domingo, 24 de outubro de 2021

Divulgando nosso encontro Prosa Arte e Samba: tema SOBRE VIVER

 



Card Convite para nosso encontro, gentileza do nosso querido SBCense ZUM Noronha.

                                           
https://youtu.be/u0KEJNSyfkw

Este foi um vídeo que fiz uma semana atrás, aproveitando um trecho de poema do Drummond gentilmente enviado pela SBCense Zezé Birro. 

Ele nos convida para esse evento, junto com outrx poetas e filósofos, inclusive a Rita Von Hunty "em algum lugar dessa tela".

Aproveitem para se inscrever no nosso canal e dar um "joinha"... agradecemos...

Se puderem compartilhar também, aí a gente fica feliz demais da conta...



Este convite, com direito a um fundo musical de batucada, foi elaborado pela nossa querida Antonieta Shirlene. Ficou massa demais!!!

                                          
https://youtu.be/Bg43na9EKD8

E, por último, as duas Antonietas também nos convidando para esse "GRANDE EVENTO": dias das bruxas... SOBRE VIVER... 

Dá um "joinha" nesse também... e compartilha, viu?

Abraços carinhosos e ATÉ LÁ!!! 

Vai de bruxa(o)!!!



sábado, 16 de outubro de 2021

Conversas SBCenses: MAID (faxineira)

 

Martha Medeiros (1961-...) Jornalista e escritora brasileira

Crônica da Martha Medeiros na Zero Hora de 09.10.21 e no O Globo de 10.10.21 sobre a série  MAID, da NETFLIX, agitou grupos de whatsapp esta semana. A crônica era um verdadeiro estímulo a vermos a série, principalmente as mulheres. Ela diz, entre outras coisas:

"MAID é sobre abuso,. Nem físico, nem sexual. O assunto é mais entranhado. A personagem principal, Alex (Margaret Qualley), tem 25 anos e sofre abuso psicológico. Não é assédio moral, tão comum em relações de trabalho, e sim a violência emocional que acontece entre pessoas do círculo intimo. Dentro da família e dentro de casamentos."

"É sobre feridas que não ficam visíveis através de hematomas. Que são abertas na alma e sulcadas lentamente, dia após dia, sem chance de cicatrização, e tão triviais se tornam que a gente acaba se acostumando, achando que é assim mesmo, faz parte da vida."

"MAID é sobre cortar o laço com a dor psíquica. É sobre ter coragem de se afastar em definitivo de quem nos faz mal."

"Não é sobre o que eles fazem, mas sobre como nos sentimos. Se nos sentimos inferiores, acuadas, fragilizadas, presas, impotentes, estamos sofrendo agressão emocional, e nesse aspecto a atuação da Margareth Qualley é perfeita. Só de olhar para ela, reconhecemos o dano. Sua coragem para interromper o ciclo de ir em busca de sua integridade é inspiradora e comovente."

 Lembramos de um bloquinho de carnaval aqui em Belo Horizonte (ai... saudade do carnaval). Os nomes dos blocos são super criativos. Este se chamava "QUEM NUNCA". A série nos mostra uma sobrevivente de violência doméstica e toca profundamente a todas nós, nenhuma mulher deixa de se identificar com uma (ou mais) personagens femininas. Homens também comentaram, alguns se identificando com os personagens masculinos, outros se defendendo com falas do tipo "precisamos pensar para além das lutas identitárias", ou "mais produtivo olhar a floresta do que uma árvore". Porque se defendendo? Na visão de uma das nossas "conversantes", pela dificuldade de sair do seu lugar de "dominador". Verdade que somos todas e todos os "sofredores" de uma cultura patriarcal e machista. E somos, também todas e todos, reprodutores dessa cultura. Porém, a "reprodução" do ponto de vista da pessoa dominada, submetida, é muuuiiiito diferente da pessoa que sofre na posição do "dominador", ou seja, com os "ganhos" dessa posição e, por consequência, a dificuldade de abrir mão dos "ganhos", mesmo que seja "ganho secundário", pois o principal, o ganho da liberdade de SER, não é possível, não é compatível com a manutenção da posição de "poder". Podemos constatar, para além da leitura da série, que a violência de gênero ocorre em TODOS os níveis de relação, do íntimo, doméstico, até o público. 

Outra pessoa lembrou do susto que tomou, há bem pouco tempo, em canal do youtube de jornalistas super progressistas, um deles, ao falar do "despresidente" do nosso país, comentou sobre "o que a mãe dele teria feito com essa pessoa!". Pasmem: A CULPA É DA MÃE!!!

