segunda-feira, 23 de junho de 2014

Homenagem do SBC a Rose Marie Muraro




O SBC presta uma singela homenagem a uma grande mulher brasileira, que sempre fez parte da nossa galeria de SBCenses famosas: acaba de falecer aos 83 anos Rose Marie Muraro, patrona do movimento feminista...por mérito e por lei (Lei 11.261 de 30/12/2005 passada pelo Congresso Nacional foi nomeada Patrona do Feminismo Brasileiro). Suas ideias inspiraram também a "teologia da libertação", junto a Leonardo Boff, o que lhe custou a demissão da Editora Vozes e a censura pública por parte da Igreja Católica. “Rose definia sua luta como uma luta por um mundo solidário a tod@s, o que inspira todas as lutas por direitos humanos. Era clara em afirmar que não se trata de um conflito entre lados opostos, como os falastrões acusam para minimizar a questão”, disse o deputado federal Jean Wyllys, no face.

Rose Marie Muraro (Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1930 - Rio de Janeiro, 21 de junho de 2014) nasceu praticamente cega. Há pouco tempo desafiou os próprios limites quando, aos 66 anos, recuperou a visão com uma cirurgia e viu seu rosto pela primeira vez. "Sei hoje que sou uma mulher muito bonita."

Oriunda de rica família do Brasil nos anos 1930/40, aos 15 anos, com a morte repentina do pai e consequentes lutas pela herança, rejeitou sua origem e dedicou o resto da vida à construção de um novo mundo: mais justo, mais livre. Nesse mesmo ano conheceu Dom Helder Câmara e se tornou membro de sua equipe. Os movimentos sociais criados por ele nos anos 40 tomaram o Brasil inteiro na década seguinte. Nos anos 60, o golpe militar teve como alvo não só os comunistas, mas também os cristãos de esquerda.

A Editora Vozes foi um capítulo à parte na vida de Rose. Lá, trabalhou com Leonardo Boff durante 17 anos e das mãos de ambos nasceram os dois movimentos sociais mais importantes do Brasil, no século XX: o movimento de emancipação das mulheres e a teologia da libertação - até hoje, base da luta dos oprimidos. 

Para Boff, Rose Marie estabeleceu inovações analíticas “sem precedentes” sobre o estudo da mulher. Parte significativa de seus estudos foram reunidos no livro “Sexualidade da mulher brasileira: corpo e classe social no Brasil” (1996), considerado um clássico. — Ela introduziu a questão da classe social no estudo de gênero, foi a primeira mulher a estudar de forma sistemática a sexualidade da mulher brasileira a partir da situação ou classe social. — Ela inaugurou esse discurso, nem Freud ou qualquer analista europeu atingiram esse ponto. Tudo isso foi resultado de uma ampla e minuciosa pesquisa de campo, diz Boff.
 
Juntos, Rose Marie e Boff assinaram, em 2002, o livro “Masculino / Feminino”, onde investigaram juntos a relação entre os gêneros. — A Rose elevou a questão do gênero a um novo patamar, pois não considerava o masculino e o feminino como realidades que se contrapõem, mas como instâncias fundamentais, onde cada um é completo em si mas voltado para o outro, numa relação de reciprocidade e construção conjunta — diz ele ainda.
 
Nos anos 80, Rose e Boff vivenciaram a virada conservadora da Igreja. E em 1986, foram expulsos da Vozes, por ordem do Vaticano.  Motivo: a defesa da teologia da libertação, no caso de Boff e a publicação, por Rose, do livro Por uma erótica cristã.

Foi eleita, por nove vezes, A Mulher do Ano. Em 1990 e 1999, recebeu, da revista Desfile, o título de Mulher do Século. E da União Brasileira de Escritores, o de Intelectual do Ano, em 1994. O trabalho de Rose, como editora, foi um marco na história da resistência ao regime militar. Devido a este trabalho recebeu do Senado Federal o Prêmio Teotônio Vilela, em comemoração aos 20 anos da anistia no Brasil. Foi também palestrante nas universidades de Harvard e Cornell, entre tantas outras instituições de ensino americanas, num total de 40. Editou até o ano 2000 o selo Rosa dos Tempos, da Editora Record. Atualmente vinha dedicando-se ao Instituto Cultural Rose Marie Muraro, fundado em 2009.

