quarta-feira, 28 de abril de 2021

Conversas SBCenses: sobre ARTE e POLÍTICA



Frase atribuída a Ferreira Gullar, pseudônimo de José de Ribamar Ferreira (1930-2016), poeta, crítico de arte e ensaísta brasileiro. Abriu caminho para a "Poesia Concreta" com o livro "A Luta Corporal". Organizou e liderou o movimento literário "Neoconcreto".



Mas temos, também, outras frases inspiradoras de grandes SBCenses:







A ARTE é transformadora, a ARTE é revolucionária, a ARTE é libertadora!!!
O que seria de nós sem a ARTE, ainda mais em tempos difíceis como este que estamos vivendo... 

Coisas que jamais você faria, se não fosse esses tempos, todos me contam que têm... no meu caso, tenho um sobre armário com umas caixas de papelão com textos, livros em xerox, já amarelados pelo tempo,  como diz uma amiga, arquivos  do tempo do pergaminho (do grego pergaméne e do latim pergamina): é uma pele de animal, geralmente de cabra, carneiro, cordeiro ou ovelha, preparada para nela se escrever. 
Pois não é que, vira e mexe, subo e tiro uma dessas caixas? e, com ela, começo a explorar minhas lembranças, me surpreender comigo mesma, com os textos ou trechos de livros que mudaram minha vida... assim como ler com um novo olhar, 30, 40 anos depois de já ter crescido com o texto ou livro, aproveitar para crescer de novo, e de novo, e de novo...

E me reencontrei com Ho chi Minh...

Ho chi Minh (Kiem Lan, 1890 – Hanói, 1969) foi um revolucionário, político, escritor, poeta e jornalista vietnamita. Também conhecido por seu nome de batismo Nguyễn Sinh Cung e pelo pseudônimo Nguyen Ai Quoc, Ho foi um dos principais responsáveis pela libertação do Vietnã do colonialismo francês e imperialismo norte-americano durante o século XX.

Ho chi Minh significa "aquele que ilumina". De uma sensibilidade rara, uma esperança inquebrantável, uma simplicidade absoluta, quase sempre se apresentava vestido com aquelas calças largas amarradas na cintura e sandálias de couro (como as nordestinas). Também de uma ironia e humor finos: Quando saiu da prisão, um jornalista lhe perguntou sobre a passagem do tempo, e ele respondeu que, na prisão, qualquer tempo é enorme! Outro lhe perguntou como   conseguia escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana? E ele respondeu: «Eu desvalorizei as paredes».

Já o tinha resgatado em 9 de dezembro de 2016 (veja nosso post desta data), portanto já neste século (rsrs), por ocasião de minha ansiedade com o lançamento do nosso  livro "Diário do SBC". Então, a sua lembrança me trouxe serenidade, pois ele dizia que, quando queremos muito alguma coisa, é preciso andar bem devagar... para "dar certo" o que queremos. 

Estava mesmo em "pergaminho" o xerox do livro "Diário de Prisão"... e foi nosso assunto no fim de semana, regado a cerveja e feijoada. Na crônica de 2016 eu disse que ele escrevia poemas estilo HAICAI, que são pequenos poemas de origem japonesa. Errei... Os poemas de Ho chi Minh são poemas TANG, também pequenos poemas, porém, a origem do nome TANG é da Dinastia Tang (618-915)  considerada o auge da cultura clássica chinesa. Foram aproximadamente 300 anos de uma sociedade caracterizada por uma vida urbana intelectual e esteticamente sofisticada. Então, não são Haicai... são Tang... mas "parece".

Antes de lermos os poemas, lemos a Introdução e o Prefácio do livro, escritos por um americano e um Vietnamita, que nos contam um pouco da história de vida desse grande comunista, um dos mais importantes da história contemporânea. E nossas principais descobertas:

A FUNÇÃO DA ARTE E DA POESIA

A RELAÇÃO DA ARTE COM A POLÍTICA

Função da poesia: conseguir enxergar beleza e  vida, mesmo diante de situações trágicas, de muito sofrimento

Política e poesia: dizer a verdade, com inteligência e sensibilidade, é tarefa e competência de grandes estadistas... E Ho chi Minh foi, sem dúvida, um grande estadista... e um grande poeta. Para ele, a visão do sofrimento invoca ação e expressão poética. 

