segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Infâncias, loucuras e carnavais SBCenses


Vale: entre a carência social e a riqueza cultural.... "Rio largo cheio de peixes" é o significado da palavra Jequitinhonha, de origem indígena.

Conversas sobre o Vale do Jequitinhonha sempre me remetem à infância. E, lembrando da infância no Vale, começo a conversar com tia querida, e ela lembra de doidos e doidas da sua cidade. Parece que em toda cidade do interior, "no século passado" (não sei como é agora...), tinha uma doida e/ou um doido...  as crianças, não sei bem porque, adoravam brincar com eles e elas. Talvez agora isso fosse considerado um bulling, ou não politicamente correto, mas o fato é que, "naquela época", nós tínhamos um misto de pilhéria e carinho por essas pessoas. 

A tia lembra de muitas doidas e doidos... e conta e ainda morre de rir:

. Tinha o Colete Preto (ele odiava ser chamado assim, embora só andasse com o colete preto): muito religioso, acompanhava todas as procissões cantando Ave, Ave, Ave Maria! La La La La La La La La La La La La  (são 12 Las, formando a melodia)... e, no final do Ave Maria, ele ouve de um garoto: Colete Preto!... continuando a canção, no mesmo tom, ele responde: Co Le Te Pre To É A Pu Ta Que Pa Riu...

Nossa querida SBCense Antonieta se encanta com o tema e manda o texto:

"A Maria diz que tem sete saias de filó.                                             
É mentira da Maria ela tem é uma só. "                                   
Este é um pedaço de uma música que a meninada sempre cantava correndo atrás de uma moça que andava pelo bairro onde eu morava quando criança.
Maria estava  sempre suja, maltrapilha, faminta, entretanto, sempre cantando. Sobre Maria, ninguém sabia nada. De onde vinha ou  para onde iria. Quem eram seus pais, se tinha irmãos ou parentes. Sabíamos apenas que ela estava sempre por ali. Para nos amedrontar, nossas mães sempre falavam: "A Maria vai te pegar e vai colocar você debaixo das saias dela." Era uma ameaça que sempre escutei enquanto era criança. Por isso, talvez, como uma forma de nos proteger, sempre que a víamos, cantávamos a musiquinha . Ela então ficava irritada e fugia para bem longe.
Passávamos dias sem ver Maria. Até que, sem mais nem menos, ela aparecia.
 Me lembro sempre a música que Maria cantava:
"Se você pensa que meu coração é de papel, não vai pensando  pois não é. Ele é igualzinho ao seu e sofre como eu, para que fazer chorar ao léu, meu coração que não é de papel." 
São lembranças de uma infância feliz. Entretanto algumas interrogações  até hoje ficaram como interrogações. Quem era Maria? Por que ela vivia cantando sempre a mesma música?
Por que as pessoas adultas não ajudavam aquela pessoa sair daquela situação? O que foi feito de Maria?
Nunca soube. E por muito tempo esta lembrança ficou guardada no fundo da minha memória. Até que um dia, no nosso sarau as quartas feiras no ASA DE PAPEL,  a amiga Santuza, lê o poema do MASCATE DE METÁFORAS (como ele mesmo se intitula) Caio Duarte, adivinha de onde ? Claro, do Jequitinhonha, nasceu em Almenara mas viveu, desde a infância, na cidade de Jequitinhonha:
 



É estranho que antes mesmo dela ler o poema, Santuza fez uma breve introdução falando exatamente dessas pessoas que marcam as nossas infâncias normalmente em cidades do interior. E ela estava  certa.
Se eu tivesse, hoje, passado tantos anos, a oportunidade de encontrar com aquela Maria da minha infância, eu talvez cantasse outra música. Talvez a música do Milton Nascimento:
 


Não cantei! 
Entretanto, eu gostaria que, onde Maria estiver,  ela saiba que ela fez parte da minha história.

A 'doida' da Antonieta é a Maria, a do Caio é a Clarice.  Temos, também, outra 'doida' Maria, do Tadeu Oliveira Romão, que nasceu em Corinto mas é jequitinhonhense de coração:
 
MARIA, COMO TANTAS MARIAS

“Maria... Maria... Há tantas Marias...
 Maria da Penha... Maria da Glória... 
 É tudo Maria!
 Há tantas Marias!
 E  foi só Maria, a Santa Maria,
 A Mãe da pureza,
 A Mãe da bondade, 
 A Mãe da justiça,
 A Mãe das Marias!...”
 (POEMA DAS MARIAS, Caleidoscópio, Pérola S. Gandra) 
 
 Ela estava sempre presente nas rezas de terços em igrejas ou na casa de algum devoto de Maria, mãe de Jesus, juntando suas preces com as preces de outras bocas, num bater ligeiro de lábios e num tatear de contas gastas do seu rosário, roçadas pelos dedos inábeis e rústicos. Ela era assim! Não perdia missa, terços, ladainhas, procissões, batizados, velórios e na Semana Santa engrossava, com sua voz desafinada e destoante, o coro formado pelas mulheres que respondiam ao canto responsarial da Verônica, em latim, na procissão do enterro do Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas para falar a verdade, creio que se ainda houvesse carpideiras na cidade com certeza ela seria uma e das melhores.

