domingo, 28 de abril de 2024

Sobre borboletas, outros bichos, cores... e nós

 


Borboletas amam flores

Flores amam pipas

Pipas amam pessoas

E oferecem suas linhas para

as pessoas segurarem

E as pessoas controlam as pipas

Borboletas amam mais livremente...

 


Borboletas são coloridas

Borboletas amam passarinhos

Passarinhos também são coloridos

E também são livres

E amam a liberdade

E os bons encontros

Coloridos

 


Passarinhos são de toda espécie

Borboletas são de todas as cores

Amam a liberdade

E crescem uns com os outros

Assim é a vida

Colorida

 


Cores de Almodovar

Cores de Frida Kahlo

Cores de Adriana

Cores de Renato Russo

Cores

 

Sejamos

Apenas sejamos

É tão fácil !

É tão difícil !

Aprender a ser livre

Aprender a viver

 


Viver

Amar

Ser livre

Aprendizagem constante

 

Só os seres humanos, entre todos, se odeiam, se escravizam, se matam...

                                                                                    Santuza TU

domingo, 21 de abril de 2024

Uma intertextualidade... com Drummond:


Carlos, as minhas pedras não estavam no meio do caminho,

Estavam no meu sapato!

Deixei todas as pedras no rio...

Junto com meus preconceitos.


                                      O rio as levou...


O rio guarda pedras de todos os tamanhos, cores, texturas

O rio é bonito... é bonito...

                                                        Nós, humanos, também...

                                                                                                                Santuza TU


domingo, 14 de abril de 2024

Lembranças, histórias, afetos...

 Não existe possibilidade de, em nos encontrando na festa de70 anos de grande amiga dos anos 80 do século passado, não conversarmos sobre o passar do tempo... sobre perdas, lembranças ... e chorarmos e rirmos... quase ao mesmo tempo.

Ela, a aniversariante, trajando um lindíssimo vestido vermelho, meio soltinho e vaporoso, que a deixava a vontade para o esbanjamento na dança e na alegria; os cabelos presos num displicente "coque"  e um sapato baixo e confortável, claro, para o esbanjamento que já dissemos.

E todas (e todos) nós, também, esbanjando elegância, alegria, vitalidade... "parece que foi ontem!" todas nós dizíamos, continuamos "as mesmas", algumas de nós apresentando suas filhas adultas - nos anos 80 quase todas tinham menos de cinco anos - e algumas filhas, agora, completamente "a cara" das mães naquela época... 

Essa é uma característica da amizade: passa-se o tempo, a gente se encontra e "parece que foi ontem"... o tempo não "envelhece" a amizade. Lembramos Alberoni, escrevemos sobre ele em post do dia 30 de janeiro deste ano, também a propósito de "bons encontros":

Francesco Alberoni, jornalista, escritor e professor de sociologia italiano, hoje com 93 anos.  Publicou,  em 1979, "Enamoramento e Amor", o seu livro mais traduzido e mais vendido, o primeiro da trilogia  "A amizade" (1984) e "O erotismo"(1986).


"No livro A AMIZADE, Alberoni afirma que essa  é a única relação afetiva incompatível com a ambivalência. Já vimos que, no enamoramento podemos odiar a pessoa amada. Podemos ser ambivalentes em relação aos nossos pais ou aos nossos filhos. Não podemos, ao contrário, ser ambivalentes em relação ao amigos. Caso aconteça a ambivalência, a amizade sofre e, se a ambivalência continua, desaparece. É este, provavelmente, o motivo pelo qual os amigos preferem ver-se de quando em quando, quando têm vontade, em lugar de viveram juntos. Uma convivência contínua cria, inevitavelmente, motivos de dissabor, de ressentimento, pequenas coisas que, no entanto, somando-se, se podem tornar grandes. A convivência tende a consolidar as relações afetivas mas, ao mesmo tempo, divide. Os enamorados escolhem esta estrada a este risco porque tendem à fusão. A amizade, pelo contrário, prefere renunciar à fusão a favor do encontro. O encontro é sempre positivo. A amizade , então, pode ser definida como uma série de bons encontros".

 Voltando ao "displicente coque",  rimos muito das palavras que nos denunciam: provavelmente nenhuma pessoa que tenha nascido neste século saiba o que é "coque"... E "O conjunto está ótimo"! Não, minina, é banda! Conjunto musical é do tempo da fita cassete, do LP, já passamos até pelo CD, hoje é play list...

