quinta-feira, 18 de maio de 2023

Conversas SBCenses: sobre RECONHECIMENTO

 


E aproveitamos o "embalo" do Todorov para praticar outro TAP: 

O livro A vida em comum  integra a Coleção Todorov, Simbolismo e interpretaçãoTeoria da literaturaTeorias do símbolo,  Teoria da literatura, ...


Neste ensaio o filósofo búlgaro percorre um único domínio do vasto campo da Antropologia para estudar o ser humano a partir de um ângulo incomum. Ele busca compreender não o lugar que o homem ocupa na sociedade, mas, ao contrário, o lugar que a sociedade ocupa no homem: 

Em que consiste, para o indivíduo, a exigência de conhecer apenas uma vida em comum? Todorov almeja melhor compreensão do objetivo da existência humana. E demonstra que é preciso ir além do que se percebe a partir de concepções, correntes (que podem ser antagônicas), carregadas de conceitos antropológicos subjacentes. Tais concepções induzem a pensar que o objetivo da existência humana é o desenvolvimento do indivíduo, a realização de si ou o progresso da sociedade, ainda que este implique em sacrifício de certas vantagens do indivíduo. Para Todorov, estas duas versões do ideal humano participam de uma mesma concepção do homem, que o representa em antagonismo com seu meio social, tornando necessário escolher: o indivíduo ou a sociedade. Ele professa, porém, que 'o si mesmo' existe apenas na e por sua relação com os outros e "intensificar a troca social significa intensificar o si mesmo": "Tomar consciência de que o objetivo do desejo humano não é o prazer, mas a relação entre os homens, pode, ao mesmo tempo, nos permitir reconciliar-nos com situações que pareceriam insatisfatórias sob outros critérios e agir de forma a melhorar a vida da sociedade de modo duradouro e geral".

Interessado especialmente em Rousseau, para quem 'a vida em sociedade é uma vocação humana, embora, em aparente contradição, ele vivesse solitário', Todorov dialoga nesta obra com pensadores de várias épocas, como Hegel,  Montaigne, Kant, Nietzsche, La Rochefoucauld e Freud. Ele recorre ainda, 'mais do que habitualmente', à literatura: "As verdades desagradáveis, para o gênero humano ao qual pertencemos, ou para nós mesmos, têm maiores possibilidades de conseguir exprimir-se em uma obra literária do que em uma obra filosófica ou científica".

Diz-se que o homem é um ser social. Mas o que exatamente significa essa frase? Quais as consequências desta observação aparentemente banal, que não há um eu sem um você? O ser humano estaria condenado à incompletude? Neste livro não há, como avisa o autor, um discurso fechado em certezas ou verdades absolutas, mas um amplo vasculhar sobre a questão.

. Depois desses passos, fomos à escolha da UNIDADE SE LEITURA, já "conversando" com o autor, com outros autores, e entre nós:

A VIDA EM COMUM - CAP III O RECONHECIMENTO E SEU DESTINO

Todorov, neste capítulo,  começa citando Rousseau, Hegel e Adam Smith, autores que situam a questão do reconhecimento como um dos processos elementares - primeiro porque o reconhecimento marca a entrada do indivíduo na existência humana. Mas apresenta também uma singularidade estrutural, surgindo, de certa maneira, como o duplo obrigatório de todas as outras ações. 

Os exemplos são parecidos com nosso grande escritor G. Rosa: "sou quando divirjo". Quando uma criança se reconhece como sujeito de suas próprias ações, se vê como um ser que existe... e é quando ela é aprovada ou desaprovada - reconhecida - ou não.

A questão do reconhecimento passa pelas coisas mais simples, como a maneira como me visto  - "escolho minhas roupas em função dos outros, ainda que seja para dar a entender que eles me são indiferentes" ... e atravessa todos os níveis de relação (profissional, relações pessoais, amor, amizade - até o nível público).  

Imagine o indivíduo que investiu o essencial da sua demanda de reconhecimento no domínio público (servir à sociedade e ao Estado), mas dele não recebe mais nenhuma atenção... descobre-se, repentinamente, privado de existência.

O reconhecimento, Todorov nos mostra, constrói-se como uma relação assimétrica - o agente confere o reconhecimento - o paciente o recebe.

- A mãe e o pai reconhecem o filho\filha. 

-  No entanto, podemos pensar também no reconhecimento INDIRETO  do agente: sentir-se necessário por creditar reconhecimento ao outro faz com que nos sintamos reconhecidos (inclusive na superioridade).

- E os filhos reconhecem pais e mães...