Ao longo da vida, escreveu 44 livros — como “Os seis meses em que fui homem” (1993), “Por que nada satisfaz as mulheres e os homens não as entendem” (2003) — que venderam mais de um milhão de exemplares. Em 1999, ela contou sua história na autobiografia “Memórias de uma mulher impossível”, uma das três únicas autobiografias de mulheres da História do Brasil. Em trecho de documentário, lançado em 2009, Rose Marie explica: “O assunto mulher era um assunto sem importância para os militares e para a sociedade como um todo. O pessoal não sabia da existência do feminino. Ah, essa daí lida com mulher, essa daí não é perigosa, tem filhos pequenos, só tá na igreja, então essa daí não vamos perseguir. Já nos anos 60 eu dizia: eu também quero pôr fogo no mundo. Fui pôr fogo no mundo, fui ser editora. E eu vi que eram os livros que punham fogo no mundo”.
 
Então, gente... SBCenses... de todos os gêneros... em qualquer livro que você ler da Rose Marie você terá uma análise aprofundada da história humana, da sexualidade, da mulher. Peguei uma sinopse do “Feminino e masculino – Uma nova consciência para o encontro das diferenças”, publicado em 2002 e escrito por ela junto com  Leonardo Boff, para dar vontade de ler:  “...neste livro, Leonardo Boff e Rose Marie Muraro fazem uma análise profunda da sexualidade e mostram como os conflitos entre os gêneros podem levar à destruição da humanidade. É preciso estabelecer um convívio pessoal mais harmônico entre homens e mulheres, sem competição nem violência, e criar uma nova consciência, mais solidária. 'Feminino e Masculino' é uma obra provocadora, que questiona as grandes teorias patriarcais, a psicanálise freudiana e até a teologia produzida a partir do ponto de vista masculino. 

“O homem vê a mulher como se estivesse num frigorífico: um pedaço de nádegas, olhos grandes, cabelos pretos, seios fartos. Ele enxerga a mulher aos pedaços.”


 E mais um, também para instigar a leitura, acho que o seu último livro, publicado em 2011, trata-se de “Reinventando o Capital/dinheiro”
 Reinventando o...

Em Reinventando o capital/dinheiro Rose Marie oferece aos leitores leigos em economia uma leitura simples e direta sobre a história do capital/dinheiro. Ela mostra como está ocorrendo a transição entre o sistema capitalista e o novo sistema que a era da informação exige, assim como a situação entre economia e ecologia. E, de uma forma positiva e corajosa, aponta como é possível mudar a lógica da economia, do estado, das culturas e, principalmente, a lógica monetária, criando o dinheiro sustentável e solidário.A leitura de Reinventando o capital/dinheiro desmistifica o complicado mundo da economia e nos faz pensar que é possível mudar o panorama de crise atual se investirmos em valores sociais que possibilitem a criação de um novo paradigma, onde o altruísmo, a cooperação, a reciprocidade e a consciência ecológica ganhem lugar de destaque.
The Malleus...
 
Agora, merece atenção especial uma introdução, escrita por ela,  numa das últimas edições do livro “Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras”, conhecem este livro? Não? Toda mulher deveria conhecer e, mais ainda, a “BREVE INTRODUÇãO HISTORICA”  que a nossa homenageada faz nesta última edição publicada do mesmo. Trata-se de uma esplêndida aula de história.


Um pouco sobre o livro: escrito em 1484 pelo inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger, o Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum) é um dos livros mais importantes da cultura ocidental, tanto para os leitores que se interessam pela história quanto para aqueles que estudam a história do pensamento e das leis. Documento fundamental do pensamento pré-cartesiano, bem como um dos mais importantes depositórios das leis que vigoravam no Estado teocrático, revela as articulações concretas entre sexualidade e poder, e por isso é uma peça única para todos aqueles que estudam a profundidade da psique humana e o funcionamento das sociedades. Durante quatro séculos este livro foi o manual oficial da Inquisição para caça às bruxas. Levou à tortura e à morte mais de 100 mil mulheres sob o pretexto, entre outros, de "copularem com o demônio". Esse genocídio foi perpetrado na época em que formavam as sociedades modernas europeias. Uma das consequências, apontadas pelos especialistas, foi tornar dóceis e submissos os corpos das mulheres 

Aqui, pequenos trechos da Introdução Histórica, prá acabar com essa péssima tendência que temos de “naturalizar” concepções completamente definidas historicamente, portanto, possíveis de serem mudadas. Vocês acham que o tal Malleus Maleficarum (escrito em 1484), não tem mais a ver com os nossos dias? Ledo engano... leiam ai...

