segunda-feira, 22 de julho de 2024

Sobre HISTERIA: do fim para o começo

                                                                          

    Nos nossos escritos mais formais, digamos - o SBC, de vez em quando, se mete a "acadêmico" - já falamos sobre depressão, sobre narcisismo, sobre fenomenologia, sobre o método  TAP (Teoria-Afeto-Prática), assuntos que nos renderam ótimas conversas e debates - nosso objetivo é tornar simples e coloquial (sem perder a profundidade, a consistência) qualquer assunto que diga respeito ao humano e que contribua para melhorar nossa visão de nós mesm@s, do mundo e as nossas relações. 

E já vai pra mais de um mês que estamos escrevendo sobre HISTERIA, seguindo esquema proposto, qual seja, a partir da visão "tradicional" da psicopatologia e psiquiatria, caminharmos para a visão psicanalítica e depois para a visão fenomenológica, oferecendo pretexto, na arte (cinema, música, poesia, etc) para a reflexão, o auto conhecimento e o crescimento no sentido da nossa "humanização".

Pois não é que com o texto "formal" praticamente pronto, no rascunho, a ser publicado, viajamos para Ouro Preto e lá subvertemos nossa ordem, ficamos histéricas, nos despertamos para os inúmeros exemplos, constatações, de "elaboração/percepção" possível da histeria que permeia nosso dia-a-dia, presente constantemente na nossa sociedade patriarcal, machista, racista, misógina.

E foi então que trocamos, invertemos - ou subvertemos - a ordem - começamos do fim:
Ouro Preto respira arte e cultura, ainda mais em julho, no festival de inverno. Começamos pelo samba no domingo... maravilhoso,  no espaço @casadaarvore.ouropreto, debaixo do nosso abacateiro, não sabemos ainda se vai chamar SAMBA DO ABACATEIRO ou SAMBA DE QUINTA (duplo sentido... rsrs), as quintas feiras uma roda de samba... ou os dois sambas, talvez...  com palco aberto pós samba, para nosso sarau... e foi no palco aberto que misturei Caymmi com Adélia Prado, adoro... e, por isso, fui convidada para o sarau da quinta, que aconteceria na Casa dos Contos, organizado pelo mais novo amigo @julliano_mendes, junto com @marcelinoxibil,  vejam o convite no início do post. Bacana demais a ideia do SARAU: conhecermos poetas ouropretanos, pra além dos famosos... foi aí que convidei a querida Júnia Gaião da @casavermelhadabruxa, ela disse um poema meu e eu disse um poema dela... pena não termos vídeo... mas depois eu repeti o poema da Adélia com a música de Caymmi:




Louca e santa, Lilith e Eva, nós mulheres temos no mínimo duas matrizes formadoras das nossas identidades, do nosso "ser no mundo". Quem ainda não conhece a Lilith leia nosso post de 7 de março de 2016. Eu, quanto me contaram a história da Lilith -  que fazia parte dos livros apócrifos, proibidos pela igreja pois já não combinavam com a imagem feminina da ideologia desejada à época - fiquei chocada. Descobrir uma outra matriz feminina para além da mulher feita da costela do homem, portanto "estruturalmente" inferior e submissa, acreditem, é libertador. No entanto, ao longo da história, a mulher insubmissa quase sempre é oprimida, ou ignorada, ou rejeitada, ou louca, ou qualquer adjetivo que a ameace, desde o seu psíquico ou emocional, até a sua própria existência física.


Ir rompendo com esse "destino", ir enfrentando o medo real de "ser", apenas ser, ir se descobrindo muitas... tarefa difícil, necessária... e prazerosa...


Pois no mesmo sarau o Julliano nos surpreende dizendo seu poema, que combinava completamente com nossas reflexões: 



Heliah enfurecida

todo dia

às duas e trinta

Heliah se enfurecia

coitada!

cuspia fogo

por nada

e tal magia

sua tez clara

se enrubescia

leoa em fúria

palavras-pedra

da boca espúria

brotava raiva

tal tinta fresca

que pele laiva

seu marido

ficava completamente

 perdido

todo dia

seu inferno

se repetia

e quando ela

queria atirá-lo

pela janela!

e pela casa

queria queimá-lo

com ferro em brasa!

coitado!

tão paciente...

tão educado...

amor que arde

uma louca

um covarde

coisa infernal

queria voltar

ao normal

tempo louco

pelo menos

durava pouco

e sem demora

em apenas um

quarto de hora

a calmaria

é que restava

em demasia

mas sendo assim

era um tédio

sem fim

que coisa turra!

tristemente

Heliah sussurra:

a vida passa

sem sobressaltos

sem graça

sem alegria

ai! que saudade

da zombaria

então, sofrida

a pobre Heliah

quedou partida

a enlouquecida

contra

a deprimida

escancarada

de um lado

a desvairada

e recolhida

de outro

a reprimida

até que um dia

enquanto Heliah

dormia

em noite quente

ocorreu um fato

surpreendente

talvez o mormaço

tivesse provocado

tal embaraço

alvissareira

surgiu

uma terceira

a nova Heliah

não era boa

nem má

não era brava

nem tímida

e se esforçava!