Em Ho chi Minh inteligência e sensibilidade são uma só coisa. Aprendamos com ele, pois somos, todas, todos e todes, poetas e políticos.

Estes são alguns poemas TANG de Ho chi Minh, com seus ensinamentos singelos (e profundos) sobre si mesmx, sobre emoções, sobre a vida e as relações:


"A rosa se abre à tardinha, e então desaparece.

O seu abrir e o seu fechar continua por todos desapercebidos,

Mas a fragrância da rosa exala até às profundezas da prisão,

Dizendo aos lá encarcerados da injustiça e sofrimento".


INFORMAÇÃO A SI MESMO

Sem o frio e a desolação do inverno,

Não haveria a ternura e o esplendor da primavera.

As calamidades me temperaram e enrijeceram,

Transformando minha mente em aço.


É PROIBIDO FUMAR
Fumar aqui é totalmente proibido!
Seu fumo vai todo ele para o bolso do carcereiro.
Ele, claro, coloca-o no seu cachimbo - e para isso tem toda a noite,
Mas se você tentar fazer o mesmo,
há um par de algemas à sua espera.


VISITA A SEU MARIDO NA PRISÃO
O marido está no outro lado das grades
A mulher está fora, e olha para ele.
Estão próximos um do outro, separados por centímetros,
E, ainda assim, tão distantes, como o céu e o fundo do mar.
O que as palavras não dizem, seus olhos descrevem.
A cada palavra seus olhos marejam de lágrimas.
Quem pode observar impassível e indiferente esse encontro?

PARA SORRIR
O Estado se alimenta com arroz: habito seus palácios;
Seus guardas se revezam para me fazer companhia.
Suas montanhas e seus rios, eu os contemplo a vontade,
Com tais privilégios, um homem se sente realmente um homem!

TRISTEZA
O mundo inteiro queima com as chamas da guerra
E os homens competem para ver quem chegará primeiro na frente de batalha.
Na prisão, a inércia esmaga o preso.
Minhas nobres aspirações valem menos que um vintém!

MEIA NOITE
Todos os rostos parecem honestos durante o sono.
Só quando acordamos parecemos bons ou ruins.
Bem e mal não chegam pelo nascimento:
No mais comum das vezes, vem de nossa educação.

LENDO UMA "ANTOLOGIA DE MIL POETAS"
Os antigos costumavam cantar a beleza natural:
Neve e flores, lua e vento, névoa, montanhas e rios.
Hoje devemos fazer poemas  falando também de ferro e aço,
E o poeta também deve saber comandar e atacar.


E, terminando leitura do "pergaminho", feijoada e cerva, antes do cochilo, fiquei "arrogante" : me arroguei, inspirada na singeleza, ao direito de, também, fazer um TANG. Recomendo... é uma delícia!

  Verdades provisórias

Vejo da janela do quarto...

A lua está crescente... quase cheia  

Dizem que lua cheia é a lua da loba 

Eu me vejo loba em todas as luas. 

E  de todas as luas me vejo Lilith...   Libertária.  Lunática.  Enluarada.

24/4 18:07 - SantuzaTU


Terminando com o convite: Façam seus TANGs! e nos mandem

Publicaremos aqui no blog, no Projeto ARTES NA PANDEMIA.











terça-feira, 6 de abril de 2021

DUAS CRÔNICAS

                  A CURA ou No tempo da pandemia

E as pessoas ficaram em casa
E leram livros e ouviram músicas

E descansaram

E fizeram exercícios
E fizeram arte

E jogaram
E aprenderam novas maneiras de ser
E pararam

E ouviram mais fundo

Alguém meditou
Alguém rezava
Alguém dançava
Alguém conheceu a sua própria sombra...