Quanto à memória, não é verdade que, com a idade, nossa memória diminui... de jeito nenhum! Na verdade nossa memória se torna pontual, ou seja, lembramos o que nos interessa, e lembramos muuuiiiitoooo... mas para as coisas menos importantes, nosso HD já está cheio, aí a gente deleta...

E, numa certa altura da conversa, apareceu a piada sobre os três Ks que matam os velhos: Katarro, kaganeira e keda.

Inevitável lembrarmos com saudade e admiração da pessoa que nos reuniu. Pensamos que ela seria, agora, como grande artista italiana, Barbara Alberti:

Escritora, roteirista, dramaturga e personalidade da TV italiana, atualmente com 81 anos, seu ultimo livro TREMATE TREMATE, deste ano de 2024. 




TREMAM, TREMAM! AS BRUXAS VOLTARAM!!!

E sua participação em filmes como roteirista: O Porteiro da noite (1974), O árbitro (2013) e Incompreendida (2014):





É como se, aquela  pessoa inspiradora que nos uniu, se estivesse entre nós, falaria sobre o passar do tempo como a Barbara Alberti:

"A velhice é anárquica por natureza... Por que é a nossa última cavalgada. Você tem que contornar o precipício... E, também, você sente a cada momento como se fosse um clandestino.
Agora, quanto você já viveu muito, já plantou muito, há essa sensação de milagre de ainda estar aqui, o que me parece, realmente, inédito no que me diz respeito.
Há, também, a sensação de que a festa está prestes a acabar... e você está aqui! dançando.
Muitos se foram antes de você, entende?
E você está aqui, dançando...
Mama mia, ainda bem...
Ou seja, enquanto me movo, falo e penso, sou dona de mim!
Se eles deixarem, daqui mais 200 anos eu estarei aqui... por que é verdade que estou mais velha, mas continuo sendo eu mesma! O problema não é a velhice, o problema é a morte!"...

Ao ouvir Barbara Alberti dizendo essas palavras, senti nossa mentora presente... 



E por falar em memórias e afetos, depois do parabéns a banda tocou, em homenagem à aniversariante, essa música que ela adora... e todas e todos nós também ...

E assim foi terminando a festa, com uma novidade interessante: a decoração era "desmontada" e transformada e buquês que eram oferecidos para levarmos, junto com fotos em preto e branco, lembranças  de outros encontros nossos... que venham muitos mais... e obrigada pela festa, querida amiga.

Deixando registrado mais uma vez que o SBC é completamente inspirado nessa nossa mentora, ela mudou nossas vidas...




Abraços carinhosos a todos e todas...

segunda-feira, 1 de abril de 2024

Do narcisismo para a alteridade: uma construção humana

 

Há muito tempo, na floresta, passeava Narciso, o filho do sagrado rio Kiphissos. Era lindo... E muito convencido de sua beleza... E sabia que não havia no mundo ninguém mais bonito que ele. Vaidoso, a todos dizia que seu coração jamais seria ferido pelas flechas de Eros, filho de Afrodite, pois não se apaixonava por ninguém.

As coisas foram assim até o dia em que a ninfa Eco o viu e imediatamente se apaixonou por ele. Ela era linda, mas não falava; o máximo que conseguia era repetir as últimas sílabas das palavras que ouvia.

Narciso, fingindo-se de desentendido, perguntou:

– Quem está se escondendo aqui perto de mim?

–… de mim – repetiu a ninfa assustada.

– Vamos, apareça! – ordenou. – Quero ver você!

–… ver você! – repetiu a mesma voz em tom alegre.

Assim, Eco aproximou-se do rapaz. Mas nem a beleza e nem o misterioso brilho nos olhos da ninfa conseguiram amolecer o coração de Narciso.

– Dê o fora! – gritou, de repente. – Por acaso pensa que eu nasci para ser um da sua espécie? Sua tola!

– Tola! – repetiu Eco, fugindo de vergonha.


A deusa do amor não poderia deixar Narciso impune depois de fazer uma coisa daquelas. Resolveu, pois, que ele deveria ser castigado pelo mal que havia feito. Um dia, quando estava passeando pela floresta, Narciso sentiu sede e quis tomar água.  Ao debruçar-se num lago, viu seu próprio rosto refletido na água. Foi naquele momento que Eros atirou uma flecha direto em seu coração.