Para compartilhar um pouco nossas conversas e depoimentos, tenho que falar sobre a série, sem dar spoiler para quem não viu ainda, e, para quem já viu, incitar a reflexão e a mudança:


A história da trama foi inspirada na jornada de Stephanie Land, autora do livro de memórias Maid: Hard Work, Low Pay, and a MoMother’s Will to Survive, lançado em 2019,(Faxineira: Trabalho Duro, Salário Baixo, e a Força de uma Mãe para sobreviver). O livro se tornou um sucesso.  “Eu escrevi esse livro na esperança de que ele mude os estigmas em torno de mães solteiras, especialmente as que são pobres, que são tratadas como merecedoras das dificuldades pelas quais passam por causa das terríveis decisões tomadas na vida”, disse Stephanie.

A autora também passou por grandes problemas para garantir o apoio do governo, tendo que preencher vários formulários para provar sua elegibilidade em programas sociais. No livro, Stephanie fala sobre como a burocracia prejudica as pessoas mais pobres, e muitas vezes impede que elas consigam um futuro melhor. 

Comentários, na nossa conversa: embora possamos ver a precariedade das políticas públicas nesse sentido lá nos EUA, comparando com as mesmas, aqui no nosso país, o atendimento à mulher vítima de violência parece que é bem mais precário aqui. Embora nossa Lei Maria da Penha seja uma das mais avançadas no sentido da proteção à mulher vítima de violência, na prática, estamos perdendo direitos. Exemplo citado foi o  projeto da Casa da Mulher que faz parte do Programa Mulher: viver sem Violência, criado no governo Dilma, está praticamente paralisado.  Na prática, o que estamos vivendo no Brasil, lembrou uma pessoa da nossa conversa, é o caso recente da mulher em situação de rua em São Paulo, que já tinha perdido a guarda de cinco filhos,  e ficou presa por dezoito dias por roubar miojo, coca e suco (R$21,69) em supermercado da zona sul. "Só pensei em comer", disse ela ao ser solta. Choramos... e nos indignamos...

Após o lançamento do livro Stephanie Land vendeu os direitos de adaptação da história para a Netflix..

A série modifica algumas coisas do livro que merecem atenção:  a vida familiar de Stephanie, os relacionamentos amorosos da protagonista (na série Stephanie é Alex) e a relação das personagens com suas clientes.

No livro original, a vida familiar de Stephanie ocupa poucas páginas. Seus pais, exceto breves aparições, não fazem parte do livro. Já na série, a mãe de Alex  (interpretada por Andie McDowell, que também é mãe de Margaret Qualley na vida real) ganha uma importância fundamental. As duas personagens compartilham alguns dos momentos mais tensos da história. 

Para algumas "conversantes", especialmente as do século passado (a maioria) a mãe da Alex, Paula, é a mais marcante personagem feminina da série. Com todas as contradições, todo o "esticamento" (conflito) histérico, entre construir sua identidade, "quem eu quero ser" e a prisão no romantismo que nos "ensina" a imprescindibilidade de um homem para "dar sentido" às nossas vidas. A histeria, segundo psicóloga presente na nossa conversa, se define como "eu fora", alienação, distanciamento do "eu mesma". E, vemos na série, como essa mulher, a Paula, faz esse movimento de alienação, às vezes para de "manter viva emocionalmente" e, às vezes, como mecanismo de defesa e para se manter no mesmo lugar emocionalmente, com os mesmos valores orientadores do pensar, sentir e agir. Pois "mudar exige esforço". Porém, contraditoriamente, quando a gente percebe, é o mesmo esforço que também fazemos para nos manter na mesma posição. Aí Freud entrou na nossa conversa:

O papel do ex de Alex e pai de Maddy (Maddy, uma criança de 3 anos, linda interpretação) também ganha mais importância na série. No livro, o personagem aparece esporadicamente para ficar com a filha no fim de semana, mas não tem uma grande importância na história. Já na série, Sean é um personagem importante. Alguns capítulos abordam sua luta contra o alcoolismo e os traumas de seu passado. 

Uma "conversante" comentou: Quando ouvimos justificativas que que foi o álcool que o tornou agressivo eu me pergunto por que ele não descarregou sua agressividade no cachorro, no papagaio, no policial que o mandou pra casa? Por que justamente na mulher... e, também, e quase sempre, nos filhxs... Não seria porque vivemos numa sociedade que naturaliza, legitima, permite e "passa a mão na cabeça dele", ou seja, justifica a agressão à parte mais fragilizada, no caso?