E as pessoas começaram a pensar de forma diferente.

E as pessoas se curaram.

E, na ausência de pessoas que viviam
de maneiras ignorantes,
Perigosas,
Sem sentido e sem coração,
Até a terra começou a curar...

E quando o perigo acabou
E as pessoas se encontraram
Elas ficaram tristes pelos mortos.

E fizeram novas escolhas
E sonharam com novas visões
E criaram novas maneiras de viver
E curaram completamente a terra
Assim como elas estavam curadas.

Viralizou nas redes que esse poema seria de 1869... de Kathleen O’Meara. Mas não... O texto é recente e a verdadeira autora é Catherine O’Meara, uma advogada americana. De qualquer maneira, é um poema para acalmar nossas almas.

E eu pensei que também pode ser um poema sobre um mundo melhor, sobre uma sociedade mais igualitária, mais fraterna, onde nossa riqueza seja COMUM a todas, todos e todes.

Estamos lutando pela construção desse mundo!!!

VAMOS!!!



Tempos sombrios... o que mais teremos que aprender, creio eu, será conviver com as perdas: perda de alegrias de bons encontros, perdas de pessoas queridas que se foram... ai...

No dia 31 de março ouvi numa live de mulheres, que era uma espécie de “levante” contra o “golpe” de 64 - que instaurou um governo autoritário e ditatorial no nosso país por 20 anos, até a ‘abertura democrática’ e a nossa CONSTITUIÇÃO DE 1988 - a seguinte frase, que me marcou profundamente:

“O oposto da vida não é a morte, é o MEDO”.

E, juntando o poema “A CURA”, que me emocionou muito, com essa frase, pensei em MORTE enquanto PERDAS, claro... porque cada perda é, simbolicamente, uma morte...

E, lembrando novamente de Hegel, na dialética senhor|escravo, ele diz que “aquele que treme diante da morte, vira escravo”. E morte, aqui, entendida no sentido simbólico:

. o medo da “morte|perda” dos privilégios de estar aliada ao dominador, como diz Simone de Beauvoir, faz a mulher se submeter, virar escrava... do homem... dos papéis a ela atribuídos pelo sistema opressor;

. o medo da “morte|perda” dos privilégios de ser o opressor, o senhor, no caso do homem, que o faz, também,  virar escravo, se submeter aos “padrões de ‘SER’ masculino”;

. o medo da “morte|perda” do(a) trabalhador(a) do seu sustento, que nos faz submeter às regras do capital;

E, na verdade, a “morte|perda” está sempre presente na nossa vida, desde que nascemos... o outro lado da moeda são as escolhas, a liberdade, a vida... diariamente estamos vivenciando mortes|perdas e fazendo o exercício da escolha – por morrer ou viver, simbolicamente - mesmo que não tenhamos consciência disso.

Li um artigo muito interessante de Luana Garcia de Oliveira, na Revista Labirinto de dezembro de 2010. Ela propõe uma análise sobre como o discurso da pulsão de vida transformou a sociedade e continua transformando. Considera que a pulsão de morte é um grande obstáculo para a vida em sociedade, pois o ser humano, por natureza, segundo Freud, possui ambas. No entanto, a partir do convívio social, a pulsão de vida é ativada, através das renúncias do instinto animal do indivíduo. A pulsão de Eros é ativada a partir do outro (o convívio social), e parte da energia destrutiva do indivíduo (Thanatos), tende a ser renunciada para que haja o convívio em sociedade, assim essa renúncia ocorre quando o indivíduo olha para o outro e se compara, e tende a querer ser mais, ou igual.

Sigmund Freud

Segundo Freud, o indivíduo possui a pulsão de vida e a pulsão de morte. A pulsão de vida, que vamos refletir em primeiro lugar,  faz com que o indivíduo sinta vontade de satisfazer suas vontades, buscar o prazer e satisfação da libido, no entanto, para o indivíduo que vive em sociedade, sua libido se concretiza através do instinto organizado. O instinto organizado é a consciência social implantada no indivíduo para viver coletivamente. Essa retórica, que castra o desejo do indivíduo, (o instinto organizado) era proferida na Idade Média por um líder (Estado e Igreja), na Modernidade pelas instituições.