Sem saber que o reflexo era de seu próprio rosto, Narciso imediatamente se apaixonou pela imagem. Quando se abaixou para beijá-la, seus lábios se encostaram na água e a imagem se desfez. A cada nova tentativa, Narciso ia ficando cada vez mais desapontado e recusando-se a sair de perto da lagoa. Passou dias e dias sem comer nem beber, ficando cada vez mais fraco. Assim, acabou morrendo ali mesmo, com o rosto pálido voltado para as águas serenas do lago. Esse foi o castigo do belo Narciso, cujo destino foi amar a si próprio.

Eco ficou chorando ao lado do corpo dele, até que a noite a envolveu. Ao despertar, Eco viu que Narciso não estava mais ali, mas em seu lugar havia uma bela flor perfumada. Hoje, ela é conhecida pelo nome de “narciso”, a flor da noite.


O Mito de Narciso foi escrito pelo poeta romano Ovídio,  como parte integrante da obra “Metamorfoses”, no século VIII d.C.

Interpretações sobre o Mito de Narciso: 

o narcisismo

A excessiva importância dada à imagem de si próprio é a principal característica de Narciso e serve como base para a ideia do narcisismo – termo utilizado em diversas áreas do conhecimento. No campo da psicologia, em especial, o Mito de Narciso ganha destaque; é a partir dele que surge a condição psicológica explorada por Sigmund Freud em Introdução ao narcisismo (1914).

Freud separou o fenômeno em duas instâncias: o narcisismo primário e o narcisismo secundário. No narcisismo primário, a criança  investe toda sua libido em si mesmas. Entretanto, com o passar do tempo, essa libido é dirigida para fora, para outros objetos que não o próprio indivíduo. No narcisismo secundário, após a libido ser projetada para fora, os indivíduos a direcionam de volta para si, o que resulta em adultos deslocados da sociedade, que não possuem capacidade de amar e de ser amados. Ou seja, os transtornos ou perturbações narcísicas.


Lacan também discorreu sobre o narcisismo quando abordou  conceito de estádio do espelho. Trata-se do momento inaugural da formação do eu. Neste momento,  o bebê que ainda não fala vê sua imagem refletida em um espelho.  Surge uma ideia de totalidade, uma ideia de eu sou isso que se torna eu sou eu. Esta ideia é imaginária porque, para se supor “total”, o bebê recalcará “tudo” o que não é, sem o saber. Mas, apenas esta visão no espelho talvez não seria suficiente para o bebê interiorizar esta noção. Então Lacan proporá a necessidade de confirmação por um grande Outro. Esta confirmação seria validar para o bebê que aquilo que o bebê está vendo é ele mesmoNo caso, a ideia de grande Outro representa o ideal de verdade e suposto-saber na percepção do bebê. Este lugar o bebê atribui à mãe, neste momento do reflexo.

Embora Freud e Lacan coloquem o narcisismo como uma etapa da formação do eu, os textos "virtuais" apresentam o narcisismo em seus aspectos patológicos. A seguir  algumas das características comuns de pessoas narcisistas, que podem causar impactos negativos em suas relações interpessoais e na sociedade como um todo. 

Falta de empatia: Pessoas narcisistas geralmente têm dificuldade em se colocar no lugar dos outros e em reconhecer as emoções alheias.

Busca por admiração: Narcisistas frequentemente procuram constante validação e elogios, buscando ser o centro das atenções.

Manipulação: Eles tendem a manipular as pessoas ao seu redor para alcançar seus objetivos, muitas vezes sem se importar com as consequências para os outros.

Arrogância: Narcisistas costumam se considerar superiores aos demais e exibir um comportamento arrogante e presunçoso.

Competitividade extrema: Eles têm uma necessidade constante de se destacar e de ser os melhores em tudo o que fazem.

Falta de responsabilidade: Narcisistas tendem a culpar os outros por seus próprios erros e dificuldades, evitando assumir a responsabilidade por suas ações.

Desprezo pelas regras: Eles muitas vezes se sentem acima das normas sociais e tendem a desrespeitá-las sem pensar nas consequências.