A principal mudança do livro para a série é a introdução da personagem Regina, interpretada por Anika Noni Rose, atriz e cantora estadunidense. No livro, Stephanie trabalha em diversos locais como faxineira, e não gasta muito tempo com nenhum dos clientes. Na série, a trama aborda com profundidade a relação de Alex com a patroa Regina, que começa como uma simples transação comercial e termina como uma amizade.

                                            Anica Noni Rose (1972-...)

E uma conversante comentou: um dos capítulos mostra como são impessoais essas relações empregatícias lá nos EUA. A empregadora nem sabe o nome da faxineira, nem olha pra cara dela. Mas quando acontece alguma oportunidade ou algum motivo, elas desenvolvem a relação de sororidade, com simetria na relação. Ao contrário do nosso país, ainda com o "ranço" escravista, essas relações são encobertas por uma proximidade afetiva "falsa", quase sempre para esconder a exploração. Ainda temos exemplo, no interior, de famílias que "pegam pra criar" uma menina (pobre e preta)... muito triste.

E continuamos nos comentários sobre xs personagens (e sobre nós mesmxs):

  • A série nos dá um grande exemplo de sororidade, tudo que precisamos, inclusive de homens. Deveria haver uma palavra neutra que contemplasse todos os gêneros, nem masculina (fraternidade, a mais conhecida) nem sororidade (o feminino de fraternidade, usado há bem pouco tempo). Empatia já é uma palavra banalizada.
  • E é, também, um exemplo  de resiliência : nossa capacidade (aprendida) de enfrentar as adversidades, manter uma habilidade adaptativa, ser transformadx por elas, recuperar-se ou conseguir superá-las. Significa aprender a transformar a dor em aprendizagem, em crescimento e amadurecimento, nos construindo enquanto pessoas melhores.
  • E sobre  respiração? viram como ela "aprendeu" a respirar? eu também aprendi já adulta a fazer a respiração mais profunda, a diafragmática, que nos acalma... nós "aprendemos" a respirar "travando" a barriga, essa é a respiração superficial, só até o peito. Quando abrimos a "barriga" e deixamos o ar "entrar mais" conseguimos "conversar conosco", tomar contato com as nossas emoções e refletir sobre elas... e olha que eu consegui isso em aulas de canto!
  • Por falar em canto, viram como as músicas são lindas! e como a Alex recorre a elas nos momentos mais libertadores? Exemplo de como a arte permeia nossas vidas. Assim também como quando precisamos desenvolver a crítica necessária para a libertação, ou seja, combater os conceitos que vão nos enfiando "goela abaixo", muitas vezes também através da arte e, particularmente, da música.

Outros depoimentos e comentários importantes:

- No capitulo 8, onde a Alex se encontra com a advogada... me fez lembrar de briga com meu ex por questões econômicas (violência patrimonial) que não dei conta de encarar, de lutar por justiça. Me lembro de um advogado me dizendo "vamos alegar insanidade mental dele"... e assim por diante, o que me deixou horrorizada... e abandonei a possibilidade de lutar por uma separação mais justa. No entanto, penso que passei pra minha filha  a potência para encarar e vencer situações como essas. E ela, a Alex da série,  diz: "quero dizer a ele que não tenho mais medo dele, que ele não vai mais me controlar." Voltando ao Bloquinho de carnaval: QUEM NUNCA?

- Trecho de fala da Alex que uma "conversante" anotou: "Escrevo para ser sincera comigo mesma... é como se eu escrevesse para saber o que vou escrever. Ninguém pode tirar a nossa escrita. Ninguém pode dizer que não temos valor, ou que as nossas palavras não tem valor."

- E ela ( Alex)estimulou as colegas de terapia a escreverem sobre "seu dia mais feliz" ... e essa escrita era sempre reveladora, tanto para quem escrevia como para as outras mulheres. E ela perguntava, depois da leitura, às outras mulheres, quais as imagens que mais se destacaram para cada uma delas... no SBC fazemos exercício semelhante: qual a música da sua vida, qual o filme da sua vida... para refletirmos sobre o significado nas nossas vidas daquele filme, daquela música. Esse exercício foi enormemente revelador para mim, disse uma SBCense convicta. E me trouxe grande auto conhecimento e crescimento pessoal.

- A série também nos fala sobre a autonomia econômica como uma forma de se libertar das "micro violências". É o primeiro passo para colocar a vida nas próprias mãos. Autonomia é muito mais do que o bolso, é a de pensar, sentir e agir... mas passa pelo bolso. 

