quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Conversas SBCenses 2: Quando estou amando, O QUÊ estou amando?

E aí eu contei o caso daquela minha amiga (de 35 anos) para uma outra (de 25 anos) com o objetivo de fazê-la entender a relação do dinheiro com o exercício do poder de dominação, que é o que nós sofremos (e também reproduzimos).

Ela é americana... conversamos muito sobre nós mesmas... e rimos muito também... da gente mesma, quando nos vemos nos colocando completamente na posição de objeto, procurando sermos amadas, sermos objeto do amor do outro... o que precisamos fazer para ser “mais amada”, “mais objeto”... meu Deus... minha Deusa!!! Como esse "desejo" é enraizado, cravado a ferro e fogo na nossa alma !!!

E ela me conta o caso do fim de semana com seu mais novo affair: estão se conhecendo... e ele a convidou para uma viagem com os amigos (dele)... e ela aceitou... foi muito bem recebida entre xs amigxs (casais)... e tiveram poucos momentos a sós (acho que dormiram juntos mas não transaram, ela está “segurando”... creiam... ainda existe isso da mulher se fingir de difícil pelo sexo, porque, segundo ela, eles abandonam quem “dá de primeira”). Mas o que ela me conta, muito sentida, é que, ao se separarem, ele foi muito frio, nem carregou sua mala... (então: ela fica super atenta aos mínimos detalhes de “rejeição” e, ao mesmo tempo,  alheia ao que ela sente ou deseja)

E foi daí que continuamos a conversar, eu fui perguntando de uma forma maiêutica, e também para o objetivo do meu “estudo antropológico”, minha curiosidade sobre as mulheres de outras gerações: estamos caminhando para sermos mais sujeitxs, nossa luta do século passado valeu a pena?

E, nesse processo maiêutico, ela me revela que ele pagou toda a conta! Aí acontece o diálogo:

- Mas por que ele pagou toda a conta?

- Porque foi ele que convidou!

- Você o convidaria para um jantar e pagaria toda a conta?

- Claro que não! Isso do homem pagar a conta é “natural” aqui nos EUA!

- E você não acha que isso já permite que se inicie uma relação assimétrica e abra espaço para a dominação, para o uso do “poder sobre”, que já conversamos?

- Não! Isso aconteceria se já tivéssemos uma relação mais duradoura... isso acontece entre marido e mulher... agora, no princípio da relação, é a coisa mais natural do mundo o fato dele bancar! Inúmeras mulheres que conheço, inclusive minha irmã, que tem relação estável há uns dois anos, por exemplo... são mulheres super autônomas, tem seu dinheiro, não dependem do cara, mas é ele que paga as contas! Não vejo relação nenhuma entre o cara pagar a conta e essa minha dificuldade em ser sujeito que ama, que escolhe, ou seja,  o fato de estar sempre me posicionando enquanto objeto do amor do outro! Definitivamente, não é este o caso!

E a conversa acabou ai... nesse dia.

E foi só uma semana depois que conversamos de novo... e contei pra ela o caso da outra amiga, a de 35 anos do post anterior.

E ela "começou" a entender... é assim... a gente entende um pouco, age um pouco, reflete sobre nossas ações... entende mais um pouco... e assim vai... o movimento de ação... compreensão... ação... etc... e a mudança é histórica. 

Então a nossa conversa, nesse dia, resgatou um pouco o seu entendimento do distanciamento que existia, para ela,  entre o homem “prover” e  usar o poder econômico para dominar... e tudo “por amor”...




Citei Engels, ‘A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” e terminamos essa segunda conversa ouvindo a banda (brasileira)  Francisco El hombre, “triste, louca ou má”, super libertadora...  e eu contei pra ela que essa música é inspirada na tradução da expressão em  inglês   “sad, mad or bad”,  usada de forma depreciativa para as mulheres que escolheram ficar solteiras, se libertar dos padrões, da identidade definida a partir da figura masculina, se permitir ser:  “Um homem não me define”.




E tem também o livro da Lisa Appignanesi, “Tristes, loucas e más”, que narra a evolução do diagnóstico e do tratamento de doenças mentais em mulheres, desde inicio do século XIX,  quando distúrbios mentais eram muitas vezes associados a possessões... até os dias de hoje. 

