  e incluirmos os conflitos nas nossas vidas e nas nossas relações como aprendizagens de crescimento, de humanização e de prazer com a através dx(s) outrx(s). 


Abraços carinhosos...




quinta-feira, 18 de maio de 2023

Conversas SBCenses: sobre RECONHECIMENTO

 


E aproveitamos o "embalo" do Todorov para praticar outro TAP: 

O livro A vida em comum  integra a Coleção Todorov, Simbolismo e interpretaçãoTeoria da literaturaTeorias do símbolo,  Teoria da literatura, ...


Neste ensaio o filósofo búlgaro percorre um único domínio do vasto campo da Antropologia para estudar o ser humano a partir de um ângulo incomum. Ele busca compreender não o lugar que o homem ocupa na sociedade, mas, ao contrário, o lugar que a sociedade ocupa no homem: 

Em que consiste, para o indivíduo, a exigência de conhecer apenas uma vida em comum? Todorov almeja melhor compreensão do objetivo da existência humana. E demonstra que é preciso ir além do que se percebe a partir de concepções, correntes (que podem ser antagônicas), carregadas de conceitos antropológicos subjacentes. Tais concepções induzem a pensar que o objetivo da existência humana é o desenvolvimento do indivíduo, a realização de si ou o progresso da sociedade, ainda que este implique em sacrifício de certas vantagens do indivíduo. Para Todorov, estas duas versões do ideal humano participam de uma mesma concepção do homem, que o representa em antagonismo com seu meio social, tornando necessário escolher: o indivíduo ou a sociedade. Ele professa, porém, que 'o si mesmo' existe apenas na e por sua relação com os outros e "intensificar a troca social significa intensificar o si mesmo": "Tomar consciência de que o objetivo do desejo humano não é o prazer, mas a relação entre os homens, pode, ao mesmo tempo, nos permitir reconciliar-nos com situações que pareceriam insatisfatórias sob outros critérios e agir de forma a melhorar a vida da sociedade de modo duradouro e geral".

Interessado especialmente em Rousseau, para quem 'a vida em sociedade é uma vocação humana, embora, em aparente contradição, ele vivesse solitário', Todorov dialoga nesta obra com pensadores de várias épocas, como Hegel,  Montaigne, Kant, Nietzsche, La Rochefoucauld e Freud. Ele recorre ainda, 'mais do que habitualmente', à literatura: "As verdades desagradáveis, para o gênero humano ao qual pertencemos, ou para nós mesmos, têm maiores possibilidades de conseguir exprimir-se em uma obra literária do que em uma obra filosófica ou científica".

Diz-se que o homem é um ser social. Mas o que exatamente significa essa frase? Quais as consequências desta observação aparentemente banal, que não há um eu sem um você? O ser humano estaria condenado à incompletude? Neste livro não há, como avisa o autor, um discurso fechado em certezas ou verdades absolutas, mas um amplo vasculhar sobre a questão.

. Depois desses passos, fomos à escolha da UNIDADE SE LEITURA, já "conversando" com o autor, com outros autores, e entre nós:

A VIDA EM COMUM - CAP III O RECONHECIMENTO E SEU DESTINO

Todorov, neste capítulo,  começa citando Rousseau, Hegel e Adam Smith, autores que situam a questão do reconhecimento como um dos processos elementares - primeiro porque o reconhecimento marca a entrada do indivíduo na existência humana. Mas apresenta também uma singularidade estrutural, surgindo, de certa maneira, como o duplo obrigatório de todas as outras ações. 

Os exemplos são parecidos com nosso grande escritor G. Rosa: "sou quando divirjo". Quando uma criança se reconhece como sujeito de suas próprias ações, se vê como um ser que existe... e é quando ela é aprovada ou desaprovada - reconhecida - ou não.

A questão do reconhecimento passa pelas coisas mais simples, como a maneira como me visto  - "escolho minhas roupas em função dos outros, ainda que seja para dar a entender que eles me são indiferentes" ... e atravessa todos os níveis de relação (profissional, relações pessoais, amor, amizade - até o nível público).  

Imagine o indivíduo que investiu o essencial da sua demanda de reconhecimento no domínio público (servir à sociedade e ao Estado), mas dele não recebe mais nenhuma atenção... descobre-se, repentinamente, privado de existência.