                                                                    Michel Foucault
                                                                    Herbert Marcuse

Foucault, ao refletir sobre pulsão de vida, através da manutenção das instituições e a adestração do indivíduo, fala de ‘sociedade disciplinar’. E o filósofo Alemão Herbert Marcuse, da escola de Frankfurt, em seu livro ‘Eros e civilização’ (1966), classifica essa época da Sociedade disciplinar de Foucault como ‘O nascimento do indivíduo Reprimido’ e da ‘sociedade repressiva’. Ele caracteriza a sociedade reprimida como sendo uma sociedade que perdeu seus desejos, suas vontades, sua capacidade de indagar, e o indivíduo reprimido como coadjuvante desse modelo de sociedade. Ou seja,  Foucault descreve a sociedade disciplinar como manipuladora do corpo, Marcuse coloca a sociedade como repressora da libido (Eros), ou seja, a sociedade canaliza a energia do sexo para o trabalho, e o desejo e a libido para o consumo.

 

                                                                                    Gilles Deleuze

Deleuze (1990), fala de uma transição da sociedade disciplinar, para a sociedade de controle. Segundo ele, as instituições passam por uma reforma, por transformações discursivas na questão do adestramento e da vigilância dos sujeitos. “Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação de novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo a sociedade disciplinar”.

 


No livro “A revolução dos bichos”, de George Orwell (1946), existe uma passagem em que os animais do celeiro estavam se rebelando contra o líder da revolução, o porco Napoleão. Quando ocorre uma discussão entre eles, os bichos do celeiro começam a se rebelar contra as atitudes dos porcos, todavia, para cessar a manifestação dos bichos, os porcos colocam uma TV na frente deles, que jamais haviam visto tecnologia em sua frente. Os bichos param e ficam perplexos com tal maravilha moderna e se esquecem da revolução, tentando entender como funcionava a TV, a imagem, a voz. 

O mesmo aconteceu com a sociedade Ocidental após a segunda guerra mundial: em meio a tantas revoluções ideológicas, guerras, e revoltas, o capitalismo vem e traz coisas fascinantes e acessíveis para o mundo, e a sociedade assiste ao espetáculo da tecnologia, sem questionar como acontece.

A pulsão de vida, ao longo da transformação da sociedade nesse período (final da primeira metade do século XX), além de manter as instituições vivas, passa a ser também a necessidade da competição. A fábrica, além de produzir coisas, produziu também a política de mercado, a concorrência, a disputa de consumidor, e a competição entre as pessoas dentro da empresa.

                                                                    Gilles Lipovetsky

Gilles Lipovetsky, filósofo francês, autor da “A Era do Vazio”, analisa que, se há um boom no consumo, há o fenômeno denominado de Hiperconsumismo, hipoteticamente, diz ele, há um boom na competição, e com isso se a pulsão de vida, no indivíduo, não é bem sucedida, segundo Freud, ela é convertida para a pulsão de morte (Thánatos).

Na mitologia grega, Thanatos (Thánatos, uma palavra que vem do grego) era a personificação da morte. Freud (1921) se utiliza da história de Thanatos, na mitologia grega, para explicar a pulsão de morte no indivíduo. A pulsão de morte, à qual Freud se refere, é a morte simbólica, a morte social; Para, Freud, Thanatos (a pulsão de morte) é retraída pelo indivíduo, para que se obtenha prazer ao viver em sociedade, porém quando o indivíduo não é bem sucedido socialmente (me refiro a todos os gêneros sociais: social, econômico, familiar, etc.), ele tende a ser tomado pela pulsão de morte,  que corresponde à loucura, a pulsão da exclusão, a não aceitação social e cultural do indivíduo na sociedade, ou a morte em seu real significado, é assim a pulsão de desunião e destrutividade.