Seu entretenimento preferido era bater perna pela cidade inteira. Os trajes, quase sempre os mesmos: lenço na cabeça, blusa de mangas compridas ainda que o sol estivesse a pino. A saia de cor sóbria, frisada e desbotada, se estendia abaixo dos joelhos. Sob os pés rotos, carcomidos nos calcanhares devido às suas andanças, um velho par de havaianas. Como complemento trazia sempre debaixo do braço, fazendo chuva ou sol, uma sombrinha e um saco plástico onde, presume-se, levava seu cabedal. 

Não há muito que falar das suas feições cansadas. Lembra-se daquele personagem da Escolinha do Professor Raimundo, o aluno Baltazar da Rocha? Pois bem, a verossimilhança com o tal, como era tamanha! Há de se ressaltar que, enquanto aquele sempre trazia uma boa piada na ponta da língua, ela trazia um afiado palavrão para quem se atrevesse a lhe mangar. E, quase sempre, uma saraivada de impropérios impublicáveis, contraditórios às palavras sacrossantas rogadas de sua boca. E isto era o que mais acontecia porque a molecada e até mesmo muitos marmanjos desprovidos de autocrítica e comiseração, incontinenti dirigiam-lhe os dois pseudônimos que lhe funcionavam como ofensas mortais: “Maria Beú” ou “Maria Fubá”. 

Seus xingatórios explosivos e esfuziantes eram direcionados às genitoras dos caçoadores e, caso insistissem, partia para o ataque corporal. Fosse quem fosse, dava uma carreira atrás do desafeto e quando o alcançava, cobria com pancadas de sombrinha. Sem contar as pedradas, nem sempre certeiras.
Parece que ninguém se acostumava com ela e nem ela com ninguém. Quando pequeno sempre a via com as mesmas atitudes e com os mesmos olhos. E a minha condição de pequeno moleque nunca me impediu de zombá-la, o que me custou muitas carreiras e muitas surras de meus pais, quando flagravam meus inocentes delitos. Porém, adulto, amadurecimento perante as coisas do mundo não me permitia cogitar importuná-la.

Vez ou outra aparecia num bar como quem não quisesse nada, só para filar uma caninha, sua bebida preferida. E ficava insolente se lhe negassem um gole. Afinal, diziam, como derramar o líquido impuro sobre a hóstia sagrada? É que ela tomava quase que diariamente a sagrada comunhão. Quando alguém mais apiedado agia com generosidade, num átimo os seus olhos ficam apertadinhos, com a voz pastosa e mais versante. 

Curiosa, não podia ver alguém conversando numa porta de casa ou numa esquina e logo bisbilhotava a conversa ou encontrava um assunto para contar. 

Numa certa ocasião estive em Corinto e não a vi pelas ruas e praças da cidade, muito menos nas igrejas ou procissões. Além de sofrer com os achaques da idade, sem família e sem ninguém, soube que ela vivia a expensas do asilo quase que como indigente. Já não sofria com as pilhérias dos meninos nem com a covardia dos adultos. Sofria, sim, com a solidão e a angústia que são os prêmios adquiridos pelos idosos neste país e neste mundo indiferente aos direitos humanos, consoantes também neste torrãozinho que é Corinto. 

Um dia, uma Maria qualquer me disse que toda Maria é sofredora, porque herdou no nome as dores de Maria Santíssima, mãe de Jesus. Não acredito nesse paralogismo, mas quero crer que, todas as Marias, não importa em que circunstâncias, não importa onde, não importa quando, estejam sob a proteção do manto sagrado da maior de todas as Marias a lhes cobrir todos os desígnios da vida. E que as preces de Maria Beú continuem a ecoar no infinito em nome de todas as Marias.  E que a sua simplicidade dê-lhe um destaque no céu, entre as outras tantas marias, pois que ela já suportou aqui na terra todo o tipo de zombarias.
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E continuamos nossa conversa sobre loucos e loucas das nossas infâncias, agora de toda Minas Gerais:

A outra tia me conta: na minha terra, Itambé, tinha um doido que quando a gente dizia OI ele respondia: OI DO CU... e a gente "rachava os bico" de tanto rir...