fazia comida

lavava roupa

agradecida

tão prendada!

mas porque vir

na madrugada?

porque não vinha

tão disposta

à tardinha?

em agonia

Heliah

já não dormia

estava farta

até que veio

a quarta

religiosa:

católica

fervorosa

às seis da tarde

pr’ave maria

fazia alarde

e se maculava

quando outra Heliah

pecava

depois, a quinta

quanta pose

quanta pinta

e veio a sexta

de todas

a mais besta

tal fosse rica

espalhava

sua rubrica

rococó!

porque a sétima

cheirava pó

como gastava!

vestidos

para a oitava

presentes

pra vigésima e

pras subsequentes

endividada

carente

contaminada

numa briga

a mais calada

(e mais antiga)

apelou

e seu marido

matou

pobre marido!

um tiro

no ouvido...

sem malícia

a candinha

chamou a polícia

sem defesa

Heliah

foi presa

para ela

foi necessário

única cela

mesmo assim

era um caos

sem fim

gritaria!

falta de espaço!

mais dia

menos dia

outra tragédia

ocorreria

lá dentro

uma Heliah

tomou o centro

contida

disse:

sou suicida

meio sem jeito

espetou-se

o peito

com a unha postiça

da Heliah

roliça

soluçante

estrebuchava

agonizante

pr’aquela choça

fizeram

vista grossa

já que a cadeia

há muito

está cheia

morreu sozinha

o rosto ausente

continha

um sorriso

(fatal,

conciso)

como se na morte

restasse

forte

 

a derradeira.

apenas a Heliah

verdadeira



Me emocionei profundamente com a Heliah, nos representa, a todas nós... quantas mulheres "morrem" - emocionalmente e/ou concretamente - apenas por serem mulheres. Obrigada Julliano, gratidão...


Na sexta, outra grande emoção.  Vi o cartaz na quarta, me identifiquei:

VELHAS SAFADAS, na @casapitangaop, uma peça de teatro interativa... 

Sinopse: "Em cena, as mulheres festejam a liberdade de seus corpos e convidam todos a imaginar um mundo mais horizontal e justo. Com paródias, humor e uma pitada de deboche, a performance celebra uma existência plena de liberdade e prazer, ressaltando que a liberdade é uma prática social e que sem tesão não há solução"... 

Lá estava eu na sexta:


Já na entrada várias bandeirolas penduradas sugeriam o assunto:



A gente ri, conversa e reflete... Na nossa sociedade, patriarcal, machista, misógina, qualquer mulher, de qualquer idade, que arrisque sair dos padrões : bela, recatada e do lar - submissa, alienada, infantilizada -  será chamada de puta, bruxa ou histérica - ou de todas três... ou seja, se você estiver sendo chamada de uma dessas três - ou das três - você está desejando, APENAS, ser livre, ser quem você quer ser.


E toda a peça é permeada por músicas excelentes, super pertinentes ao tema, conduzidas pela grande DJ, nossa querida @ninacaetanoperformer (ou @shaitemi_dj). Destacando "Ela não é puta, ela é solteira", ou "Ela não é sua, ela é solteira":


Terminando, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública acaba de publicar a 18a edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, que traz as estatísticas de 2023, entre elas:



Um estupro a cada 6 minutos... em 2021 era um estupro a cada 8 minutos. Os feminicídios acontecem, na maioria, dentro de casa, ou seja, a rua parece ser um lugar mais seguro para a mulher, diferente do que se imagina, ou do que aprendemos. Mais de 70% dos estupros ocorrem com mulheres vulneráveis, meninas até 13 anos.
Surpresa? não... indignada, revoltada, puta... 
Voltei às bandeirolas: "chamaram de bruxas as mulheres que sabiam curar a si mesmas".

Convido todas as pessoas a lerem o "começo", o próximo post, o "formal", sobre histeria: vejam quando a histeria é uma "doença" e deve ser tratada... leiam sobre a histeria na história e na atualidade... vejam que a histeria não é uma "doença" só de mulheres... vejam filmes sobre a histeria... e vejam o melhor livro sobre a histeria, da Emilce Bleichmar, que faz uma crítica contundente sobre se colocar no mesmo "saco" e tratar do mesmo jeito "tipos" (ou estágios...) diferentes de mulheres... bastante elucidativo para tod@s nós... 

Se reconheçam... nos reconheçam!!!


5 comentários:

  1. Que texto ótimo, tu! Aguardando o segundo. Abração. Leda

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  2. Uma leitura leve e profunda. Obrigada. Marilia

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  3. Leve, cínico, verdadeiro. Um texto que remexe a gente

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  4. curiosa para o segundo texto. Ou o princípio. Obrigada TU. Andreia

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  5. Ameiii td, texto, música e poesias! Túuu querida sempre brilhando!
    Bjinhos. Rosària ( Rosa). Saudades!

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