Então, vivenciar as “mortes|perdas” diárias e fazer o exercício de escolher a vida... é inerente ao ser humano. E, muitas vezes, não o fazemos muito bem. Quando, por exemplo, negamos as “mortes|perdas”, “o que muito se evita se convive”, como diria Guimarães Rosa, aí não sentimos e isso nos impede de voltarmos para a vida, porque é sempre um movimento dialético de superação, ao fazermos as escolhas estamos superando a morte e nos voltando para a vida – sem nos alienar, sem deixar de considerar, de vivenciar as “mortes|perdas”.



Num livro lindo de 1929, “Cartas a um jovem poeta”, de Rainer Marie Rilke, numa das cartas, fala sobre as tristezas: não devemos evitá-las quando elas nos ocorrem; devemos, sim, “conversar” com elas, elas nos dizem muito. Realizamos grandes descobertas quando penetramos nas nossas tristezas, descobertas importantes para a vida, até mesmo para o exercício diário de “escolher” a vida.

E, nesses tempos sombrios que estamos vivendo, as perdas são mais intensas, e o movimento para a vida torna-se também intenso, de escolhermos a vida a cada momento, sem negar as mortes, as perdas, sem deixar de vivenciá-las.

E aqui termino uma crônica. Se quiserem ler até aqui... é uma crônica que poderia se chamar “ESCOLHENDO A VIDA”.

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 Se quiserem continuar, leiam e reflitam sobre a difícil tarefa de exercer o EQUILÍBRIO ENTRE O DAR E RECEBER nas relações em geral... para o bem viver e bem relacionar:

Com as reflexões até aqui me lembrei de uma grande perda, que me ocorreu no final do ano passado, 2020, uma amiga|irmã, daquelas que a gente pratica o exercício mais fundamental do humano: crescer através do outro e se oferecer ao outro pra ele também crescer comigo: a Tânia... Foi com ela que aprendi uma das coisas mais preciosas na minha vida agora: a inclusão. Ela era agregadora, fazíamos ótimas viagens pelas cachoeiras de Minas; a Tânia “organizava” a turma, ficamos todxs grandes amigxs; meu filho e minha filha, naquela época em torno de dez e cinco anos, eram incluídos e adoravam aquelas viagens. E novxs amigxs eram incluídos a cada viagem. Ela tinha um gesto com a mão, assim com os dedos pra baixo e fazendo um círculo, dizia: “tá tudo articulado...” Viajávamos também só nós duas, eram longas conversas, sempre sobre relações humanas, e sempre o “encerramento” – provisório – da conversa era ela dizendo: é phoda...

É que eu estava mexendo nas minhas caixas de papéis, procurando algum texto antigo, tenho caixas de textos que estão amarelados pelo tempo... do tempo do “pergaminho”, como diz uma outra amiga querida. Devagar vou digitalizando uns, jogando fora outros que não têm mais sentido, transformando outros em reflexão e em crônicas como esta... e me deparei com um texto da Tania, dos anos 80: “O corpo-a-corpo do dar e receber”. Não consegui ler o texto, estava apagado! Mas me emocionei lembrando o que a Tânia elaborava sobre o dar e receber, principalmente no que diz respeito a relações íntimas, mas, já sabem, vale para todos os níveis de relação:

. O aprender a receber antecede o aprender a dar: o bebê que “não consegue, não tem força” para sugar o peito da mãe é um exemplo – o receber é ativo, ao contrário do que pensamos. A teoria sistêmica usa ainda a expressão “dar e tomar”, dando um caráter mais ativo para a pessoa que recebe. É necessário tomar o que é dado, de forma consciente, e não apenas receber de forma passiva o que é oferecido; 

. pessoas que se dão em demasia, desconfiem: pode ser para controlar, para ter ao seu redor outras pessoas submissas;

. pessoas que se dão pouco, gostam de receber, acham que o “mundo lhes deve”, são perigosas... muitas vezes sedutoras...;

. um equilíbrio entre o dar e o receber é fundamental para o bem viver: imagine uma pessoa bocão e peitinho; ou outra, peitão e boquinha!;

. reciprocidade – equilíbrio entre o dar e receber -  não se cobra, se escolhe ficar (ou não) com uma pessoa sem reciprocidade. Mas essas relações onde existe o desequilíbrio entre o dar e receber são sofridas, desgastantes... abusivas.