(aqui lembramos de exemplo de mulher, mãe, que descobriu num processo terapêutico, que "dependia da dependência dos filhos" para dar sentido à sua vida. E, por isso, os mantinha infantilizados. Dá pra entender COMO nós (mães - e pais) devemos "dar conta" da própria vida e, por consequência, "permitir que os filhos cresçam, sejam o que quiserem ser...)

Uma pergunta do autor: a aspiração ao reconhecimento é verdadeiramente universal ou é uma característica da nossa sociedade ocidental? Resposta: é universal e constitutivo da humanidade o fato de entrarmos, desde nosso nascimento, em uma rede de relações inter-humanas, portanto, em um mundo social; é universal almejarmos o sentimento de nossa existência. Os meios que nos permitem ter acesso a esse sentimento é que variam de acordo com as culturas, com os grupos, com os indivíduos. Do mesmo modo que a fala é universal, enquanto que o sentido que damos às palavras ou significados são aprendidos. 

Todorov lembra de Hegel, ligando a demanda de reconhecimento com a luta pelo poder:  ... de fato, numa relação assimétrica, onde a superioridade ou a inferioridade dos parceiros é dada de antemão,  cada um deles não deixa de desejar a aprovação do olhar do outro... como uma criança com seus pais. 

Aí a gente cresce ... e este comportamento é retomado em outras relações ... se não caminhamos no sentido do amadurecimento necessário, ou seja,   continuarmos com o desejo do reconhecimento - já que esse desejo é inerente ao ser humano, porém, sobrepondo ao mesmo o desejo de ser livre - livre para pensar, sentir, agir... aí estaremos nos movimentando para a construção (para a vida toda) da nossa identidade autônoma, a "construção" da resposta à pergunta quem sou eu, meus objetivos, ideais, valores...

Como "retomado em outras relações"? Sim... "vira e mexe" caímos na armadilha de ser do jeito que o outro quer que eu seja a fim de sermos reconhecidxs, amadxs, estimadxs... e, então, perdemos nossa liberdade, nos transformamos em escravos do outro. 

"Aquele que treme diante da morte vira escravo"... morte, aqui, uma metáfora do não reconhecimento. Quantas vezes abrimos mão da nossa liberdade,  sucumbimos ao desejo de ser reconhecido e viramos escravos, nos transformando "naquilo que o outro quer que eu seja"!!! E quantas vezes confundimos isso com amor!!!

Então ... o tempo todo estamos vivenciando a dialética senhorxescravo... e a consciência livre.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel filósofo germânico (1770 – 1831) 

Um pouco sobre nossa compreensão de Hegel: para ele, a História é a história das relações sociais, Esta história começa quando existem dois desejos humanos confrontados. O que o ser humano deseja é ser desejado por outro ser humano. Isso significa ser reconhecido pelo outro. O ser humano quer que os outros lhe atribuam um valor destacado, um valor próprio, que o diferencie das outras pessoas. Isto é o que define a condição humana. Portanto, segundo Hegel, o mais característico do ser humano é se impor diante dos outros. Só quando o outro indivíduo o reconhece como alguém autônomo cria-se a autoconsciência. Por sua vez, as autoconsciências constroem lutas entre os sujeitos: 

- eu, sendo sujeito, quero ("inconscientemente") te submeter, te tornar escravo... você luta para se afirmar, ser sujeito, e também quer me submeter...  dessa luta entre dois sujeitos (que, ao mesmo tempo, querem ser senhor, submeter x outrx... e se transformam em escravos para serem senhor) vai acontecer "algum" tipo de relação, inclusive a "não relação"... e o tempo todo estamos vivendo relacionalmente essa dialética: "o senhor é escravo do escravo", e "ao escravo falta a consciência, por isso seu fazer é para o senhor, para mudar de posição, ser o senhor"... com a consciência caminhamos para a superação dialética... o ser livre, ser sujeito... que não é estático, definitivo... melhor dizendo, seria a consciência que nos permite "ver" essa "cobra que morde o rabo" e "virar a chave" para relações mais simétricas e mais bonitas.

- Não podemos (e não devemos) contar com a certeza do reconhecimento dx outrx - nem das mães, como querem que acreditemos. Imaginem numa relação íntima:  um dos pares só contará com a certeza do reconhecimento do outro se o transformar num "objeto", num ser domável e previsível. E esse movimento, embora um tanto comum, costuma "acabar com o amor", petrificá-lo, como já conversamos com o filósofo Francesco Alberoni no seu livro "Enamoramento e amor". 

