quarta-feira, 19 de abril de 2023

Resposta a CARTOLA



PARTE I: O AUTOR

Angenor de Oliveira nasceu Rio de Janeiro em 1908. Estudou em vários grupos escolares, pois acabava sempre expulso por mau comportamento, só concluindo o curso primário. Quando tinha onze anos, seus pais se mudam para o Morro da Mangueira, onde ele começou a frequentar a vida boêmia e as rodas de samba. Nessa época, tocava violão e cavaquinho. Com quinze anos, quando ficou órfão de mãe, seu pai o mandou  tratar da vida. Sem ter onde dormir ficava pelas madrugadas na boêmia e malandragem. Para se sustentar,  empregou-se em uma tipografia, mas não ficou muito tempo, pois não se adaptou ao serviço onde não podia assobiar nem cantar. Começou o trabalho na construção civil e acabou aprendendo a profissão de pedreiro. Nessa época, usava um chapéu-coco, e assim nasceu o apelido de “Cartola”.

No carnaval dos anos 30, a polícia do Rio prendia por "vadiagem" os crioulos. Para impressionar os policiais e evitar as prisões, Cartola pôs terno e gravata nos primeiros foliões que entravam na avenida. Estava criada a comissão de frente das escolas de samba.

Nos anos seguintes Cartola funda com amigos a Estação Primeira de Mangueira. Depois, Cartola adoeceu, teve uma meningite que o afastou da escola. Sua vizinha de barraco, Deolinda da Conceição, casada, com uma filha e sete anos mais velha cuidava dele, então com 18 anos. Os dois decidiram morar juntos. Pouco depois dele se recuperar, Deolinda, faleceu. 

Em 1944, além de Diretor de Harmonia da Mangueira, escola de samba que criou com Carlos Cachaça, Cartola tornou-se Presidente de Honra da Ala dos Compositores.

Algum tempo depois, Cartola foi viver com Donária e deixou o morro indo morar em Nilópolis e depois no Caju. Passou muito tempo afastado do samba e falava-se que ele tinha morrido. Para se manter trabalhava como vigia de prédios e lavador de carros. 

No fim da década de 50, levado por Dona Zica, Cartola voltou à sua velha Mangueira, onde era amado e respeitado por todos.  Euzébia Silva do Nascimento , Dona Zica, era amiga e vizinha  de Cartola desde a adolescência, na Mangueira. Casou-se muito cedo, teve cinco filhos biológicos e um adotivo, ficou viúva e os dois se reencontraram.

Década de 60 e 70
cartola

Em 1961, todas as sextas-feiras tornara-se programa obrigatório para os sambistas um encontro na casa de Cartola. Lá apareciam Zé Kéti, Nelson Cavaquinho, Paulinho da Viola e muitos outros. Com muita cerveja e acompanhado dos quitutes de Zica, o samba ia até altas horas. A casa ficou famosa e pouco depois surgiu a ideia do restaurante “Zicartola”, que funcionou na Rua da Carioca, no centro da cidade..

Em outubro de 64, Cartola e Zica finalmente oficializaram a união. Nessa época, Cartola descobriu que se chamava Angenor e não Argenor, como pensava, quando precisou da certidão de casamento.

Antes disso, Cartola, que tinha uma doença no nariz chamada rosácea, passou por uma cirurgia. Graças à intervenção dos amigos, não precisou tirar dinheiro do bolso. Por descuido do próprio sambista, a cirurgia deixou uma mancha negra na região, sinal que se tornaria sua marca característica

As composições de Cartola voltam a ser gravadas: Nara Leão gravou “O Sol Nascerá” (1964) e Elizete Cardoso gravou “Sim” (1965).

O tempo foi passando, e o Zicartola não tinha a mesma frequência e fechou as portas. Juntos, Cartola e Zica retomaram sua vida comum.

Em 1970 Cartola foi convidado como anfitrião de um show semanal no prédio da extinta União Nacional dos Estudantes, no Flamengo. O nome do espetáculo, “Cartola Convida” mostrava a importância do sambista.

Finalmente, em 1974, Cartola gravou o seu primeiro disco, com muitas das canções gravadas por outros cantores, entre elas, “O Sol Nascerá”, a mais destaca composição de Cartola:

Em 1976, um novo LP foi lançado e um novo sucesso. A composição “As Rosas Não Falam”, escrita no auge dos seus 67 anos, se tornou uma das mais conhecidas do compositor. Neste LP a sua filha Creuza participou cantando duas músicas. 

No final da década de 70, depois de se submeter a uma cirurgia para tirar um câncer na tiroide, a saúde de Cartola foi aos poucos se fragilizando. Faleceu no Rio de Janeiro em  1980.

PARTE II: A FILHA


Creusa Francisca dos Santos, 
mais conhecida como Creusa Cartola (1927-2002).

Cartola não teve filhos biológicos. A filha – Creusa – a quem se refere na  música O MUNDO É UM MOINHO, uma menina que fora adotada quando tinha cinco anos, era filha biológica de uma amiga que havia falecido. Na época Cartola vivia com a esposa Deolinda que era madrinha da menina. A música foi composta em 1943, gravada só em 1970.