Intolerância à crítica: Narcisistas têm dificuldade em lidar com críticas e reagem de forma exagerada quando confrontados com seus pontos fracos.

Exploração dos outros: Eles podem usar as pessoas ao seu redor para obter vantagens pessoais, sem se importar com o impacto que isso possa ter nos outros.

Senso de superioridade: Narcisistas geralmente se consideram únicos e especiais, acreditando que merecem tratamento especial e privilegiado.

Para se proteger de um narcisista,  algumas estratégias apresentadas:

Crie distância, para cortar o suprimento narcisista da pessoa:

o    Dedique seu tempo a si mesmo, não às necessidades da pessoa

o    Não se sacrifique pela pessoa e nem deixe que ela obtenha alguma vantagem sobre você, seja qual for a situação

o    Bloqueie o número da pessoa narcisista, se necessário

2.   Reserve um tempo para se recuperar emocionalmente:

o    Recuperar-se do impacto de um narcisista é essencial. Eles gostam de estar no centro das atenções, então reserve o tempo e o espaço necessários para separar esse vínculo.

o    Desabafe sobre seus pensamentos e sentimentos em um diário.

o    Lembre-se de que você não tem culpa pelo abuso que sofreu.

o    Cuide do seu bem-estar e considere fazer terapia.

3.   Assuma sua parcela de responsabilidade pelo conflito:

o    Em vez de confrontar a pessoa, assuma sua parte de responsabilidade.

o    Isso pode pegá-la de surpresa e mudar o rumo da conversa.

4.   Defina limites pessoais:

o    Reconheça os sinais de alerta e estabeleça limites claros.

o    Se necessário, afaste-se do relacionamento.

Lembre-se de que proteger-se de um narcisista envolve cuidar de si mesmo e buscar apoio terapêutico, se necessário.

E assim é descrito o narcisismo nas redes, ou seja, como perturbações do ser... e, relacionalmente, como pessoas a serem evitadas e nos protegermos delas.

O termo foi introduzido na psiquiatria no final do século XIX, por Havelock Ellis. Não há uma causa única de transtorno de personalidade narcisista (NPD). No entanto, os pesquisadores concordam que as causas genéticas e ambientais estão em jogo, começando na infância. NPD pode ocorrer quando, por exemplo, uma pessoa nasce com um temperamento supersensível; aprende o comportamento manipulador; é excessivamente elogiado por bons comportamentos e criticado por maus comportamentos; sofre de abuso ou negligência na infância; é excessivamente mimado, admirado e recebe elogios excessivos em sua aparência ou habilidades.

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Até aqui um resumo das nossas pesquisas sobre o narcisismo. E começamos a nos encontrar e discutir sobre o assunto a partir dos nosso afetos, nossos incômodos sobre como é tratada essa "característica humana" (como nós pensamos), assim como são tratadas as relações com esses sujeitos.

Inicialmente, dois aspectos nos chamam atenção:

. o primeiro deles, a "patologização", ou seja, coloca-se o narcisismo na categoria de "doença", a ser tratada, portanto... E a indústria farmacêutica está aí para "resolver" tudo (ou "encobrir" tudo...) ; e é assim que aprendemos nas nossas "deformações" superiores, o modelo maniqueísta saúde-doença ainda é vigente nas nossas faculdades.

. segundo -  decorrência do primeiro aspecto -  do ponto de vista relacional, um  jeito de ser - e de pensar "aprendido", próprio da nossa cultura, o jeito   OU/OU, ou eu ou o outro, acreditamos que nos causa grandes transtornos tanto na nossa própria visão quanto na percepção (de mim mesmo e do outro). Trata-se de uma visão limitante do ser humano, que é muito mais dinâmico e em movimento do que esse jeito estático, pronto e acabado do rótulo... tendemos a nos "encaixar" e "encaixar" os outros em padrões e nos relacionar a partir dos padrões - e deixar de enxergar a pessoa, o que "dá mais trabalho"  - porém, ao mesmo tempo,  é o mais gratificante.