A autora  não enxerga as mulheres como inerentemente tristes, loucas ou más, e sim questiona por que muitas desordens mentais – histeria, anorexia, personalidades múltiplas, depressão – são diagnosticadas com mais frequência entre mulheres  do que entre  os homens. E fala sobre grandes mulheres na história que sucumbiram emocionalmente em função desse “destino de toda mulher”: Marilyn Monroe, Virginia Woolf... entre outras




E lendo este livro me lembro do filme “As horas”, que começa com o suicídio de Virginia Wolf e conta a história de três mulheres até a atualidade. A segunda é uma mulher de meados do século passado, completamente dentro dos padrões, casada com um militar; tinha um filho pequeno, e estava lendo um livro da primeira, a Virginia. O olhar da artista, Julianne Moore, passa o sentimento de vazio, de falta de sentido de vida. E a terceira, uma mulher contemporânea, se encontra com a segunda, e acontece o diálogo revelador: por quê você fez isso, abandonar sua família e fazer seu filho sofrer tanto? resposta da segunda: eu tinha duas escolhas, a vida ou a morte... escolhi a vida, mesmo sabendo que minha escolha causaria sofrimento a pessoas que eu amava tanto.

Pois é, fazemos nossas escolhas... e a liberdade de escolher é consequente e responsável. E se, por medo das consequências, abrimos mão de escolher a vida, colocamos essa vida nas mãos dos outros e não nas nossas próprias mãos.

Muito a refletir... a agir...

Abraços carinhosos...

Santuza TU






segunda-feira, 23 de novembro de 2020

QUANDO ESTOU AMANDO, 'O QUÊ' ESTOU AMANDO?

 

Minha amiga, uma mulher em torno de 35 anos, mãe de duas filhas mulheres, uma de 18 e outra de 2 anos, me conta um pouco da sua história: ela se coloca como uma pessoa fora dos padrões, se sente como uma pessoa transgressora ... com 18 anos ficou grávida, veio do interior para a capital com o pai da criança, tiveram uma filha e se separaram pouco tempo depois. Ajudada pela família, e lutando muito, criou a filha. 

Teve outros breves amores. E, há mais ou menos três anos, de uma relação tórrida com um homem bem abastado financeiramente, ficou grávida de novo. Com uns três meses de gravidez descobriu traições e terminou com a pessoa. segundo ela, ele é um bom pai. 

Ainda na gravidez conheceu outra pessoa, que praticamente assumiu a gravidez, e ficou sendo um segundo pai da criança. Mas esta relação também terminou por causa de traições. Enfim, no princípio da pandemia, ela conhece uma outra pessoa... amor à primeira vista... tiveram COVID juntos, continuaram juntos, ele a incluiu no seu meio e na sua família. Muito rico, o sujeito (detalhe... rsrs).

E a minha amiga, agora, cerca de nove ou dez meses depois, está sofrendo muito. Por quê? novamente descobre traição, ele tem uma amante de 19 anos, mais nova do que sua filha. Essa filha (a filha dele...)faz contato com ela e dá o conselho de se afastar do mesmo porque, segundo ela, ele é um canalha. Já aconteceu até violência física com a mãe. Ela mesma (a filha) já cortou relações com o sujeito. Relata ainda que ele anda com muito dinheiro vivo no carro, na casa; mostra, ou melhor, ostenta sempre o tanto que  tem.

Ela, além de relatar que, nas brigas entre os dois, fica histérica e bate nele, relata também aquelas violências mais “sutis”, muitas vezes difíceis de serem identificadas como violências.

Dos cinco tipos de violências apresentados na Lei Maria da Penha:

. física: bater... fácil de ser identificada;

.sexual: te forçar a ter relações sexuais, sem o seu consentimento... também mais fácil de ser identificada (às vezes não... ele insiste tanto que você não consegue dizer não... e pode não perceber como violência... mas é...);

. psicológica: mais difícil de ser identificada ... muitas vezes vem disfarçada de amor|proteção, por exemplo “vou fazer isso (qualquer coisa) pra você porque você não é capaz”, “coisinhas” que vão diminuindo nossa autoestima;

. moral: também mais difícil de identificarmos ... e também vai diminuindo nossa autoestima... falar mal de você pra seus filhos, pra sua família... essas coisas;

. patrimonial: muitas vezes passa despercebida... controlar seu dinheiro, seu celular, esconder ou te proibir de usar uma roupa, ou rasgá-la, destruir uma coisa sua... coisas desse tipo, inúmeras vezes “por amor”.