- Depoimento de SBCense sobre isso: Gente! com a série eu me lembrei de uma "relatório de terapia em grupo" que escrevi lá pelos anos 80 do século passado! Fui procurar o mesmo e trago aqui para lê-lo com vocês. É um relatório sobre a construção da identidade de uma mulher, não a identidade reflexa, aquilo que, na alienação, cumprimos com o que fomos criadas para... mas a difícil construção de uma identidade autônoma, para além do que "fomos criadas para" e que dá sentido às nossas vidas:

(transcrição do "pergaminho" - uma brincadeira, papel já amarelado, dos anos 80):

"Senti uma espécie de vazio, de angustia... todas dando seus depoimentos e eu não tinha nada a dizer.

Comecei a pensar a respeito da minha vida e me veio semelhança de sentimentos com a leitura do Ho Chi Minh: ausência de valores, algo assim como uma esterilidade de vida... perseverança, tenacidade, mas em que? quais objetivos? o que eu quero da vida? passividade, expectativa diante da vida (do meu pai); lutar, lutar, luta estéril, sem saber pra que, obsessiva, ou fingir que está lutando, sem atacar o que se precisa (da minha mãe). Sinto assim como se uma ausência de referência na minha vida, ou numa época dela... que pode ter repercutido, em muitos aspectos, nessa angustia. 

Uma situação que me vem a memoria de falta de referência foi o acontecimento na minha vida, na pré adolescência, de mudança do interior para a capital. Lá eu era diferente para mais, "esse povo dessa cidade é pequeno pra nós", dizia minha mãe... mas sempre diferente, não podia me juntar à gentinha do interior. Mas, na verdade, me sentia, inúmeras vezes, MENOS! principalmente, menos livre...

E quando comecei a querer, e agir, no sentido de conquistar meu espaço, minha liberdade de SER, mudamos para a capital... e foi um corte pra mim... Então, aqui eu era MESMO super diferente! Estava num lugar que não era o meu... e não sabia qual era o meu... de menina "capiau", da roça fui para uma escola de meninas de classe alta. Era pobre (sem ser),  e vivia no meio de gente rica, adotando seus valores e seu modo de vida na aparência (sem também ser). Essa época coincide com a época do regime militar, com a repressão, quando a alienação era uma defesa, uma forma de vida.

E eu não conseguia  "apropriar da minha pobreza" para me construir (meus valores, meus desejos, o que eu queria para a vida)... e nem era como as pessoas com quem eu convivia, me apropriando de valores dessas pessoas e ficando no "parecer", e, cada vez mais, reafirmando minha condição de alienada. Se naquela época tivéssemos acesso ao conhecimento sobre "consciência de classe" talvez minha vida tivesse sido diferente.

Por esforço pessoal mudei minha vida naquela época. Mudei dessa "escola de meninas ricas" para uma escola pública, para fazer o que corresponde agora ao ensino médio. Tinha 15 para 16 anos. Me senti mais "eu mesma", gostava de John Lennon, Bertrand Russel... porém, essa experiência não foi o suficiente para me tirar da alienação. Continuava, ainda "sendo" coisas externas a mim, adotando valores e estilos de vida de outras pessoas.

Em termos de origem, teria eu algum valor a adotar? Essa ausência de valores não estaria, exatamente, na negação da origem, da minha história? E o sentimento de impessoalidade nas tentativas vãs de adotar valores de fachada?

À alienação (política, social, econômica) se soma a alienação da condição feminina e essa também toma um peso muito grande. Para que a mulher é educada? para que a mulher vive?

Me vem à lembrança o pensamento mágico mítico de que se adotando ou possuindo a "coisa" se adquire as características dela, tal como o primitivo vestia a pele do leão achando que teria as "qualidades" do leão. Na minha vida me vejo muito na situação do primitivo.

Uma primeira (ou segunda) tentativa para sair desse circulo vicioso foi quando passei no vestibular. Meu pai me disse que eu não era "gente" de estudar em universidade particular. Então comecei a trabalhar, a principio para bancar minha faculdade. Mas o trabalho me proporcionou uma noção da minha realidade e do meu "tamanho". No entanto, estava impregnada do pensamento mágico mítico. É a mesma coisa do ideal romântico, da nossa identidade ser "definida" a partir de um homem, de uma relação afetiva. 