A partir desses dois aspectos é que nos propomos a pensar o narcisismo - e a nos pensar e pensar  as nossas relações humanas - não no modelo patológico (ou no raciocínio ou/ou) - e sim tendo como referência a fenomenologia, o estudo da consciência e dos objetos da consciência ... O movimento de volta às coisas mesmas, aos fenômenos, aquilo que aparece à consciência, que se dá como objeto intencional. O método fenomenológico compreende que todos os fenômenos aparecem a partir de uma infinidade de modos possíveis de aparecer, de modo que nunca podem ser esgotados. Por isso, numa abordagem fenomenológica o movimento importante é que se tenha vários "pontos de vista" sobre o mesmo fenômeno.

Fenomenologia (do grego phainesthai — aquilo que se apresenta ou que mostra — e logos explicação, estudo) é uma metodologia ou um modo de pensamento filosófico que retoma a importância dos fenômenos, os quais devem ser estudados em si mesmos — tudo que podemos saber do mundo e de nós próprios resume-se a esses fenômenos, a esses objetos fenomenais que o ser experimenta em sua finitude. Os objetos da Fenomenologia são dados imediatos apreendidos em intuição pura, na nossa lida cotidiana com as coisas. Edmund Husserl (1859-1938) — filósofo, matemático e lógico — é o fundador desse método de investigação filosófica. A Fenomenologia representou uma reação no sentido de superação da metafísica, pretensão de parte dos filósofos e cientistas dos séculos XIX e XX.

Além dessa pesquisa teórica, nos debruçamos sobre os inúmeros vídeos que encontramos na internet sobre o assunto. Todos eles nos apontam o narcisista como uma figura "do mal"... e o outro (no caso, eu - ou nós) como a pessoa "do bem", ingênua e pura, que "descobre" seu envolvimento com aquele "demônio narcisista" e o mal que ele está causando, de maneira tal que devemos desenvolver duras atitudes para "massacrar", punir, até destruir aquele narcisista... e aí nós nos salvamos deles.

E, nessa perplexidade, nos encontramos para conversar, trocar experiências relacionais vividas e analisá-las sob a visão do que temos do senso comum - o que consideramos um desserviço, uma desinformação, distorções que podem gerar grandes transtornos e sofrimentos relacionais - sofrer e/ou fazer sofrer o outro pelas distorções provenientes dos entendimentos de mim mesmo e do outro pelas informações distorcidas, que reforçam o ou/ou, não contribuindo em nada para a "construção humana" da alteridade.

Pois bem, a maioria das informações dos vídeos retratam mães narcisistas - controladoras, autoritárias - que nos causam sofrimento e das quais nós, filhos e filhas,  precisamos nos livrar, precisamos ser durxs com elas, precisamos tomar distância para nos preservar, e por ai vão as  sugestões de solução desse conflito... Vimos até alguns vídeos sobre "mães narcisistas velhas", e como lidar com elas... enfim, nenhum vídeo sobre filhos narcisistas, que sugam as mães até o bagaço... claro, na nossa cultura a culpa, sempre, é da mãe, da mulher... 

Também muitos vídeos sobre como se livrar da relação amorosa narcísica, ora retratando a mulher frágil, sensível, amorosa, ingênuas, sendo vítima do homem narcisista, controlador, sedutor, um Don Juan que a domina; e ora narrando um homem sensível vítima de de uma mulher sedutora e narcisista, que coloca o homem a seus pés... A pessoa que "sofre" com a outra - narcisista - se parece, no mito de Narciso, com a ninfa ECO, aquela que repete, aquele que se submete, aquela frágil...

Percebam o ou/ou, percebam os padrões impostos, o modelo de amor que conhecemos... e tentem caminhar para a análise fenomenológica existencial. Foi isso que tentamos fazer... 


Questionamentos que nos ocorreram, a partir dos vários relatos pessoais nos nossos encontros, relatos de sofrimentos de mães, de filhas, de homens, de mulheres, de pessoas de vários idades ... relatos que nos favoreceram a abertura de conflitos,  o movimento para a superação dialética dos mesmos, assim como a análise desses conflitos no movimento fenomenológico, não no fechamento de "a culpa é...", e sim para o movimento de, diante do cenário, fazer escolhas de vida que, na hipótese positiva - e trabalhosa - vem a ser o diálogo, com a prática da alteridade; e numa hipótese menos positiva, o distanciamento ou a relação no "eu mínimo", conceito bastante interessante que abordamos mais tarde nas nossas conversas...

Aqui colocamos um pouco de poesia na nossa conversa, pois "todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver e relacionar"...