                                                                                    Bert Hellinger

E, para acrescentar o texto da Tânia, já que ele me falta, recorri à teoria sistêmica, especialmente a “Constelação Sistêmica Familiar” de Bert Hellinger. Sabendo que, nos anos 80, época do texto da Tânia, já tínhamos (Tânia e eu),de alguma forma, “superado” essa teoria, pois já naquela época procurávamos entender e praticar as teorias numa perspectiva antropológica-cultural, considerando o ser humano (e as teorias) num contexto bio-psico-social, além de histórico, econômico, político e ideológico. Qualquer teoria vista e praticada, se excluirmos essa análise, corre o risco de se transformar numa prática alienada e reacionária, a serviço do conservadorismo.

Mas vale a pena rever “As Leis Sistêmicas”, chamadas por Hellinger de “Ordens do Amor”, que, segundo ele,  exercem papel fundamental no equilíbrio e manutenção do sistema familiar. Essas ordens são compostas por três leis: Hierarquia, Pertencimento e Equilíbrio de troca. A Lei do Dar e Receber, também chamada de Lei do Equilíbrio de Troca, foi observada nos grupos sociais pelo autor, como algo de fundamental importância para o funcionamento e manutenção dos sistemas de uma forma geral. Uma relação equilibrada, quando ambas as pessoas compartilham, dando e recebendo aquilo que cada um é capaz, é uma relação que promove o amadurecimento, a liberdade e o bem-estar.

Os textos sobre constelações familiares, em geral, primeiro falam sobre a relação com os pais e o sentimento de “gratidão” a ser desenvolvido pelos filhos para essa busca do equilíbrio:

Os filhos só poderão caminhar com equilíbrio e força na vida se aceitarem o fato de que receberam mais dos pais e de seus antepassados por terem lhes transmitido a vida”.

“Ter gratidão pela vida é reconhecer, antes de tudo, que ela chegou a nós por intermédio dos nossos pais e antes deles pelos pais deles e, assim, sucessivamente, independentemente de como eles fizeram ou deixaram de fazer”.

Outra relação abordada é a relação de casal e família, homem, mulher e filhos: a descrição é, sempre, bastante conservadora, não vejo nos textos uma abordagem alternativa de família, tampouco vejo a questão de gênero, no sentido de diferenças culturais fundamentais nas relações citadas.

                                                                                    Friedrich Engels
 

Uma pergunta que podemos fazer: de qual família eles  (Hellinger e seguidores) falam? parece que é da "família margarina", "até que a morte os separe", "in-felizes para sempre". Sabemos sobre a instituição família, para que (e a quem) ela serve, desde anos 80 (não do século passado, mas do século retrasado!), especificamente 1884: "A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado", de Engels. E conversávamos sobre isso nos anos 80 do século passado, Tânia, Gaiarsa, eu e outrxs amigxs psicólogos, confiram no nosso post de 1.março.21: "Conversas SBCenses sobre família e outras relações". Em resumo, precisamos parar de "mitificar" - super valorizar - este nível de relação (família), valorizar na medida certa! E aprender a valorizar outros níveis de relações importantíssimos para o "bem viver", as relações de amizade,  nós costumamos nem aprender a valorizar estas relações!

“Entre casais cuja dinâmica compromete a Lei do Dar e Receber, um dá mais ao outro do que ele ou ela possam retribuir, prejudicando assim, o equilíbrio de troca. Nesse caso quem deu demais, sente-se no direito de cobrar e quem recebeu demais, sente-se na dívida e tem dificuldade de permanecer na relação. Muitas vezes, num relacionamento afetivo quem deve e não consegue pagar, acaba indo embora. Isso diz respeito a tudo que se possa dar ou receber: carinho, cuidado, dinheiro, atenção, compreensão, tempo, proteção, tolerância, etc. Quem deu em excesso também é responsável por sua atitude, pois ao dar demais acabou desrespeitando o outro na sua dignidade”.