As três últimas são as mais “sutis”, concordam? sutis do tamanho de uma patada de elefante... mas, por questões culturais, costumamos não identificar, não vemos, confundimos com amor... e por aí vai...

Voltando à minha amiga: ela percebe que já está vivenciando uma relação abusiva... mas não consegue sair!!! E a minha perplexidade: por quê??? e a minha pergunta, reveladora:

. quando a gente pensa|sente|percebe que está amando... precisamos muito nos perguntar imediatamente O QUÊ estamos amando? para além da pessoa que estamos amando!

Esta pergunta, feita de uma maneira completamente sincera e tentando nos  desvencilhar dos mecanismos de auto engano a que estamos sujeitas, será completamente reveladora de nós mesmas e das possíveis armadilhas a que estamos sujeitas. E, por consequência, abrirá possibilidades de caminhar para sermos mais livres... um pouco a cada dia.

E eu tive a coragem (e o cuidado)  de fazer essa pergunta à minha amiga. E fiquei muito feliz dela ter conseguido, de uma maneira maiêutica (extrair do outrx o que o outrx já sabe e não sabe que sabe, maiêutica significa "parto") perceber que ela estava “amando” o dinheiro, o status, que vinham junto com a pessoa. E aí pudemos continuar nossa conversa...

Olha só, liberdade significa autonomia de pensar, de sentir, de agir... mas passa pelo bolso... sem essa do bolso fechamos olhos, ouvidos, boca, igual aquele macaquinho, lembram? e esquecemos de nós mesmas.



E ela descobriu sua prisão aos valores de uma sociedade consumista... status, poder... e  somos educadas (ou deseducadas) para não nos sentirmos capazes e, por consequência, obtermos “isso” através do outro, do homem... e o “isso” também deve ser questionado... mas muitas de nós somos prisioneiras ... e, também por consequência, por não nos sentirmos capazes nem de, por trabalho pessoal conseguirmos status e poder econômico... e nem, por trabalho também pessoal, conseguirmos questionar: “é isso mesmo que vai dar sentido à minha vida?”, “eu dou conta de diminuir meu padrão de vida em função da liberdade de ser?”... perguntas dirigidas a mulheres de classe média... outras perguntas são mais adequadas a mulheres de outras classes sociais: a mulheres que não trabalham, não têm seu sustento... e outras mais.



Enfim, vivemos numa sociedade capitalista... na reificação, Marx já nos ensinou: o dinheiro ganha vida e nos transforma em objetos. E como nós, mulheres, somos suscetíveis! Precisamos, urgentemente, rever nossos valores... dar conta da própria vida (inclusive, ou pra começar, no econômico) nos trará autonomia de pensar, sentir e agir... enfim, colocar a vida nas próprias mãos, mesmo significando perdas... claro! Perdas no bolso... o ganho será maior...

E, claro, mais uma vez, estou dizendo isso para mulheres de classe média...



Ainda ... aprendamos com mulheres negras que, na nossa história, já trabalhavam e tinham seu sustento há muito tempo! Isso não deve passar por suas angustias... essas são outras... as quais também devemos estar sororidariamente perguntando.

E caminhando...



Enfim... pensem... não como eu... mas pensem...

Abraços sororizantes... e fraternais...

Santuza TU



sábado, 21 de novembro de 2020

ESTAMOS CANSADAS...





 No dia 20.10.20 a cronista Tati Bernardi publicou na Folha a crônica “Eu sou bonita, mas estou cansada” e vários grupos de mulheres a que eu pertenço multiplicaram essa crônica como reflexão, alerta, denúncia...  sobre nós, mulheres.

A Tati tem em torno de 40 anos, idade do meu filho mais velho, tenho um casal de filhos, um homem e uma mulher, e um casal de netos. O sentimento que me invadiu quando li a sua crônica foi de tristeza por nós. Tristeza pela constatação: se olhamos para um ponto de vista, da minha geração para a geração de mulheres de 40, nossa... quanto andamos... sim, verdade. Mas, se olhamos por outro ponto de vista, quanto ainda temos que andar... e, penso eu, uma das caminhadas possíveis é a do (ou para) o nosso interior... até para nos fortalecermos para a batalha que temos que fazer, diariamente, em relação ao exterior, ou seja, em relação a este mundo tão machista e misógino, e desigual... que ainda vivemos.