Segundo relato da filha mais velha de Creusa, Irinéa dos Santos, Cartola compôs essa música  quando Creusa era adolescente, e com a curiosidade normal de uma jovem de 16 anos por namoros. Não há qualquer registro de que Creuza se tornara prostituta.  Na época, pode-se imaginar que então fosse normal dizer que alguém caiu na prostituição apenas por interessar-se por homens, e daí certamente deve ter surgido a lenda… Mas isto jamais fora dito por Cartola em lugar algum.

Na verdade, Creusa tornou-se cantora.  Artista precoce, ela começou a cantar aos 14 anos. Em 1937, Angenor já levava a filha adotiva para cantar em rádios como Transmissora e Roquete Pinto. “Ela interpretava suas composições, o que era comum nesta época. Quando Villa Lobos foi à quadra da Mangueira conhecer meu avô, quem cantou as composições de Cartola para ele foi minha mãe”, conta Reizilan.

Reizilan dos Santos, músico de 64 anos, luta na Justiça para que a mãe, Creusa Francisca do Santos, seja reconhecida como filha adotiva do sambista – e ele, como neto. Quando a carreira de Cartola começou a decolar, na década de 1960, Creusa não reparou que estava na hora de seguir seu próprio caminho, depois de anos fazendo shows com Cartola em espaços como a Boate Jogral, em Ribeirão Preto, o Zicartola e o Teatro Opinião, ambos no Rio de Janeiro. “Minha mãe poderia ter gravado seu próprio disco, pois tinha ao seu lado Nelson Cavaquinho, Herivelto Martins e seu próprio pai, mas continuava à sombra dele, não conseguia caminhar com suas próprias pernas. Quando ela acordou, foi tarde demais”, lamenta Reizilan

Creusa gravou as faixas “Ensaboa” e “Sala de Recepção”, do disco “Cartola” (1976), mas seu filho afirma que a sambista Clementina de Jesus cantava no lugar dela ao vivo por “motivos pessoais e comerciais”. Ele observa que ,”em nenhum momento, Cartola exerceu seu poder e seu papel de pai para defendê-la, deixando que a excluíssem do processo sem levantar um dedo sequer para protege-la”.

“Talvez naquele momento ele não precisasse mais dela em shows”, diz o músico, ressaltando que sua mãe não recebeu nada por ter participado do disco. “O lançamento seria a chance de Cartola retribuir tudo pelo que eles haviam passado até aquele momento, pois ele tinha conseguido vencer como compositor e como cantor”.

A relação entre Cartola e o neto  foi desgastada ao longo dos anos, e o lugar de Reizilan foi “ocupado por pessoas que se apoderaram da obra de Cartola”, diz ele sobre Dona Zica e seus familiares. “Hoje só sinto tristeza ao lembrar desses momentos, vendo o distanciamento ao qual eles me impuseram. Nem sei se meu avô em vida soube que eu havia estado em sua casa para vê-lo inúmeras vezes”.

Apesar de não culpar ninguém por sua mãe ter sido “apagada” da história, Reizilan condena o comportamento dos familiares de Dona Zica. “Eles dizem que são verdadeiros netos de Cartola, e que eu estou querendo viver na aba do chapéu do avô deles. É como se eles tivessem nascido em Mangueira e vivido tudo que eu vivi quando criança”.

Reizilan briga para ser reconhecido como neto de Cartola por uma questão de honra, para zelar pela memória da mãe. Mesmo sem ter criado um vínculo com ele e guardando tantas lembranças negativas acerca daqueles que o rodeavam, o músico afirma que seu passado, presente e futuro foram revirados. “Não posso mentir e dizer que isso não aconteceu, que não sou neto dele. Luto para resgatar o nome da minha mãe junto ao nome dele, e resta no futuro apagar essas memórias ruins”.

PARTE III: A MÚSICA


(trechos de comentários sobre "O mundo é um moinho", recolhidos do youtube)

"A letra é realmente bonita, se inicia justamente com a referência a ser cedo… a personagem com quem o eu-lírico dialoga é jovem e inexperiente, não conhece nada da vida e anuncia sua partida, e ela é advertida de que segue um caminho sem rumo…

Na segunda estrofe, o eu-lírico tenta convencê-la (embora tenha consciência e até resignação de que não terá êxito) de que ao sair ela vai se perder, a vida vai se perder, sua própria identidade vai-se embora…

E, nesse momento, na terceira estrofe, vem a parte mais aguda, que compara o mundo a um moinho, que tritura sonhos e pulveriza ilusões… é uma imagem, um vaticínio de desesperança, como que a vida fosse sepultar as ilusões daquela que se despede, e que tem por trás o apelo implícito para que ela volte, ou melhor, para que ela não vá…

Repare-se, porém, que a letra fala em reduzir teus sonho, “tão mesquinho" e não mesquinhos. Isso muda completamente o sentido. O mundo é que é mesquinho, e não os sonhos... 