O reconhecimento, Todorov nos mostra, constrói-se como uma relação assimétrica - o agente confere o reconhecimento - o paciente o recebe.

- A mãe e o pai reconhecem o filho\filha. 

-  No entanto, podemos pensar também no reconhecimento INDIRETO  do agente: sentir-se necessário por creditar reconhecimento ao outro faz com que nos sintamos reconhecidos (inclusive na superioridade).

- E os filhos reconhecem pais e mães...

(aqui lembramos de exemplo de mulher, mãe, que descobriu num processo terapêutico, que "dependia da dependência dos filhos" para dar sentido à sua vida. E, por isso, os mantinha infantilizados. Dá pra entender COMO nós (mães - e pais) devemos "dar conta" da própria vida e, por consequência, "permitir que os filhos cresçam, sejam o que quiserem ser...)

Uma pergunta do autor: a aspiração ao reconhecimento é verdadeiramente universal ou é uma característica da nossa sociedade ocidental? Resposta: é universal e constitutivo da humanidade o fato de entrarmos, desde nosso nascimento, em uma rede de relações inter-humanas, portanto, em um mundo social; é universal almejarmos o sentimento de nossa existência. Os meios que nos permitem ter acesso a esse sentimento é que variam de acordo com as culturas, com os grupos, com os indivíduos. Do mesmo modo que a fala é universal, enquanto que o sentido que damos às palavras ou significados são aprendidos. 

Todorov lembra de Hegel, ligando a demanda de reconhecimento com a luta pelo poder:  ... de fato, numa relação assimétrica, onde a superioridade ou a inferioridade dos parceiros é dada de antemão,  cada um deles não deixa de desejar a aprovação do olhar do outro... como uma criança com seus pais. 

Aí a gente cresce ... e este comportamento é retomado em outras relações ... se não caminhamos no sentido do amadurecimento necessário, ou seja,   continuarmos com o desejo do reconhecimento - já que esse desejo é inerente ao ser humano, porém, sobrepondo ao mesmo o desejo de ser livre - livre para pensar, sentir, agir... aí estaremos nos movimentando para a construção (para a vida toda) da nossa identidade autônoma, a "construção" da resposta à pergunta quem sou eu, meus objetivos, ideais, valores...

Como "retomado em outras relações"? Sim... "vira e mexe" caímos na armadilha de ser do jeito que o outro quer que eu seja a fim de sermos reconhecidxs, amadxs, estimadxs... e, então, perdemos nossa liberdade, nos transformamos em escravos do outro. 

"Aquele que treme diante da morte vira escravo"... morte, aqui, uma metáfora do não reconhecimento. Quantas vezes abrimos mão da nossa liberdade,  sucumbimos ao desejo de ser reconhecido e viramos escravos, nos transformando "naquilo que o outro quer que eu seja"!!! E quantas vezes confundimos isso com amor!!!

Então ... o tempo todo estamos vivenciando a dialética senhorxescravo... e a consciência livre.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel filósofo germânico (1770 – 1831) 

Um pouco sobre nossa compreensão de Hegel: para ele, a História é a história das relações sociais, Esta história começa quando existem dois desejos humanos confrontados. O que o ser humano deseja é ser desejado por outro ser humano. Isso significa ser reconhecido pelo outro. O ser humano quer que os outros lhe atribuam um valor destacado, um valor próprio, que o diferencie das outras pessoas. Isto é o que define a condição humana. Portanto, segundo Hegel, o mais característico do ser humano é se impor diante dos outros. Só quando o outro indivíduo o reconhece como alguém autônomo cria-se a autoconsciência. Por sua vez, as autoconsciências constroem lutas entre os sujeitos: 

- eu, sendo sujeito, quero ("inconscientemente") te submeter, te tornar escravo... você luta para se afirmar, ser sujeito, e também quer me submeter...  dessa luta entre dois sujeitos (que, ao mesmo tempo, querem ser senhor, submeter x outrx... e se transformam em escravos para serem senhor) vai acontecer "algum" tipo de relação, inclusive a "não relação"... e o tempo todo estamos vivendo relacionalmente essa dialética: "o senhor é escravo do escravo", e "ao escravo falta a consciência, por isso seu fazer é para o senhor, para mudar de posição, ser o senhor"... com a consciência caminhamos para a superação dialética... o ser livre, ser sujeito... que não é estático, definitivo... melhor dizendo, seria a consciência que nos permite "ver" essa "cobra que morde o rabo" e "virar a chave" para relações mais simétricas e mais bonitas.