Eu sou uma mulher da segunda metade do século passado... foi nesses cinquenta anos que eu reproduzi... e superei... minha... nossa... condição de mulher culturalmente definida: nascíamos para sermos “belas, recatadas e do lar”... e não corresponder a esses papéis implicava em sérios riscos a nossa integridade psíquica, física... etc. No nosso tempo a grande frase era “Por trás de um grande homem existe uma grande mulher”... esse era nosso “destino” e AI da mulher que se rebelasse... pois bem, fiz, com muito orgulho, parte das mulheres que se rebelaram... e, nessa época, anos 70 e 80, fizemos camisetas com os dizeres: Por trás de um grande homem existe uma mulher... (na frente) CANSADA (nas costas da camiseta). Foi libertadora essa frase!!! E quando eu digo “libertadora” quero dizer que muitas de nós trabalhamos para nos libertarmos do CANSADA... isso quer dizer, nos libertar interiormente, para sair pro mundo e lutarmos pela libertação de todas nós. Porque, claro, eu estou falando de mulheres brancas e de classe média. Mas, com essa consciência política foi que saímos do próprio ”umbigo” e evoluímos para feminismos mais inclusivos, que se identificam em algumas lutas e, ao mesmo tempo, diferenciadas nessas mesmas lutas... e chegamos aos feminismos emancipatórios, aos feminismos decoloniais, que incorporam lutas que nossas cabeças e “espíritos” eurocêntricos colonizados não percebiam nessa época.

E, por isso, agora, fazendo um exercício de humildade e, ao mesmo tempo, de arrogância (se arrogar ao direito de...) quero sugerir a todas nós que façamos outras camisetas que não essa do slogan da Tati: “Eu sou bonita, mas estou cansada”.

Faço sugestões:

“PERMITA O CAOS”

“DIGA NÃO”

“DIGA SIM PRA SI MESMA”

“MELHOR SER FELIZ DO QUE SER PERFEITA”

Quero, ainda, justificar estes slogans como mais libertadores do que o “...estou cansada”, e de uma maneira muito cuidadosa conosco: sem pensar que somos “culpadas” por este estado de coisas, porém, pensando que somos, ao mesmo tempo, objetos (reprodutoras) e sujeitos (transformadoras), da cultura e da história... e, ainda, que a transformação pode ocorrer do micro para o macro, ou seja, de nós mesmas e do mundo... quero propor que permitamos o caos... Que digamos NÃO dizendo SIM pra nós mesmas, pros nosso desejos... e por aí vai...

Pois este estado (de cansaço...)  vem, na minha maneira de interpretar a mim mesma e ao mundo, de uma característica terrivelmente enraizada, cravada a ferro e fogo na nossa “alma”... a onipotência, o perfeccionismo. Vejo isso em mim mesma e tento arduamente combater, e vejo isso nas mulheres das gerações após a minha... e como essa característica (culturalmente transmitida de mulheres para mulheres) nos escraviza!!!

Permitir o caos significa abrir mão do nosso território “do lar”, pois saímos para o mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, não conseguimos abrir mão do “poder” de fazer tudo “do nosso jeito!”, porque foi esse que aprendemos como “O jeito certo”, “O melhor”, “O perfeito”.

Vejam o filme: Como nossos pais, de 2017, da diretora Laís Bodanzky.

Sinopse: Rosa é uma mulher que almeja a perfeição como profissional, mãe, filha, esposa e amante. Filha de intelectuais e mãe de duas meninas pré-adolescentes, ela se vê pressionada pelas duas gerações que exigem que ela seja  engajada, moderna e onipresente.

E, ainda,  completando... linda (nos padrões, claro...)!!! Aff

E, para concluir, uma “oração da serenidade” que aprendi com uma mulher muito sábia: Ver, ver tudo, não ter medo de ver... deixar passar muitas coisas... mas fazer um pouco a cada dia... na direção que você deseja pra você e pro mundo.

Pronto... falei…

Santuza TU