quinta-feira, 8 de julho de 2021

Novas conversas: AMÉLIA, EMÍLIA, MARINA

 

“Somente porque me pintei você se zangou... Mas,  nunca, um dia sequer, você me apoiou. Só disse que está tudo errado pra mim... Eu digo e repito comigo: agora é o fim. Aborreceu-se, se zangou e não quis perdoar. E ainda diz por aí que eu não arranjo outro igual. Mas eu arranjei um melhor. Que disse: se pinte a vontade. E, agora, só resta dizer que você já vai tarde.” (depoimento de  SBCense que se diz Marina empoderada, metida).

E nesse rumo caminharam as nossas conversas: 

. Em quase todas as sociedades, de todos os tempos, o homem macho depositou sua autoridade sobre as mulheres. Por meio da opressão, eles conquistaram o direito – culturalmente legitimado – de exercerem a supremacia masculina e promover as desigualdades de gênero, de confinar as mulheres nos espaços pri­vados, lugar essencialmente marcado pela “violência simbólica” a que fomos (nós, mulheres) – e ainda somos – submetidas, e, sobretudo, criar subsí­dios para que se propagasse um modelo de educa­ção "androcêntrica", machista,  que, de alguma forma todxs nós reproduzimos. Lendo o sociólogo francês Pierre Bourdieu, formulei essa ideia para conversarmos.

 


. Continuando nossa ideia,  temos, em cada momento histórico, um esquema de representação das mulheres por meio da cultura e das artes, que reafirmam, de diferentes maneiras, a inferioridade de tudo o que está relacionado à ideia de “feminino”.

 . A partir da ascensão da burguesia e do aparecimento da sociedade industrial e do capitalismo é que vemos o confinamento da mulher à esfera doméstica – casa, marido, filhos –, incluindo-se aí um novo conceito de maternidade e todas as consequências dele decorrentes. E isso foi considerado um fato natural até bem pouco tempo atrás, 50, 60, 70 anos,  quando começou a ser questionado pelos movimentos feministas.

 . Porém, embora o confinamento das mulheres nos espaços privados sejam produtos da burguesia ocidental, podemos ir muito atrás na história, para perceber e entender como a mulher foi sendo concebida, e como as artes em geral contribuíram para a construção dessa imagem. 

Conhecemos, na cultura grega, mulheres transgressoras (Jocasta, Medéia, Antígona,...), quase sempre consideradas tiranas, perversas, dissimuladas, e todas com final trágico, de certa maneira, justificando atitudes transgressoras como impróprias para um sexo subalterno e para aquele tempo. E nos perguntamos se ainda não é um tanto assim...                                                                                         

 


 





. Vamos nos lembrar do raciocínio manique­ísta relacionado à mulher: boa ou má, anjo ou demônio, bela ou bruxa, entre outras dicotomias disseminadas no imaginário social, que passam a se proliferar logo no princípio da era cristã, momento em que surge o mito bíblico da Eva, em contraposição à figura da Ave Maria. As mulheres ideais, as virgens, se aproximam da “Virgem Maria” e as mulheres não castas se identificam com Eva. Havia, por outro lado, a possibilidade de uma mulher considerada pecadora arrepender-se de seus atos contrários aos preceitos religiosos. Desse modo, recusaria os prazeres voluntariamente, como forma de purificação.

 

 


. Lilith, a lua negra, está relacionada às bruxas da Idade Média. 

. Escrevemos sobre ela, vejam nosso post de 07 de março de 2016.

 


. A partir do século XV, no apogeu da Idade Média, o comportamento imposto e esperado das mulheres se alinhava à ideologia burguesa e ao con­ceito de matrimônio. Com as influências do período romântico, o próprio romantismo começa a ser usado como instrumento cultural para impedir a mulher de conhecer sua verdadeira condição de sexo oprimido. Maria Lucia Rocha Coutinho tem um livro muito bom, "Tecendo por trás dos panos":

 


 . As obras do Romantis­mo brasileiro são exemplares no sentido de dissemi­nar uma imagem feminina ligada quase sempre à fra­gilidade, ao silenciamento, e mostrarem, sobretudo, como somos educadas para o casamento.

Bourdieu, em A dominação masculina (2007), diz que, para as mulheres, um univer­so restrito seria suficiente para suas principais funções: casar, dar à luz e cuidar dos filhos e do marido, para que este pudesse ven­der sua mão-de-obra ou explorar trabalhadores em suas fábricas e indústrias. 