"Não se guarda as palavras, ou você as fala, as escreve, ou elas te sufocam" 
Clarisse Lispector

Voltamos aos nossos questionamentos, perguntas, perplexidades:

. Primeiro, o  narcisismo seria um transtorno de personalidade, uma doença - ou uma maneira de ser, um modo das pessoas existirem no mundo? 

.Colocando o entendimento do narcisismo como um modo de ser no mundo, isso nos traria a possibilidade de nos vermos de uma maneira mais aberta, sem autocensura, apenas pensando sobre as características desse modo de ser que nos fazem sofrer e/ou causam sofrimento ao outro, assim como nas características que eu quero me apropriar delas, na medida certa, pois são características que eu conquistei, construí para mim mesma, como a auto-estima ao ponto, "se sentir merecedora" se colocar no mundo como auto afirmativa.

. E a auto-estima (exacerbada), primeira das característica apontadas  sobre a personalidade narcísica, não seria uma das primeiras aprendizagens (na medida certa) para o movimento no sentido da construção da nossa humanidade? Qual seria o limite entre uma boa auto-estima (se sentir merecedora) e uma auto imagem e um comportamento narcísico (comportamento arrogante, talvez a partir de pressuposto de inferioridade)? Uma de nós concluiu, aqui, que "precisamos de uma dose de narcisismo para sobreviver"... e acrescentou, lembrando G. Rosa: "Viver é perigoso... a mesma coisa que me salva pode me matar".

. Outra característica apontada na descrição da pessoa narcisista seria o exagero da busca de reconhecimento... ora, pensamos que a necessidade de ser reconhecida é inerente ao ser humano. Porém, essa mesma necessidade pode me fazer submeter ao narcisismo do outro, posso me deixar controlar, dominar, pela necessidade de reconhecimento, posso me transformar num fantoche, ser do jeito que o outro quer que eu seja, para ser reconhecido ou reconhecida... E a tomada de consciência dessa submissão pode me levar ao movimento para a liberdade: continuo com o desejo de ser reconhecido(a) - não mais a necessidade - mas meu maior desejo é ser livre... 

Então eu caminho, eu me movimento para me perguntar sobre meus desejos, minhas necessidades, buscar quem me reconhece como sou e não  me "escravizar" emocionalmente... Tivemos relatos de relações abusivas desenvolvidas a partir dessa base da necessidade de ser reconhecido(a), amado(a), estimado(a)... e apontamentos de "saídas" possíveis: deixar o lugar de vítima e caminhar para o lugar de sobrevivente, se empoderar (veja aqui a auto estima na medida certa). Dentro desse tema surgiu também a necessidade de destruir o mito (aquelas falsas verdades que internalizamos e vivenciamos como se fossem absolutas verdades) do sofrimento de "cair em si" -  olhar para nós e ver nossas imperfeições faz parte da nossa humanidade, não somos perfeitas(os) como, quase sempre, somos educados(as) para ... 

E, acreditem, essa percepção é libertadora! caminhamos para nossa humanização... e para a humanização do outro(a)... Trata-se de um movimento de "virar a chave", como disse uma das nossas...

. E, de todos os depoimentos maravilhosos que trocamos sobre o assunto, um deles foi mais tocante:

"Através de reflexão, autoconhecimento e ajuda terapêutica, estou aprendendo a lidar com meu próprio narcisismo e, assim, a lidar com os narcisismos das pessoas que mais amo... Me via, e ainda me vejo, como o recheio de um sanduiche, apertada entre duas relações difíceis, muitas vezes bastante sofridas, a relação com minha mãe e a relação com minha filha. 

Na relação com minha mãe, algumas vezes eu conseguia me comportar "me protegendo" do seu nacisismo. Outras vezes, de alguma forma - muitas vezes até cruel com ela - "combatendo" o seu narcisismo  - como no nosso modelo aprendido - eu reproduzia  a crueldade do controle, o ressentimento pela cobrança que sentia/sinto de ser perfeita para ser amada, a manipulação para receber atenção... e precisei/preciso de muita humildade, de muita introspecção, para perceber meus erros, para perceber a humanidade da minha mãe, para perceber que não vou mudá-la, esse meu desejo de mudá-la vem da minha onipotência narcísica ... 