E a outra me conta de uma lembrança de tempos de internato em Montes Claros: fazíamos uma fila para sair da igreja, e lá estava ela na porta. As freiras recomendavam: não cumprimentem a Edith!!!Acha que obedecíamos? claro que não! já estava tudo combinado: passávamos pela Edith caladinhas, mas a última da fila ... Bom dia Edith! aí a Edith começava: BOM DIA... BOM JOUR... COMENT PASSÉ VOUS... TRES BIEN... MERCI  BEAUCOUP... TEM BOI NA LINHA TEM TEM TEM... TEM BOI NA LINHA CATARINA VAI E VEM... e Edith ficava repetindo essa fala até a tarde, quando voltávamos à igreja. Algumas de nós achava graça, outras ficavam com pena da Edith, coitada...


Pois foi com ela que me interessei por aprender francês, pois não sabia o que ela falava. Além disso, virei super fã da Edith Piaf,  e aprendi que "a vida é rosa".


Aprendi com Judith, também, um pouco sobre o Nordeste, o forró pesado;  o significado de 'boi' (marido traído, chifrudo); e 'boi na linha', que é quando alguém é intrometido, enxerido, curioso e fofoqueiro. E tem até uma música do Djavan que fala sobre 'boi na linha'! Do álbum ALUMBRAMENTO, lançado em 1980:

Não podíamos deixar de fazer uma homenagem à nossa "madrinha" do primeiro desfile do Carnaval do SBC, em 2023 nosso bloco fará 10 anos! Inspirados no nosso "patrono" Caetano": "De perto ninguém é normal, homenageamos Dona Olímpia: "catadora de reciclo nas ruas de Ouro Preto, precursora dos hippies, perambulava pelas ruas daquela cidade contando histórias do tempo do império, histórias da sua vida, da sua família, diz que ela ficou meio pancada depois de uma desilusão amorosa (o pai não a deixou se casar com o homem da sua vida, acho que porque ele não era nobre), aí ela resolveu sair de casa e mais tarde se nomeou uma espécie de recepcionista do turista que chegava a Ouro Preto, ela ficava na Praça Tiradentes recebendo as pessoas até a sua morte lá pro final da década de 70, SBCense com um pouquinho mais de história se lembra dela, os que não se lembram entrem o Google e pesquisem, é muito bacana" (nosso post de 22.outubro.2012, nos preparando para nosso primeiro desfile , que seria em 2013. 

Ela andava com um cajado e se vestia com muitas sobreposições, uma roupa por cima da outra:

E um dos comentários nesse post, uma 'quase poesia', que adoramos: "Perca a razão, perca a piada, perca até o fio da meada... Mas não perca a PIROPA!", não sabemos de quem é, está unknown... pena... e também dizia: "meu lema para 2013"... tomara que tenha sido bem sucedido(a)!

Enfim, projeto para Carnaval 2213 é misturar o TÁ CAINDO FLOR com ARTE, POESIA E LOUCURA... além de POLÍTICA e DEMOCRACIA... 

"DE POETAS E DE LOUCOS, TOMOS NÓS TEMOS UM POUCO", como dizem a Angel e a Rochelle, duas loucas SBCenses da melhor qualidade...

Até a próxima, abraços carinhosos aos loucos e loucas...






8 comentários:

  1. Muitos dos doidivanas da minha terra chegaram via linha férrea, não necessariamente em trens, mas seguindo os trilhos em paralelas vindo de outros lugares e acabavam se estabelecendo na cidade!

    Abs.

    Tadeu Oliveira Romão

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  2. Em BH também tínhamos o doidinho e a doidinha do bairro e quando víamos um deles subindo a rua saíamos correndo cada um por um canto.... pois nossos pais e avós criavam medo na gente e isso deixou marca na infância... por onde andam??? Não sei... nunca parei para relembrar essas pessoas... essa narrativa que me levou às lembranças

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  3. Núuuu....lembrei dos doidinhos da minha infância que eu morrria de medo e uma não era doida, coitada! Hj sinto saudades e se pudesse voltar ao tempo, com certeza me sentaria com eles num banco de praça e ficaríamos horas a prosear uns causos!

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  4. Eu sou a Rosária, Rosa, Rô!

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  5. Obrigada Rosa... sua doida!!! Rsrs

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  6. Abordagens excelentes! Parabéns Santuza! Lembranças, fatos e inspiração. Grande abraço.

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