Na certeza do amor (reconhecimento) podemos "tratar mal" as pessoas que mais amamos...  "A intimidade gera desprezo", "aprendemos" isso, faz parte da nossa cultura, como Erving Goffman diz no seu livro "A representação do eu na vida cotidiana". Mas nós acrescentamos: caminhando para a simetria nas relações (até com a mãe) a intimidade pode (e deve), também,  gerar delicadezas, admiração, carinho, enfim, amor... 

Do outro lado da mesma moeda temos a possibilidade de manipulação desse desejo de ser reconhecido, amado... muitas pessoas usamos ("de inconscientes o inferna está cheio", como diz um SBCense querido) de mecanismos -  como, por exemplo, seduções desnecessárias se queremos uma simetria na relação - que podem ser confundidas com o que podemos falar da manutenção de "delicadezas relacionais". Necessário distinguirmos, tanto na posição de agente como de recebedores, essas manipulações (ou delicadezas).

Ainda, outra manipulação (do desejo de reconhecimento) possível: fazer tudo para o outro com o objetivo de controlá-lo. "Ingrato é aquele que não se rende aos meus favores", já dizia Nietzsche. Filho ingrato, marido ingrato, mulher egoísta, funcionário desobediente... quem nunca ouviu, ou falou, ou pensou isso? 

Ainda, quando caminhamos da necessidade de reconhecimento para o desejo de ser livre, aprendemos a receber NÃOs, assim como dizer NÃOs aos outros dizendo SIMs para nós mesmos. Pois não topar o risco de dizer sim a mim mesmx e\ou de receber um não dx outrx me faz cair, retroceder, voltar a ser escravo. Precisamos aprender que receber um "não livre" pode me deixar triste num primeiro momento - mas me deixa livre, e isso é bom pra vida. 

Voltando ao autor da nossa unidade de leitura: 

Ele nos coloca duas formas de reconhecimento:

1. reconhecimento de conformidade - o reconhecimento por se conformar o máximo possível, aos usos e normas apropriadas à sua condição . ex.: no trabalho, se a sociedade já reconhece meu trabalho aparece menos a necessidade do reconhecimento de distinção. Apenas contento-me com o reconhecimento de conformidade, cumpro meu dever, sirvo à minha empresa. A simples submissão às regras já me traz uma imagem positiva de mim mesmo - eu existo - não desejo nem preciso ser excepcional para obter o reconhecimento.

2. reconhecimento de distinção (o mais forte, o mais belo, o melhor)

- o desejo de reconhecimento é igual nos dois tipos: a satisfação obtida na conformidade explica os sentimentos comunitários - por outro lado, o reconhecimento pela distinção gera o orgulho pessoal. As duas formas de reconhecimento são, muitas vezes, conflituosas: a distinção favorece a competição, a conformidade está do lado do acordo.

- Refletimos sobre "TUDO QUE ME SALVA PODE ME MATAR"... daí é que precisamos sempre estar atentos e fortes... para distinguir o que me prende, me torna escravo, e o que abre caminho para "ser livre"...

Outro aspecto que o autor aborda é sobre o desenvolvimento do reconhecimento (não sobre sua forma): primeiro precisamos do reconhecimento da nossa existência, o reconhecimento no sentido restrito; e, segundo, a confirmação do nosso valor (positivo ou negativo)

- Exemplo.: falem mal mas falem de mim - o desprezo é melhor do que se ignorar a pessoa... diferença entre rejeição e negação, desdém e ódio (ser detestado não desencadeia a morte do eu. "O ódio por alguém constitui sua rejeição: pode, no entanto, reforçar seu sentimento de existência; mas ridicularizar uma pessoa, não levá-la a sério, condená-la ao silêncio e à solidão, é ir muito mais adiante: ela se vê ameaçada de tornar-se nada".

"NÃO IMAGINE QUE TE QUERO MAL, APENAS NÃO TE QUERO MAIS..."

"Aceitar as situações mais humilhantes valem mais do que a falta de reconhecimento: "a escravidão torna-se desejável, se nos assegurar o olhar do outro"...

- Nessa questão, ou dilema: SER REJEITADO X SER IGNORADO, Todorov coloca a metáfora da Raposa e das uvas, uma lição bastante interessante... "A raposa pula, pula, para alcançar o cacho de uvas que ela tanto desejava... quando percebe que não conseguiria, ela abandona o objetivo com o argumento "estão verdes".

- E finalmente, Todorov reflete que podemos nos tornar a única fonte de reconhecimento (autismo, orgulhoso) - e ele cita o exemplo dos artistas,  o conflito entre "uma auto estima inquebrantável", e "a dependência do reconhecimento do público"... 