Me casei pela primeira vez com uma pessoa pobre e intelectual, "ele é pobre mas é trabalhador", afirmava meu pai. Vivi um mundo atraente naquela época: festas, bebidas, pessoas interessantes, mas não meus amigos. Não existia a dependência econômica, mas a de valores e ideais... e eu estava querendo ser algo "por trás" dele, como era a frase típica naquela época "por trás de um grande homem existe uma grande mulher".  Percebem a falta de identidade autônoma, construída? somente a identidade reflexa, aquilo que somos "educadas para". Percebem também a luta pela construção da identidade autônoma? Porque identidade é, no meu entendimento, a construção, para a vida toda, da resposta a pergunta "quem sou eu".

Esse casamento foi facilmente desfeito. Foi realmente no segundo casamento que se consolida a minha "condição" de mulher. Casei com um cara de classe média alta, e a minha "função social" era a de "ajudá-lo a construir uma vida!". Mas, novamente, uma vida que não era a minha. Então regredi... Aos poucos, fui desempenhando plenamente o papel de esposa e mãe. Fui tirando o trabalho da minha vida e, com isso, a possibilidade de tomar consciência. Melhor ainda, para me tirar toda possibilidade de consciência, fui "fingindo" que trabalhava. Mais tarde, em terapia de grupo, ríamos e brincávamos sobre essa situação de trabalho: "a profissional para o cigarro", "eu pago a gasolina do meu carro" (quem comprou o caro?).

Enfim, descobri que é através do trabalho que posso encontrar a condição humana, que posso construir minha vida, minha identidade, quem sou eu, quem quero ser, meus valores e minhas relações. E também através do trabalho e da minha ação no mundo é que vou tomando consciência de mim mesma e do que eu quero ser num sentido mais amplo, meus objetivos e ideais em relação ao mundo em que vivo. "

Nos emocionamos com este depoimento. É forte e transparente seu relato sobre um processo de tomada de consciência da identidade de gênero, assim como de identidade de classe. Conversamos mais sobre esse processo, sobre o que ela disse de identidade reflexa, aquilo que internalizamos, nossos papéis, e a construção da identidade autônoma, a construção do que "queremos ser". Ou seja, todxs nós, enquanto "reprodutores" e "transformadores" de nós mesmxs e do mundo.

"Eu, que sou mais nova, vejo que o depoimento acima é atual. Vejo mulheres que não se encontram mais na dependência econômica que ocasiona toda série de dependências e alienações, no entanto se mostram, ainda, impregnadas de valores e ideais românticos que nos levam ao conceito impregnado de amor que vivenciamos: "pertencer" ao outro e o outro me "pertencer", satisfazer às necessidades do outro e vice versa... casal 20. É preciso ter muita consciência, "se pertencer" muito, para reconhecer o outro nos limites do humano, e saber o que eu quero com ele e onde e como vai (ou pode) ser construído o "nós". Fora isso, fatalmente, caímos nas consequências de se "pertencer ao outro e o outro me pertencer"... e que veem a ser os esquemas de dominação recíproca... que aprendemos a chamar de AMOR.", o "somos um"... Super atual a música "triste, louca ou má", da banda Francisco, el hombre:


"Que um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar"... um trecho da música. Que foi escrita inspirada em "estigma" que se dava a mulheres na década de 90, quando elas não queriam se submeter aos padrões (esposa e mãe): é uma "mulher triste, louca ou má", segundo pesquisa de SBCense presente à conversa. Não seria isso uma violência sutil do tamanho da patada do elefante? (ou da manada... e prestem atenção ao final: "Ela desatinou, desatou nós, vai viver só..."

E outra "conversante", nesse ótimo papo intergeracional, relatou uma cena de "começo" de tomada de consciência de microviolência, que a fez começar a criar coragem para elaborar uma separação, que ocorreu uns 5 anos depois:

"Era domingo, eu estava ainda na cama, quando ouvi uma fala do meu "agora ex" com meu filho, então com 6 anos. Eles estavam na cozinha, e o pai, indo preparar o café da manhã, não encontrando queijo na geladeira, disse: Ela não presta pra nada. Eu o chamei e perguntei: você ouviu o que disse? e ele negou... e nega até hoje!!! mas a "ferida" foi aberta... e, naquela hora, eu "decidi" ir me "preparando" para a separação. Como diz nossa grande mineiro, Guimarães Rosa: "A vida quer da gente CORAGEM".

                                                João Guimarães Rosa (1908-1967)

E hoje ela se orgulha de ter superado, e foi ela que contribuiu para a criação de um dos slogans do SBC: "tem gente que não presta pra nada... são as melhores pessoas" (porque, segundo filosofia SBCense, prestar para alguma coisa pode ser estar submetidx aos padrões que nos escravizam. O riso é revolucionário, libertador.