E foi aí que comecei a perceber minhas reproduções da minha mãe... as mesmas características, o desejo de ser reconhecida pela minha filha, a onipotência, o autoritarismo ... difícil, exige, também, muita humildade ... e ela, minha filha, me ajudou muito, me denunciando, botando o dedo nas feridas... e, nesse movimento em mão dupla, me vi, também, escrava do narcisismo dela... sofri a crueldade da pessoa que entra em onipotência, dona da verdade, que se coloca como  a filha que deve ser DURA com a mãe... faltou o exercício da alteridade, de se considerar e considerar o outro ao mesmo tempo... fomos nos recuando, deixamos de praticar o diálogo nessa perspectiva da alteridade... e ficou triste a relação ... e eu só consegui, até agora, ocupar o espaço que chamo de "mãe mínima", ou melhor, "decidi", a partir dessa leitura de realidade, ocupar esse espaço, ou seja, ocupar um espaço mínimo na sua vida, a fim de me preservar... amigas analisaram a cena como o encontro (ou desencontro) entre duas "pessoas +", duas pessoas auto afirmativas... sim, acredito que a auto afirmação  seja uma conquista na minha vida, não vou abrir mão disso. Provavelmente ela, minha filha, teve muito mais facilidade para construir essa auto afirmação. 

Acredito, confio que virá o tempo do diálogo e da construção da alteridade entre nós duas, mas agora a maturidade para  reconhecer que isso não está sendo possível , me poupa sofrimentos desnecessários, além de acreditar, também, que possamos, com esse "distanciamento", estarmos até mesmo preservando nossa relação... Precisamos "aguentar" isso, enfim ..."


Todos e todas nós ficamos emocionadxs com esse depoimento... e aprendemos muito: algumas "saídas" possíveis para o narcisismo, o nosso e do(s) outro(s):

. O auto conhecimento, superar nosso medo, nossa vergonha, de descobrir/analisar nosso próprio narcisismo... é o primeiro passo para ver e saber lidar com o narcisismo do outro, caminhando para a construção da alteridade. Sair da posição de auto condenação e/ou da condenação do outro, a posição OU/OU; 

. Tirar o narcisismo do discurso patológico e trazer para a compreensão fenomenológica existencial;

. Tentar encontrar uma forma de convidar o outro ao diálogo, ao exercício da alteridade... na medida da possibilidade, considerando seus próprios limites e os limites do outro... além de considerar que esse exercício não é estático, vai acontecendo ao longo da relação. Limites e possibilidades andam juntos, devo considerar os limites, porém, ao focar as possibilidades me movimento para a construção...

. Eventualmente, tomar distância auto protetora, assim como considerar a necessidade do outro, que pode ser também de distância. 

. Enfim, pensar no narcisismo natural ou estruturante... assim como no possível narcisismo patológico, no nosso entendimento, relativamente raro e não banalizado como mostram a maioria dos vídeos que aparecem na internet e nos prestam um desserviço, a desinformação... E  nos levam, quase sempre, à conclusão (errônea mas com consequências tristes) que somos "os santos" e o outro é "o mal".

Com essas reflexões chegamos também à consideração do narcisismo 'culturalmente fabricado", qual seja, o reforço  na nossa cultural do superficial, do artificialismo, e o culto à imagem, o imediatismo, todas características que reforçam o narcisismo, as relações superficiais, o amor líquido, até mesmo a evitação do movimento de alteridade.

E chegamos às leituras a seguir, dois excelentes livros de Christopher Lasch:




Nesta análise clássica e visionária publicada originalmente em 1979, o historiador Christopher Lasch parte do conceito psicanalítico de narcisismo para destrinchar a relação entre indivíduo e sociedade, sintetizando o que rege os tempos contemporâneos.