- Não podemos (e não devemos) contar com a certeza do reconhecimento dx outrx - nem das mães, como querem que acreditemos. Imaginem numa relação íntima:  um dos pares só contará com a certeza do reconhecimento do outro se o transformar num "objeto", num ser domável e previsível. E esse movimento, embora um tanto comum, costuma "acabar com o amor", petrificá-lo, como já conversamos com o filósofo Francesco Alberoni no seu livro "Enamoramento e amor". 

Na certeza do amor (reconhecimento) podemos "tratar mal" as pessoas que mais amamos...  "A intimidade gera desprezo", "aprendemos" isso, faz parte da nossa cultura, como Erving Goffman diz no seu livro "A representação do eu na vida cotidiana". Mas nós acrescentamos: caminhando para a simetria nas relações (até com a mãe) a intimidade pode (e deve), também,  gerar delicadezas, admiração, carinho, enfim, amor... 

Do outro lado da mesma moeda temos a possibilidade de manipulação desse desejo de ser reconhecido, amado... muitas pessoas usamos ("de inconscientes o inferna está cheio", como diz um SBCense querido) de mecanismos -  como, por exemplo, seduções desnecessárias se queremos uma simetria na relação - que podem ser confundidas com o que podemos falar da manutenção de "delicadezas relacionais". Necessário distinguirmos, tanto na posição de agente como de recebedores, essas manipulações (ou delicadezas).

Ainda, outra manipulação (do desejo de reconhecimento) possível: fazer tudo para o outro com o objetivo de controlá-lo. "Ingrato é aquele que não se rende aos meus favores", já dizia Nietzsche. Filho ingrato, marido ingrato, mulher egoísta, funcionário desobediente... quem nunca ouviu, ou falou, ou pensou isso? 

Ainda, quando caminhamos da necessidade de reconhecimento para o desejo de ser livre, aprendemos a receber NÃOs, assim como dizer NÃOs aos outros dizendo SIMs para nós mesmos. Pois não topar o risco de dizer sim a mim mesmx e\ou de receber um não dx outrx me faz cair, retroceder, voltar a ser escravo. Precisamos aprender que receber um "não livre" pode me deixar triste num primeiro momento - mas me deixa livre, e isso é bom pra vida. 

Voltando ao autor da nossa unidade de leitura: 

Ele nos coloca duas formas de reconhecimento:

1. reconhecimento de conformidade - o reconhecimento por se conformar o máximo possível, aos usos e normas apropriadas à sua condição . ex.: no trabalho, se a sociedade já reconhece meu trabalho aparece menos a necessidade do reconhecimento de distinção. Apenas contento-me com o reconhecimento de conformidade, cumpro meu dever, sirvo à minha empresa. A simples submissão às regras já me traz uma imagem positiva de mim mesmo - eu existo - não desejo nem preciso ser excepcional para obter o reconhecimento.

2. reconhecimento de distinção (o mais forte, o mais belo, o melhor)

- o desejo de reconhecimento é igual nos dois tipos: a satisfação obtida na conformidade explica os sentimentos comunitários - por outro lado, o reconhecimento pela distinção gera o orgulho pessoal. As duas formas de reconhecimento são, muitas vezes, conflituosas: a distinção favorece a competição, a conformidade está do lado do acordo.

- Refletimos sobre "TUDO QUE ME SALVA PODE ME MATAR"... daí é que precisamos sempre estar atentos e fortes... para distinguir o que me prende, me torna escravo, e o que abre caminho para "ser livre"...