Lembro-me com tamanha lucidez, pois que repercute em toda minha vida, anos 80, Tânia e eu conversando sobre gêneros e nossa cultura, (feminina e masculina) enraizada, cravada a ferro e fogo no nosso espírito, liamos Nietzsche: “A cultura é nossa segunda natureza, nossa segunda pele”. Conversávamos sobre a “matriz feminina” do “dar”, do “amor incondicional”, do “ter que ser perfeita para ser amada”, e por aí vai essa construção. Assim como ouvimos, de um colega: “A gente que é homem aprende que trocas de afeto é só receber”, o pleno reconhecimento das diferenças culturais no “dar e receber”. Outrx amigx falava da “síndrome do salvador”, que dá mais do que seria necessário ou é solicitado; e, ainda, da “síndrome do vitimismo”, que está sempre se considerando que deva receber, pois “o mundo lhe deve”; e, por último, não esgotando, outrx amigx que dizia: na reciprocidade não existe espaço para cobrança, pois o que estou dando ao outro estou, ao mesmo tempo, dando a mim mesmx”. E por aí iam nossas reflexões...

E não vejo estes aspectos (gênero, cultura, história, economia, ideologia) sendo abordados pelos psicólogos hellingerianos!!!

É, também, triste constatar a abordagem dos hellingerianos à questão do “equilíbrio no dar e receber” nas relações de trabalho:

Na relação entre empresa e colaborador, a primeira oferece um salário e condições de trabalho compatíveis com as necessidades do segundo. O colaborador, por sua vez, reconhece aquilo que lhe é oferecido e retribui com seu esforço colocando suas competências e habilidades a serviço da empresa que o contratou. O resultado dessa troca equilibrada traz realização e sucesso para ambas as partes.

O contrário, porém, uma relação na qual as partes não cumprem com seus deveres e responsabilidades ou quando uma das partes acaba dando muito mais do que a outra possa retribuir, gera conflitos na relação. Essa relação desequilibrada poderá evoluir para o término da relação de trabalho. Assim, temos as seguintes situações:

1. A empresa deu mais ao colaborador do que ele poderia retribuir. A consequência é que uma vez cobrado e não podendo retribuir, o colaborador se sentirá na dívida para com a empresa.

2. O colaborador deu mais a empresa do que ela poderia retribuir. A consequência é que o colaborador se sentirá desvalorizado e com maiores direitos do que a empresa.

Em ambas as situações o desequilíbrio estará instalado e a demissão será inequívoca”.

Então, voltando às nossas conversas, qualquer ‘teoria’ fora de uma perspectiva antropológica cultural, histórica, social, corre o risco de estar se prestando à reprodução de um modelo dado, que pode estar “invisível”, o modelo capitalista, que ‘penetra’ na nossa forma de “ver” o mundo, de pensar, sentir e agir. E, ao contrário, precisamos pensar|construir outros modelos possíveis, onde inclusive existam mais possibilidades de trocas mais profícuas entre nós, em todos os níveis de relação, desde íntimas até as de trabalho e as de cidadania.

Pensar em como anda o equilíbrio das ações em nossas relações, em todos os níveis (íntimas, pessoais, sociais, públicas), ou seja, desde a menos relação (a dois) até “eu enquanto cidadã(ão)” vem a ser um exercício bastante profícuo para a vida... porém, sempre dentro do contexto político, econômico, social, de gênero, e todas essas variáveis? 

E termino prestando uma homenagem a Tânia, a quem sou extremamente grata pelas trocas:

“Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá. Estou no soprar dos ventos, nas tempestades de verão e nos chuviscos suaves da primavera. Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá. Estou no brilho das estrelas e no cantar alegre dos pássaros. Não chore à beira do meu túmulo, eu não estou lá, eu não parti”. (Mary Elizabeth Frye)

 Tânia, presente!!!