“Era essencial para o sistema capitalista que estava sendo forjado no seio mesmo do feudalismo um controle estrito sobre o corpo e a sexualidade... Começa a se construir ali o corpo dócil do futuro trabalhador que vai ser alienado do seu trabalho e não se rebelará. A partir do século XVII, os controles atingem profundidade e obsessividade tais que os menores, os mínimos detalhes e gestos são normatizados. 

...vemos assim que na mesma época em que o mundo está entrando na Renascença, que virá a dar na Idade das Luzes, processa-se a mais delirante perseguição às mulheres e ao prazer. ...se nas culturas de coleta as mulheres eram quase sagradas por poderem ser férteis e, portanto, eram as grandes estimuladoras da fecundidade da natureza, agora elas são, por sua capacidade orgástica, as causadoras de todos os flagelos a essa mesma natureza. Sim, porque as feiticeiras se encontram apenas entre as mulheres orgásticas e ambiciosas, isto é, aquelas que não tinham a sexualidade ainda normatizada e procuravam impor-se no domínio público, exclusivo dos homens". 

Assim, o Malleus Maleficarum, torna-se a testemunha mais importante da estrutura do patriarcado e de como esta estrutura funciona concretamente sobre a repressão da mulher e do prazer. 

De doadora da vida, símbolo da fertilidade para as colheitas e os animais, agora a situação se inverte: a mulher é a primeira e a maior pecadora, a origem de todas as ações nocivas ao homem, à natureza e aos animais. 

Durante três séculos o Malleus foi a bíblia dos Inquisidores e esteve na banca de todos os julgamentos. Quando cessou a caça às bruxas, no século XVIII, houve grande transformação na condição feminina. A sexualidade se normatiza e as mulheres se tornam frígidas, pois orgasmo era coisa do diabo e, portanto, passível de punição. Reduzem-se exclusivamente ao âmbito doméstico, pois sua ambição também era passível de castigo. O saber feminino popular cai na clandestinidade, quando não é assimilado como próprio pelo poder médico masculino já solidificado. As mulheres não têm mais acesso ao estudo como na Idade Média e passam a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então totalmente introjetados por elas.

É com a caça às bruxas que se normatiza o comportamento de homens e mulheres europeus, tanto na área pública como no domínio do privado.
A sociedade de classes que já está construída nos fins do século XVIII é composta de trabalhadores dóceis que não questionam o sistema. 

E a nossa homenageada termina sua Breve História fazendo uma análise das Bruxas atuais: “...agora, mais de dois séculos após o término da caça às bruxas, é que podemos ter uma noção das suas dimensões. Somente nos tempos de hoje é que estão se rompendo dois tabus que causaram a morte das feiticeiras: a inserção no mundo público e a procura do prazer sem repressão. A mulher jovem hoje liberta-se porque o controle da sexualidade e a reclusão ao domínio privado formam também os dois pilares da opressão feminina. 

Assim, hoje as bruxas não podem ser queimadas vivas, pois são elas que estão trazendo pela primeira vez na história do patriarcado, para o mundo masculino, os valores femininos. Esta reinserção do feminino na história, resgatando o prazer, a solidariedade, a não-competição, a união com a natureza, talvez seja a única chance que a nossa espécie tenha de continuar viva. 

Creio que com isso as nossas bruxinhas da Idade Média podem se considerar vingadas! Diz Rose, otimista...

Vá em paz, grande SBCense. Você deixou um tesouro para nós: sua luta e a herança de tudo o que você inspirou.

Beijos às bruxas e bruxos...

SantuzaTU