Lembramos (e apresentamos às mais novas e aos mais novos) a música do Ivan Lins e Vitor Martins que era uma espécie de "hino" nos anos 80, das mulheres libertárias, as que lutavam contra, não só a violência nas relações intimas e familiares, a violência doméstica, mas contra as violências "sutis" do tamanho de uma patada de elefante (ou seria do tamanho de uma manada?), segundo grande SBCense, que se manifestam em todos os níveis de relação, do íntimo ao público, passando pelas relações de trabalho, pela política e pelas relações mais amplas, de cidadania. Grande interpretação de Simone.

"Começar de novo E contar comigo Vai valer a pena Ter amanhecido
Ter me rebelado Ter me debatido Ter me machucado Ter sobrevivido
Ter virado a mesa Ter me conhecido
Ter virado o barco Ter me socorrido
Começar de novo E contar comigo Vai valer a pena Ter amanhecido
Sem as tuas garras Sempre tão seguras Sem o teu fantasma Sem tua moldura
Sem tuas escoras Sem o teu domínio Sem tuas esporas Sem o teu fascínio
Começar de novo E contar comigo Vai valer a pena Ter amanhecido
Sem as tuas garras Sempre tão seguras Sem o teu fantasma Sem tua moldura
Sem tuas escoras Sem o teu domínio Sem tuas esporas Sem o teu fascínio
Começar de novo E contar comigo Vai valer a pena Já ter te esquecido."

                                                     A dança - Henri Matisse

E terminamos com a sororidade que precisamos... nos abraçando e nos acolhendo.

Até a próxima. 

Abraços carinhosos.

SantuzaTU


quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Na Varanda: sobre alienação, ideologia... e política...

 




Na verdade somente íamos até a varanda tomar um ar, uma cerva. Vejam, a varanda está ali atrás mas, para sermos fiéis à concepção do projeto, ficou NA VARANDA, uma "licença poética".

Começamos retomando o tema DEMOCRACIA, com comentários que sempre acrescentam, sobre nosso post, de pessoas que não estavam presentes ao encontro e leram o mesmo:

. TU, naquele parágrafo que vc fala sobre o filme "Democracia em Vertigem"...


Este mesmo... Entendo porque você nem citou o nome do mesmo, mas faltou caracterizar mais este "governo de extrema-direita" , que é o que estamos vivendo desde o "GOLPE" que tirou a Dilma: a "extrema-direita", que é constituída pelo grande capital, ou seja, os banqueiros, as grande fortunas (aqui estão os "pastores"), o agronegócio (principalmente o segmento soja), e o imperialismo americano ... estes desenham um "projeto de governo" a favor do CAPITAL (os ricos cada vez mais ricos), e contra o TRABALHO (este pessoal, que somos nós, trabalhadores e "empreendedores", cada vez mais pobres, mais exploradxs, retirados direitos já conquistados)... e isso tudo às custas da ALIENAÇÃO dos mais explorados,  necessária à implementação desse sistema chamado CAPITALISMO. E o que, na economia, se chama agora NEOLIBERALISMO, que, simplificando, trata-se da defesa da absoluta liberdade do mercado, ou seja,  uma intervenção mínima do Estado sobre a economia. 

Daí começamos nossa conversa: Na prática, estamos sentindo "na carne" os efeitos deste sistema, por exemplo, com a privatização da saúde, o interesse do lucro é maior do que a defesa da vida. Então, as mortes devem ser "escondidas" para a "vida" da economia, que vem a ser a maior riqueza daquelas pessoas já riquíssimas. 

E aí sentimos necessidade de entendermos mais o significado de ALIENAÇÃO, e de IDEOLOGIA.

QUANDO NÃO NOS RECONHECEMOS COMO "PRODUTORES" DAS COISAS, DAS OBRAS, DO MUNDO E COMO SUJEITOS DA HISTÓRIA, E TOMAMOS AS OBRAS E A HISTÓRIA COMO "FORA" DE NÓS, COMO FORÇAS ESTRANHAS, EXTERIORES, ALHEIAS A NÓS MESMXS, E QUE NOS DONIMAM E PERSEGUEM, TEMOS O QUE HEGEL DIZIA COMO ALIENAÇÃO. "É a impossibilidade do sujeito histórico identificar-se com sua obra, tomando-o como um poder separado dele, ameaçador e estranho".