Outro aspecto que o autor aborda é sobre o desenvolvimento do reconhecimento (não sobre sua forma): primeiro precisamos do reconhecimento da nossa existência, o reconhecimento no sentido restrito; e, segundo, a confirmação do nosso valor (positivo ou negativo)

- Exemplo.: falem mal mas falem de mim - o desprezo é melhor do que se ignorar a pessoa... diferença entre rejeição e negação, desdém e ódio (ser detestado não desencadeia a morte do eu. "O ódio por alguém constitui sua rejeição: pode, no entanto, reforçar seu sentimento de existência; mas ridicularizar uma pessoa, não levá-la a sério, condená-la ao silêncio e à solidão, é ir muito mais adiante: ela se vê ameaçada de tornar-se nada".

"NÃO IMAGINE QUE TE QUERO MAL, APENAS NÃO TE QUERO MAIS..."

"Aceitar as situações mais humilhantes valem mais do que a falta de reconhecimento: "a escravidão torna-se desejável, se nos assegurar o olhar do outro"...

- Nessa questão, ou dilema: SER REJEITADO X SER IGNORADO, Todorov coloca a metáfora da Raposa e das uvas, uma lição bastante interessante... "A raposa pula, pula, para alcançar o cacho de uvas que ela tanto desejava... quando percebe que não conseguiria, ela abandona o objetivo com o argumento "estão verdes".

- E finalmente, Todorov reflete que podemos nos tornar a única fonte de reconhecimento (autismo, orgulhoso) - e ele cita o exemplo dos artistas,  o conflito entre "uma auto estima inquebrantável", e "a dependência do reconhecimento do público"... 

"Em nossos dias o sucesso é um valor social que procuramos ostentar - o prestígio não é o mesmo que a glória"

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SITUAÇÕES ASSIMÉTTRICAS E A BUSCA DE RELAÇÕES IGUALITÁRIAS (SIMÉTRICAS)


E, finalmente, Todorov nos mostra como o reconhecimento constrói assimetrias: queremos reconhecimento dos superiores, mas também dos inferiores - o senhor precisa do seu servo - (professor do aluno, etc.) Porém, nas situações igualitárias, simétricas, aparece com facilidade a rivalidade.

À primeira vista, a ideia do autor de associar rivalidade com relações simétricas nos causou perplexidade e resistência: COMO!..., se acreditamos que a busca de relações simétricas significa amadurecimento emocional e relações mais bonitas e prazerosas!!!

Porém, com o "exercício de paciência nietzschiana diante do que nos é mais antípoda", "ruminamos" sobre isso... com a ajuda preciosa do Hegel, tentando sair do "raciocínio maniqueísta" e exercitar a "inteligência dialética" chegamos a algumas reflexões que nos ajudam no caminho de "virar a chave":

. primeiro, como é mais fácil (e perigoso... e mais comum) fazermos, relacionalmente, o raciocínio maniqueísta (ou-ou) associado à idealização do amor - ou seja, ou amo incondicionalmente... ou odeio, ou desprezo...
 
. ora, somente fazendo o exercício de auto observação, constatamos que um sentimento não acontece de maneira "pura", está sempre permeado de inúmeras outras emoções. E as mesmas quando são negadas, reprimidas, é que podem destruir o amor...

. portanto, o movimento de humanização do amor, de todos os amores possíveis, em todos os níveis de relação... é que pode nos trazer, dialeticamente, a possibilidade de considerarmos a construção de relações simétricas... ao mesmo tempo que tomamos consciência da possibilidade, sempre, da rivalidade, ou seja, de estarmos praticando a relação senhor-escravo...

. ou seja, já que o reconhecimento é universal e inegável, durante toda a vida e em todas as relações, e essa "necessidade" começa assimetricamente, nas nossas primeiras relações mãe,pai-filho - e já que o reconhecimento nos faz reproduzir a relação senhor-escravo (tentar submeter o outro e|ou ser submetido)... e essa relação é tão contraproducente para uma vida "bonita", tão livre quanto possível ... 

. e já que, para nós, nosso amadurecimento se dá no sentido de  buscar relações simétricas...

. concluímos com a indagação: COMO estarmos sempre construindo no sentido da SIMETRIA, sem negar, sem estar, também, sempre, considerando essa nossa humanidade que é o desejo de ser reconhecidx?

. E terminamos por aqui, com mais indagações do que com respostas. Apenas com a convicção:

AMAR E SER LIVRE... HUMANAMENTE...  ESSA É NOSSA UTOPIA... 

Enfim... uma boa "virada de chave"...



Abraços carinhosos...