. E estes lugares definidos culturalmente para as mulheres perpetuaram-se no imaginário da população brasileira, e temos a arte,  de uma maneira geral, e a música, particularmente, para reforçar os estereótipos, de certo modo, "moldar as matrizes femininas", como também as masculinas,  de modo que,  atualmente,  ainda é pos­sível, e não incomum,  perceber, nas atitudes masculinas, de uma maneira às vezes sutil, às vezes escancarada, "resquícios" do desejo de dominação. Por isso foi muito importante e revelador essa perspectiva histórica e esses autores tão importantes na nossa conversa.

Chegamos, então, ao século XX... E ao samba... e "como" o lugar da mulher era colocado pelos sambistas homens. E voltamos aos três sambas apresentados no nosso post do dia 03 de junho 2021:

                AMÉLIA... EMÍLIA... e MARINA

Na década de 40 e 50 tínhamos o rádio como principal veículo de comunicação, a TV estava começando. Nessa época é que, também, começou um tipo de produção de músicas para "consumo imediato", e as letras dessas músicas estão propensas a refletir um universo do senso comum e repro­duzir uma ideologia não consistente ou, no mínimo, que agrade a determinado público ou que apenas reproduza os valores vigentes na sociedade da época. Então, esses três sambas são composições de uma década em que o rádio exercia importante papel na vida dos/as brasileiros/as. 

  • Em AMÉLIA, na primeira estrofe, temos a construção do estereótipo de uma mulher exigente, inconsciente, déspota, ambiciosa, entre outros adje­tivos. O homem é colocado como  vítima no relacionamento e a mulher é revestida da condi­ção de megera e, ainda, fútil. "Se em princípio é possível fazer uma leitura dessa imagem feminina como uma ruptura com o padrão de mulher idealizada, logo se desmancha essa ideia com o retorno ao status quo no momento em que o interlocutor promove a inferioridade dessa mulher". Não temos aí o conceito maniqueísta: Eva-Maria, puta-pura? Até mesmo o resgate da mulher na cultura grega? Compartilhando, na nossa conversa, ideias muito produtivas de texto de duas autoras: Mirele Carolina Werneque Jacomel e Cristian Pagoto "O STATUS QUO FEMININO NO SAMBA DE AUTORIA MASCULINA".
  • Já a EMÍLIA, fantasiada pelo compositor, não seria apenas uma mão-de-obra a seu serviço? Isso se comprova com o fato de não haver mencionado no texto qual­quer sentimento relacionado a amor ou, no mínimo, o compa­nheirismo por parte dele.
  • E a música MARINA conta a história de um homem fragilizado diante da força sedutora da sua mulher, que se vê no direito "natural" de controlá-la pelo "emburramento". Ficou de mal, como uma criança de três anos.

. Enfim, três mulheres idealizadas... como na ideologia do "amor romântico". E, da idealização para o desprezo, é um "pulinho de nada". Falta, na verdade, a condição HUMANA de admiração.

. E não podemos esquecer, também, dos danos causados às mulheres da segunda metade do século passado... E, ainda, nas mulheres contemporâneas... do sofrimento que todas nós tivemos na "incorporação" das Marinas, Emílias e Amélias, como o depoimento da mulher que ensejou nossas conversas, nosso post de 3 de junho passado.

. E a representação de estereótipos femininos em músicas populares tende a repetir o esquema binário idealizada-desprezada, boa-má, puta-pura. E nós, expectadores-ouvintes, nos tornamos “co-autores” das músicas, compartilhando ideologias, a partir do momento em que “consumimos” as músicas. Penso que a música é uma das re­presentações artísticas que mais se aproximam de seu público, e tal repercussão se transforma em um mecanismo depositário das ideologias que estão nas letras.

. A arte forma... e|ou deforma...

Por isso temos, também, as músicas que chamamos de "libertadoras", principalmente da segunda metade do século passado, e até os nossos tempos.

