Nos nossos escritos mais formais, digamos - o SBC, de vez em quando, se mete a "acadêmico" - já falamos sobre depressão, sobre narcisismo, sobre fenomenologia, sobre o método TAP (Teoria-Afeto-Prática), assuntos que nos renderam ótimas conversas e debates - nosso objetivo é tornar simples e coloquial (sem perder a profundidade, a consistência) qualquer assunto que diga respeito ao humano e que contribua para melhorar nossa visão de nós mesm@s, do mundo e as nossas relações.
Louca e santa, Lilith e Eva, nós mulheres temos no mínimo duas matrizes formadoras das nossas identidades, do nosso "ser no mundo". Quem ainda não conhece a Lilith leia nosso post de 7 de março de 2016. Eu, quanto me contaram a história da Lilith - que fazia parte dos livros apócrifos, proibidos pela igreja pois já não combinavam com a imagem feminina da ideologia desejada à época - fiquei chocada. Descobrir uma outra matriz feminina para além da mulher feita da costela do homem, portanto "estruturalmente" inferior e submissa, acreditem, é libertador. No entanto, ao longo da história, a mulher insubmissa quase sempre é oprimida, ou ignorada, ou rejeitada, ou louca, ou qualquer adjetivo que a ameace, desde o seu psíquico ou emocional, até a sua própria existência física.
Ir rompendo com esse "destino", ir enfrentando o medo real de "ser", apenas ser, ir se descobrindo muitas... tarefa difícil, necessária... e prazerosa...
Pois no mesmo sarau o Julliano nos surpreende dizendo seu poema, que combinava completamente com nossas reflexões:
Heliah enfurecida
todo dia
às duas e trinta
Heliah se enfurecia
coitada!
cuspia fogo
por nada
e tal magia
sua tez clara
se enrubescia
leoa em fúria
palavras-pedra
da boca espúria
brotava raiva
tal tinta fresca
que pele laiva
seu marido
ficava completamente
perdido
todo dia
seu inferno
se repetia
e quando ela
queria atirá-lo
pela janela!
e pela casa
queria queimá-lo
com ferro em brasa!
coitado!
tão paciente...
tão educado...
amor que arde
uma louca
um covarde
coisa infernal
queria voltar
ao normal
tempo louco
pelo menos
durava pouco
e sem demora
em apenas um
quarto de hora
a calmaria
é que restava
em demasia
mas sendo assim
era um tédio
sem fim
que coisa turra!
tristemente
Heliah sussurra:
a vida passa
sem sobressaltos
sem graça
sem alegria
ai! que saudade
da zombaria
então, sofrida
a pobre Heliah
quedou partida
a enlouquecida
contra
a deprimida
escancarada
de um lado
a desvairada
e recolhida
de outro
a reprimida
até que um dia
enquanto Heliah
dormia
em noite quente
ocorreu um fato
surpreendente
talvez o mormaço
tivesse provocado
tal embaraço
alvissareira
surgiu
uma terceira
a nova Heliah
não era boa
nem má
não era brava
nem tímida
e se esforçava!
fazia comida
lavava roupa
agradecida
tão prendada!
mas porque vir
na madrugada?
porque não vinha
tão disposta
à tardinha?
em agonia
Heliah
já não dormia
estava farta
até que veio
a quarta
religiosa:
católica
fervorosa
às seis da tarde
pr’ave maria
fazia alarde
e se maculava
quando outra Heliah
pecava
depois, a quinta
quanta pose
quanta pinta
e veio a sexta
de todas
a mais besta
tal fosse rica
espalhava
sua rubrica
rococó!
porque a sétima
cheirava pó
como gastava!
vestidos
para a oitava
presentes
pra vigésima e
pras subsequentes
endividada
carente
contaminada
numa briga
a mais calada
(e mais antiga)
apelou
e seu marido
matou
pobre marido!
um tiro
no ouvido...
sem malícia
a candinha
chamou a polícia
sem defesa
Heliah
foi presa
para ela
foi necessário
única cela
mesmo assim
era um caos
sem fim
gritaria!
falta de espaço!
mais dia
menos dia
outra tragédia
ocorreria
lá dentro
uma Heliah
tomou o centro
contida
disse:
sou suicida
meio sem jeito
espetou-se
o peito
com a unha postiça
da Heliah
roliça
soluçante
estrebuchava
agonizante
pr’aquela choça
fizeram
vista grossa
já que a cadeia
há muito
está cheia
morreu sozinha
o rosto ausente
continha
um sorriso
(fatal,
conciso)
como se na morte
restasse
forte
a derradeira.
apenas a Heliah
verdadeira
Me emocionei profundamente com a Heliah, nos representa, a todas nós... quantas mulheres "morrem" - emocionalmente e/ou concretamente - apenas por serem mulheres. Obrigada Julliano, gratidão...
Na sexta, outra grande emoção. Vi o cartaz na quarta, me identifiquei:
VELHAS SAFADAS, na @casapitangaop, uma peça de teatro interativa...
Sinopse: "Em cena, as mulheres festejam a liberdade de seus corpos e convidam todos a imaginar um mundo mais horizontal e justo. Com paródias, humor e uma pitada de deboche, a performance celebra uma existência plena de liberdade e prazer, ressaltando que a liberdade é uma prática social e que sem tesão não há solução"...
Lá estava eu na sexta:
Já na entrada várias bandeirolas penduradas sugeriam o assunto:
Que texto ótimo, tu! Aguardando o segundo. Abração. Leda
ResponderExcluirUma leitura leve e profunda. Obrigada. Marilia
ResponderExcluirLeve, cínico, verdadeiro. Um texto que remexe a gente
ResponderExcluircuriosa para o segundo texto. Ou o princípio. Obrigada TU. Andreia
ResponderExcluirAmeiii td, texto, música e poesias! Túuu querida sempre brilhando!
ResponderExcluirBjinhos. Rosària ( Rosa). Saudades!