Por fim, ele alerta para as desilusões amorosas… “preste atenção querida”, a advertência de um pai que ama a filha, é como se a moça fosse cair na vida… e em vez de abrir-se ao amor, abre-se ao cinismo, e a busca, esta descoberta do suposto e dito falso “amor” seria um caminho que a personagem estaria cavando para a própria derrocada…

Mais que uma advertência, é um pedido desesperado para que ela permaneça… e a canção assim entrou para a história". 


PARTE IV: NOSSA RESPOSTA

E cá estou eu, há cerca de três anos, tentando criticar esse mestre, essa pessoa maravilhosa da nossa música, grande Cartola. Nesse tempo, desde que me ocorreram sentimentos profundos sobre essa música, tenho pesquisado sobre o artista, sua vida e sua obra, e a história por traz da canção. Desde o belo filme CARTOLA-MÚSICA PARA OS OLHOS, documentário da Globo Filmes de 2007, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, passando por inúmeros vídeos que analisam a música, até as inúmeras biografias do Cartola - todos eles realizados por homens. Também ouvi as várias interpretações, desde a do próprio Cartola, passando por Ney Matogrosso, Beth Carvalho, e chegando à gravação do seu xará, Cazuza, que também se chamava Angenor... 

Sem deixar de considerar a delicadeza de um pai amoroso, tentávamos ouvir essa letra da perspectiva da filha, Creusa, uma adolescente de 16 anos que, na nossa visão,  APENAS queria sair de casa, se construir enquanto pessoa, apropriar dos seus desejos, responder de forma autônoma  à questão tão importante para a vida: quem sou eu, quem eu quero ser para além do que fui "educada para". 

E, no processo de pesquisa, aumentava a perplexidade: COMO nenhuma mulher ainda se indignou com essa letra?

E continuavam as interrogações: como nós, mulheres da segunda metade do século passado, internalizamos essa música? que consequências nas nossas vidas, teve essa internalização?

Conversei com inúmeras mulheres, de 30 a 70 anos, tentando caminhar nesse sentido. O que mudou e o que ainda permanece dessas internalizações? 

Quase todas nós, na faixa dos 40 aos 70, temos lembranças de, ao movimento no sentido de ampliarmos nossa liberdade (de ser, de agir) sermos associadas à possibilidade de nos tornarmos "mulheres da vida", prostitutas... essa era a grande ameaça. Me lembro, também, de depoimentos de mães nessa faixa que se separaram,  com filhas na faixa dos 20, 30, e que toda a responsabilidade por qualquer desvio das filhas dos "padrões desejados", a culpa era atribuída a elas, pois foram elas que "desvirtuaram" as filhas. 

Os exemplos são muitos. Ao conversar com todas essas mulheres criamos a possibilidade de "catarses"... de superações. E,  nessa toada, promovemos uma reunião entre nós, com o propósito de "responder" ao Cartola - e aos homens que toparem de nos escutar - sobre o que significou, para nós, essa música, os sofrimentos que ela nos causou durante tanto tempo - e o movimento de superação que fizemos, construindo a resposta :

Meu pai, quero te dizer que a hora quem decide sou eu, e não o Senhor, pois o que quero é exatamente ser dona da minha vida, tirá-la das suas mãos. Te peço, por favor, me deixe escolher o meu rumo, me deixe errar - acertar - e crescer com erros e acertos, enfim, viver

O que você me ensinou de valores para a vida eu vou levar para sempre, pois já fazem parte de mim. E você me ensinou muito bem... Mas você me ameaça Pai! Me deixa com medo de ser livre, como você!

E essa ameaça vem em nome do amor! Você, que canta o amor de forma tão bonita, o enfeia dessa forma meu pai! Como, em nome do amor, você pode ser tão cruel! 

Agora pouco importa se você disse que o mundo é um moinho, e é o mundo mesquinho que vai triturar meus sonhos... ou se você disse que eram meus sonhos mesquinhos... o mal está feito. Estou destroçada... e voltei... e me submeti a você...

Pois você, meu pai, com sua música linda, me fez desacreditar nos homens... no amor... 

E, por último, pai, você me fez - e a todas as mulheres da minha geração - nos sentir culpadas por qualquer desejo de liberdade que tivéssemos...

Este é o seu legado pai... as feridas que você deixou em nós com essa música "delicada, de um pai amoroso", como todos veem. 

E só enxergando um outro lado possível, que caminhamos na direção do resgate das nossas vidas, das nossas identidades, do perdão e da amorosidade... não sem passar pela raiva, pela indignação ... pois, num momento das nossas vidas, foi a raiva que nos deu coragem para caminhar...

E, construindo nossas humanidades, foi que também te enxergamos humano... e te amamos, na sua humanidade. pai.

Sigamos, mais livres das amarras... mais humanas e humanos.

E nos abraçamos, coletivamente... e entre nós, nessa catarse, tínhamos também meninas/mulheres de 15 a 20 anos, que nos acolheram e que também tinham emoções e percepções a compartilhar, de certa maneira uma "repetição" do modelo, atualmente, e uma forma diferente de enfrentar: 


Que bom que a gente tem a gente...


E que os homens nos ouçam, apenas...  e tentem nos entender... e não queiram falar por nós...






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