"Em nossos dias o sucesso é um valor social que procuramos ostentar - o prestígio não é o mesmo que a glória"

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SITUAÇÕES ASSIMÉTTRICAS E A BUSCA DE RELAÇÕES IGUALITÁRIAS (SIMÉTRICAS)


E, finalmente, Todorov nos mostra como o reconhecimento constrói assimetrias: queremos reconhecimento dos superiores, mas também dos inferiores - o senhor precisa do seu servo - (professor do aluno, etc.) Porém, nas situações igualitárias, simétricas, aparece com facilidade a rivalidade.

À primeira vista, a ideia do autor de associar rivalidade com relações simétricas nos causou perplexidade e resistência: COMO!..., se acreditamos que a busca de relações simétricas significa amadurecimento emocional e relações mais bonitas e prazerosas!!!

Porém, com o "exercício de paciência nietzschiana diante do que nos é mais antípoda", "ruminamos" sobre isso... com a ajuda preciosa do Hegel, tentando sair do "raciocínio maniqueísta" e exercitar a "inteligência dialética" chegamos a algumas reflexões que nos ajudam no caminho de "virar a chave":

. primeiro, como é mais fácil (e perigoso... e mais comum) fazermos, relacionalmente, o raciocínio maniqueísta (ou-ou) associado à idealização do amor - ou seja, ou amo incondicionalmente... ou odeio, ou desprezo...
 
. ora, somente fazendo o exercício de auto observação, constatamos que um sentimento não acontece de maneira "pura", está sempre permeado de inúmeras outras emoções. E as mesmas quando são negadas, reprimidas, é que podem destruir o amor...

. portanto, o movimento de humanização do amor, de todos os amores possíveis, em todos os níveis de relação... é que pode nos trazer, dialeticamente, a possibilidade de considerarmos a construção de relações simétricas... ao mesmo tempo que tomamos consciência da possibilidade, sempre, da rivalidade, ou seja, de estarmos praticando a relação senhor-escravo...

. ou seja, já que o reconhecimento é universal e inegável, durante toda a vida e em todas as relações, e essa "necessidade" começa assimetricamente, nas nossas primeiras relações mãe,pai-filho - e já que o reconhecimento nos faz reproduzir a relação senhor-escravo (tentar submeter o outro e|ou ser submetido)... e essa relação é tão contraproducente para uma vida "bonita", tão livre quanto possível ... 

. e já que, para nós, nosso amadurecimento se dá no sentido de  buscar relações simétricas...

. concluímos com a indagação: COMO estarmos sempre construindo no sentido da SIMETRIA, sem negar, sem estar, também, sempre, considerando essa nossa humanidade que é o desejo de ser reconhecidx?

. E terminamos por aqui, com mais indagações do que com respostas. Apenas com a convicção:

AMAR E SER LIVRE... HUMANAMENTE...  ESSA É NOSSA UTOPIA... 

Enfim... uma boa "virada de chave"...



Abraços carinhosos...





 


6 comentários:

  1. Muito bom, Santuza! A sua leitura, sobre esse livro do Todorov, vai muito além do que eu percebera, quando terminei de lê-lo e fiquei muito impressionado com a forma como 0ele trata as relações humanas. A minha primeira conclusão foi a de que não há paz em qualquer tipo de relacionamento. Todavia, a sua interpretação me abre uma fresta por onde vislumbro um pequeno facho de luz. A partir de certa altura do livro, comecei a pensar que fosse um livro de psicologia. Mais precisamente, quando ele descreve as fases do bebê, a partir do nascimento e a forma como interage com o mundo à sua volta: mamãe, papai... Depois, quando começa a discutir, especificamente, o reconhecimento enquanto condição de existência, enxerguei nuances de filosofia, mas quando você começou a problematizar as formas de conhecimento, a partir das diversas manifestações humanas, identifiquei aspectos importantes da psicologia e não tive dúvidas de que essa é a principal abordagem do ensaio, para, a partir do tópico final: Estrutura da Pessoa, concluir que o livro, na verdade, mistura todas essas concepções de estar no mundo, o que a torna, a meu ver, uma obra fundamental, para entendermos como funciona a sociedade humana e o que precisamos modificar no caminho que viemos percorrendo ao longo dos últimos milênios.

    Juraci Bergamini

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    1. Obrigada pelo comentário Juraci
      Santuza Tu

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  2. Olá Santuza! Rica contribuição seu texto!! Conteúdo para todo o tempo!!Abraços!

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  3. Nossa! Que reflexão intensa sobre conceitos complexos! Esclarecedor. Vivificante!

    Marluce Cerqueira

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  4. A interdisciplinaridade permeia todo este ensaio...
    Que "delicadeza" de escritura....
    PARABÉNS...

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