E, então, cantamos duas delas como exemplo:

Desconstruindo Amélia, canção de Pitty

Já é tarde, tudo está certo
Cada coisa posta em seu lugar
Filho dorme ela arruma o uniforme
Tudo pronto pra quando despertar
O ensejo a fez tão prendada
Ela foi educada pra cuidar e servir
De costume esquecia-se dela
Sempre a última a sair

Disfarça e segue em frente
Todo dia até cansar
E eis que de repente ela resolve então mudar
Vira a mesa
Assume o jogo
Faz questão de se cuidar
Nem serva, nem objeto
Já não quer ser o outro
Hoje ela é o também

A despeito de tanto mestrado
Ganha menos que o namorado
E não entende porque
Tem talento de equilibrista
Ela é muita se você quer saber
Hoje aos 30 é melhor que aos 18
Nem Balzac poderia prever
Depois do lar, do trabalho e dos filhos
Ainda vai pra nigth ferver

Disfarça e segue em frente
Todo dia até cansar
E eis que de repente ela resolve então mudar
Vira a mesa
Assume o jogo
Faz questão de se cuidar
Nem serva, nem objeto
Já não quer ser o outro
Hoje ela é o também

Disfarça e segue em frente

Todo dia até cansar
E eis que de repente ela resolve então mudar
Vira a mesa
Assume o jogo
Faz questão de se cuidar
Nem serva, nem objeto
Já não quer ser o outro
Hoje ela é o também

 


Triste, Louca ou Má,

Banda Francisco, El Hombre

 Triste, louca ou má

Será qualificada
Ela quem recusar
Seguir receita tal

A receita cultural
Do marido, da família
Cuida, cuida da rotina

Só mesmo, rejeita
Bem conhecida receita
Quem não sem dores
Aceita que tudo deve mudar

Que um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define
Você é seu próprio lar

Um homem não te define
Sua casa não te define
Sua carne não te define (você é seu próprio lar)

Ela desatinou, desatou nós
Vai viver só
Ela desatinou, desatou nós
Vai viver só

Eu não me vejo na palavra

Fêmea, alvo de caça

Conformada vítima

Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar

E um homem não me define
Minha casa não me define
Minha carne não me define
Eu sou meu próprio lar

E o homem não me define
Minha casa…


E, ainda, conversamos sobre o funk:

. Tem semelhança com o que era incipiente na época dos nossos três sambas: o que pode ser identificado como a "arte para consumo", que reproduz os valores que permeiam uma época, diferente da arte enquanto transformadora, enquanto construtora de sujeitos, cidadãos, pessoas que refletem e atuam no mundo enquanto libertárias. Algumas pessoas veem nas letras do funk  exemplos nesse sentido: são fabrica­das em série, saem rapidamente de circulação e ba­nalizam o sexo feminino e o relacionamento amoro­so.

 . Mas, também, podemos pensar de outro jeito, para além dessa generalização: assim como o samba, na primeira metade do século passado, era visto com "maus olhos" por uma classe social mais favorecida, e somente mais tarde foi absorvido, também o funk, agora, é visto como "marginal"... Mas podemos ver no funk a reprodução o "amor romântico", o lugar da mulher, incensada ou desprezada, puta ou pura,  assim como vemos músicas "libertadoras" nesse gênero musical.

. E o mesmo acontece nas músicas sertanejas, na MPB e no POP... observem...

 

. E concluímos citando mais uma vez o texto "O STATUS QUO FEMININO NO SAMBA DE AUTORIA MASCULINA" das duas autoras: Mirele Carolina Werneque Jacomel e Cristian Pagoto:

"... os dife­rentes modos de expressão nas artes, na literatura, nas canções populares, enfim, são veículos de comu­nicação moldados pela ideologia de cada grupo his­toricamente constituído. É com essa percepção que se deve olhar para a cultura das sociedades como algo enraizado em seu passado." 

. Portanto, discutimos que o sexismo presente, até hoje, nas relações de gênero, é resultado de uma história mais ampla, que contempla o início das civilizações, que passa por outras instân­cias como a religião, a política, a economia, a cul­tura e a arte, entre outras coisas. E pode (ou não) contribuir para a proliferação das desigualdades entre homens e mulheres. 

. Cabe a todxs nós, enfim, desnudar e problematizar, em nossa cultura,  as representações que provocam o retorno a qualquer coisa que possa significar o "lugar da mulher",  de inferiorida­de, de subalternidade, do íntimo e de tudo que represente "padrões" que nos oprimem, assim como de qualquer outro indivíduo que não corresponda aos padrões instituídos pelo pensamen­to patriarcal. A começar por nós mesmxs, porque, acreditem, isso acontece de uma forma invisível, muito difícil de perceber. 

À luta!!!

SantuzaTU



 

2 comentários:

  1. E vamos luta. Ótima leitura! E somos nós, eu, vc, todas cada vez mais com mais vaidade e mulher de verdade, mesmo que fiquem de mal. Amei, Santuza!

    ResponderExcluir