Segundo o diagnóstico de Lasch, os indivíduos perderam o vínculo entre si, fosse ele o pertencimento à família tradicional ou a grupos políticos e movimentos sociais, para dedicar-se cada vez mais ao próprio bem-estar. A cultura do narcisismo parte da origem do movimento de autoconsciência e autocuidado nos anos 1970, passa pela ética protestante, que persegue o sucesso profissional e celebra a figura do self-made man, até chegar em discussões que só se intensificaram nas últimas décadas, como a da responsabilidade pela educação dos cidadãos; a degradação do espírito esportivo, que deu lugar ao culto a atletas celebridades; a fuga de sentimentos e vínculos afetivos e a teatralização da política. Ao circundar essas esferas sociais, Lasch mostra que a personalidade narcísica corrói a possibilidade de um presente satisfatório e gera uma visão desesperançosa do futuro. O autor propõe ainda uma reflexão surpreendentemente atual sobre o consumo desenfreado de imagens; o culto à personalidade; a preocupação exacerbada com o autocuidado e a saúde mental; e sobre o modo como tais características ― próprias de um individualismo competitivo e angustiante ― não têm colaborado para a construção de uma sociedade mais saudável. Pelo contrário, Lasch mostra como a ideia de que o mundo deve espelhar as ânsias do sujeito para que este esteja satisfeito é vacilante e deságua na “era de expectativas decrescentes”. 


Diferentemente da Cultura do Narcisismo, que é a reunião de artigos escritos em tempos distintos, embora com temas que se correlacionam, O Mínimo eu foi estruturado como um estudo mais aprofundado. Todavia, mantém um tom ensaístico, denso mas acessível, com a prosa elegante de Christopher Lasch evitando o recurso ao jargão acadêmico mais esotérico.

Publicado originalmente em 1984,  O Mínimo eu procura clarear e aprofundar pontos que ficaram obscuros e subentendidos no livro “A cultura do narcisismo” de 1979.
Aqui, Lasch acentua sua confiança na psicanálise como veículo de análise da contemporaneidade. 

Nas palavras do autor, a tese de seu livro pode ser resumida assim:

“Em uma época carregada de problemas, a vida cotidiana passa a ser um exercício de sobrevivência. Vive-se um dia de cada vez. Raramente se olha para trás, por medo de sucumbir a uma debilitante nostalgia; e quando se olha para frente, é para ver como se garantir contra os desastres que todos aguardam. Em tais condições, a individualidade transforma-se numa espécie de bem de luxo, fora de lugar em uma era de iminente austeridade. A individualidade supõe uma história pessoal, amigos, família, um sentido de situação. Sob assédio, o eu se contrai num núcleo defensivo, em guarda diante da adversidade. O equilíbrio emocional exige um eu mínimo, não o eu soberano do passado.(…) a preocupação com o indivíduo, tão característica de nossa época, assume a forma de uma preocupação com a sobrevivência psíquica. Perdeu-se a confiança no futuro. (…) O risco de desintegração individual estimula um sentido de individualidade que não é 'soberano' ou 'narcisista', mas simplesmente sitiado” 2


Esta “mentalidade de sobrevivência” manifesta-se em produtos da indústria cultural, da psicologia banalizada de jornais, rádios e programas televisivos (e hoje, na internet), manuais de auto ajuda, reportagens e análises sociais, na literatura (notadamente a ficção científica). Possui um lado pertinente, como que uma antena ligada, captando os problemas do mundo. Todavia ela acaba atestando um descrédito da política e do ideal de bem comum, valores universais e cooperação. Assim as mobilizações contra os armamentos nucleares e pelo meio ambiente podem ocasionar efeitos contrários aos pretendidos, acentuando o encasulamento na mentalidade sobrevivencialista. Essa configuração social e psíquica tem ressonâncias no mundo do trabalho, nas relações familiares, de amizade e afetivo-sexuais. 

Conversamos sobre o conceito de eu mínimo, interpretando-o à maneira "Rosiniana" - do nosso grande G.Rosa, "tudo que me salva pode me matar", e entendendo a posição daquela depoente como "o possível" para o momento vivido - e o saudável no sentido de auto preservação e preservação do outro (a filha) e, principalmente, provisório, inserido num movimento para a prática de alteridade a ser buscada, construída, enfim, o que vale a pena - humanamente -  de ser vivido: a experiência humana, essencialmente humana, de crescer com o outro e vice versa...

Com essa leitura e o movimento de ampliação de visão encerramos nosso debates sobre assunto tão importante e que nos acrescentou por demais.

Sorte nossa termos no SBC pessoas tão interessadas no seu crescimento e evolução para o humano e para a alteridade.

Até nosso próximo debate.

E quem tiver considerações, ilustrações, perguntas, o que for, coloquem aqui nos comentários ou nos chame no privado.

Abraços carinhosos...