                                                Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831)

Hegel também dizia que o Estado sintetiza, numa realidade coletiva, a totalidade dos interesses individuais, familiares, sociais, privados e públicos, Somente nele o cidadão se torna verdadeiramente real e somente nele se define a existência social e moral dos homens. O Estado é uma comunidade. Mas sua diferença de outras comunidades (família, por exemplo; um sindicato; uma empresa), é que ´Estado não possui (ou não deveria possuir) nenhum interesse particular, mas apenas os interesses comuns e gerais de todos. Mas quando o Estado se coloca (ou é eleito) a serviço do capital, da elite, dos ricos, acontece o que estamos vivendo agora, o genocídio... que, melhor dizendo, vem a ser a NECROPOLÍTICA : a "decisão" e a "prática" (através das politicas implementadas) sobre "quem" deve morrer e "quem" deve viver. 

E, para que aconteça esse cenário, é necessária a ALIENAÇÃO do sujeito, o alheamento, distanciamento de si próprio, da sua realidade, dos seus direitos... e por aí vai...

E, por causa desse "distanciamento de si próprio" que "permitimos" (ou nos submetemos) a IDEOLOGIAS completamente diferentes dos nossos interesses, completamente distantes até do próprio sentido da vida.

Ai chegamos à compreensão de IDEOLOGIA: dentre as várias definições existentes, chegamos a esta:  conjunto de ideias, valores, princípios, conceitos, que orientam nossa maneira de pensar, sentir e agir.

                                            Marilena de Souza Chauí (1941-...)

E, muitas vezes, a simplicidade nos oferece as informações que precisamos para compreender o mundo, refletir e aprofundar (e nos tornar sujeitos, atuantes). Livros de adolescência de SBCense famosa foram apresentados na nossa varanda... da Coleção Primeiros Passos, um deles, já velhinho e remendado, O QUE É IDEOLOGIA, cuja autora é essa grande filósofa brasileira, Marilena Chauí. Lemos alguns trechos desse livro, na edição de 1984, atualíssima:

"O que torna a ideologia possível, isto é, a suposição de que as ideias existem em si e por si mesmas desde toda a eternidade, é a separação entre trabalho material e trabalho intelectual, ou seja, a separação entre trabalhadores e pensadores".

"O que torna objetivamente possível a ideologia é o fenômeno da alienação, isto é, o fato de que, no plano da experiência vivida e imediata, as condições reais da experiência vivida e imediata, as condições reais de existência social dos homens não lhes apareçam como produzidas por eles, mas, ao contrário, eles se percebem produzidos por tais condições e atribuem a origem da vida social a forças ignoradas, alheias às suas, superiores e independentes (deuses, natureza, razão, estado, destino, etc), de sorte que as ideias quotidianas dos homens representam a realidade de modo invertido e são conservadas nessa inversão, vindo a constituir os pilares para a construção da ideologia. Portanto, enquanto não houver um conhecimento da história real, enquanto a teoria não mostrar o significado da prática imediata dos homens, enquanto a experiência comum de vida for mantida sem crítica e sem pensamento, a ideologia se manterá".

"O que torna possível a ideologia é a luta de classes, a dominação de uma classe sobre as outras. ... a dominação real é justamente aquilo que a ideologia tem por finalidade ocultar".

Então: a Marilena está dizendo do conceito de ideologia que é resultado da luta de classes, e que tem por função esconder a existência dessa luta. Portanto, o poder (ou a eficácia) da ideologia aumentam quanto maior for sua capacidade para ocultar a origem da divisão social em classes e a luta de classes. A classe que explora economicamente só poderá manter seus privilégios se dominar politicamente. E os instrumentos para essa dominação são o ESTADO e a IDEOLOGIA. E o papel do DIREITO (as leis) é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. Ai, a função da IDEOLOGIA consiste em impedir a consciência (e a indignação, a revolta), fazendo o LEGAL aparecer para nós como legítimo, como justo, como bom E VÁLIDO PARA TODOS.

Ai ficou transparente, para nós, que A IDEOLOGIA É A TRANSFORMAÇÃO NAS IDEIAS DA CLASSE DOMINANTE EM IDEIAS DOMINANTES PARA A SOCIEDADE COMO UM TODO... que acontece um processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam ideias de todas as classes sociais, se tornam ideias dominantes. 

Ela, a Marilena Chauí, está falando da ideologia burguesa, aquela classe social (de comerciantes, que faziam os "burgos", pequenas cidades comerciais, desde antes do século XII, idade média...  depois, Revolução Francesa, século XVIII, burguesia e camponeses lutando contra o poder absoluto - a monarquia... depois, Revolução Industrial... CAPITALISMO... AÍ: BURGUESIA (classe detentora do capital) e PROLETARIADO (classe trabalhadora). 

A CLASSE DOMINANTE é a que fica cada vez mais rica, é a que "protege" seu dinheiro nos Paraísos Fiscais; "compra" os políticos (os que se vendem, tem muitos... mas tem também os que tem noção do "bem estar social" e de politicas públicas que contribuem para esse bem estar); ou são, eles próprios, que estão lá, nas esferas políticas, "defendendo" os seus direitos. Essa é a nossa burguesia. 

E a CLASSE TRABALHADORA, somos nós!!! Nós, que vendemos nossa hora de trabalho, o trabalhador assalariado, o de carteira assinada, cada vez perdendo mais seus direitos; nós, os funcionários públicos, que fizemos concurso e prestamos serviço de qualidade (professores, médicos, entre outros e outras), não o "nomeado" e que "mama" e repassa grande parte do seu salário para o "político" que o nomeou; nós, os "empreendedores" , o trabalhador autônomo, que rala no UBER, na bicicleta entregando coisas,  isso não porque tenha sido uma escolha e sim pela falta do trabalho com carteira assinada; as pessoas que tem um pequeno comércio, uma pequena fábrica de sorvete; os artistas! todas essas pessoas cada vez mais exploradas!!! cada vez mais consumida pelo trabalho sem nenhum sentido, apenas o de ganhar dinheiro... para consumir, também, coisas sem sentido para a vida.

E a quantidade de gente que só trabalha para comer? para se manter vivo? O mundo não produz riqueza necessária e suficiente para ninguém, absolutamente ninguém, passar fome? Para todas as pessoas comerem, pelo menos, 3 refeições por dia? 


E são essas mesmas pessoas que, na ALIENAÇÃO, na falta do "Conhecimento Libertador", na falta de crítica, se deixam ser "consumidas" pela ideologia do dominador, ou seja, por uma maneira, de pensar, sentir a agir que não tem absolutamente NADA a ver com VIDA, com BEM ESTAR, com SER SUJEITO, com SE PENSAR NO MUNDO,  ter um trabalho gratificante, que dê sentido à sua vida, construir relações intimas, de amizade, de trabalho, de cidadania, fora da "caixa pronta" que nos "enfiam goela abaixo" como se fosse o modelo para sermos felizes. Portanto, contra a alienação, a formação da CONSCIÊNCIA CRÍTICA !

E,  nessa hora da nossa conversa, uma SBCense, muito emocionada, fez um depoimento: hoje a tarde eu estava com meu neto de 10 anos, ele não teria aula, então fomos ver um filme. E encontramos este:



E o filme suscitou uma hora de conversa: primeiro a visão dele do mundo em que vivemos, a partir do filme: - Vó, que doido! Quando a menina foi procurar o príncipe, ele tinha crescido e tinha um trabalho "de merda", e todas as pessoas daquele planeta onde ele vivia eram cinzas e tristes e não conversavam! E o príncipe tinha esquecido do aviador! Mas a menina conseguiu fazer ele lembrar! e conseguiram derrotar aquele mundo insonso! foi muito legal!!! - Pois é querido! e quanto você acha que aquele mundo parece com o nosso? - Parece muito, vó! uns 8... - E você acha que pessoas da sua idade, da idade da menina, vão ser capazes de transformar nosso mundo para mais bonito, onde as pessoas possam sonhar e construir, como o aviador, um mundo onde exista um trabalho (e uma vida) mais bacana pra vocês? - Acho que sim, vó! eu me vejo construindo um mundo onde a gente trabalha com o que gosta e onde a gente é mais alegre! onde o dinheiro seja pra isso, né? não para gastar a toa... - Tomara, meu bem! Vó, agora, está cumprindo, de alguma forma, a sua missão, quando ela consegue conversar isso com você. E fico muito feliz quando conversamos e o seu olho brilha... Acho que não vai ser para a minha existência, mas quando vejo seu olho brilhando eu fico muito feliz de fazer parte da construção desse mundo mais bonito, viu! E eles se abraçaram... 

E todxs nós emocionamos com o depoimento desta SBCense... E concluímos: ISSO É POLITICA!!!


Terminamos lembrado a música IDEOLOGIA, Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, dele e do Frejat, no álbum do mesmo nome de 1987, super atual.


Abraços carinhosos

SantuzaTU



Até nosso próximo encontro... talvez na calçada...