Em meio à tragédia acontecendo no Rio Grande do Sul, tivemos o desprazer de ouvir, nesta semana, a fala do governador daquele estado, pedindo aos brasileiros solidários que parem de enviar donativos para a região, pois está "atrapalhando" o comércio local:
‘Volume grande de doações pode impactar o comércio do RS"
Então, no outro dia, a partir das reações de perplexidade com essa fala, assim como de críticas pesadas à mesma, o ilustríssimo governador volta a público com a intenção de pedir desculpas e "esclarecer" sua fala:
“Ninguém está livre de errar”. “Em nenhum momento eu tive a menor intenção de inibir ou desprezar as inúmeras doações que o Brasil e o mundo estão fazendo para ajudar o nosso Rio Grande nessa reconstrução. São todas as doações muito importantes e bem-vindas.”
Essa coisa de dizer e depois "desdizer" me levou a uma reflexão importante para a vida, para o auto conhecimento e as relações humanas, tanto no nível das nossas subjetividades quanto no nível de nossa visão de mundo: uma primeira ideia, óbvia, é a de que nós usamos a fala, a linguagem, para nos expressar, dizer o que pensamos, sentimos, percebemos, nossa visão de mundo. No entanto, poucas pessoas percebem outra obviedade: a fala fala até mais da gente... do que a gente fala a fala...
Ou seja, se a gente "observa" a nossa fala, essa é a grande oportunidade que temos de nos conhecer.
Explicando melhor: além de usarmos a fala para nos expressar, a fala também nos fala de nós... Muitas vezes, ao estarmos atentos à nossa fala, "nos descobrimos" nela, percebemos posturas, jeitos de pensar e sentir internalizados, enraizados, ideias sobre eu mesma e sobre o mundo, que reproduzimos no automático, e que não tínhamos consciência.
A cultura é nossa segunda natureza, nossa segunda pela, já dizia o grande pensador Nietzsche (1844-1900).
Na experiência terapêutica, vamos aprendendo a prestar atenção à nossa fala, com o objetivo de nos conhecer através dela... assim como vamos aprendendo, também, a nos expressar da maneira mais autêntica possível, o que penso, o que sinto, o que quero... e a realizar o movimento de alteridade, de considerar o outro nos seus afetos, desejos e visão de mundo... aí dá samba, dá poesia, como diriam nossos compositores, nossos músicos e nossos poetas.
A propósito desse tema, há pouco tempo atrás conversava com um grande amigo e surgiu o assunto feminismos. Quase de imediato ele começa a criticar mulheres feministas, "conheço algumas que são chatas, radicais...", e por aí foi caminhando a crítica.
Argumentei sobre a história do feminismo, desde as sufragistas... passando por Simone de Beauvoir... as ondas do feminismo, os anos 80, as "feministas brancas" que se permitiram "saírem de casa" para trabalhar às custas das "empregadas domésticas", babás, que mais criaram nossos filhos do que nós mesmas, mulheres exploradas, geralmente negras ou pardas... daí o feminismo negro, mulheres que já trabalhavam muito antes do que nós ... daí as novas ondas do feminismo: o feminismo interseccional, o feminismo emancipatório... principalmente o feminismo necessariamente vinculado à luta de classes, pois feminismos alienados dessa luta se transformam em "identitarismos" que mais alimentam essa nossa sociedade injusta, de exploração... sabemos que o sistema capitalista é fundado no patriarcado, no racismo e no machismo... e , claro, encobre essa realidade com flores, incensando a mulher, e por aí vai... até que, se alguma de nós se afirma de alguma forma, aí pode estar certo que a violência acontece, também das formas mais sutis até o feminicídio.
E por aí caminhou minha argumentação... disse, ainda, da importância do radicalismo - ir à raiz; e da importância de verificarmos e aprendermos com os erros para realizarmos o movimento histórico.
Percebi que não o sensibilizei com minha argumentação...ele continuava na crítica ao feminismo, uma crítica que não acrescentava, uma crítica destrutiva... mudamos de assunto... ficou pra mim a satisfação pessoal do desenvolvimento da minha visão.
Pois não é que no outro dia recebo um e-mail da pessoa querida que, numa tentativa de se justificar, faz uma "cobra que morde o rabo"... ou seja, como aquele governador citado, só faz reforçar - e revelar - sua visão de mundo... em vez de se ver na fala.
Ei, Santuza, beleza? Tudo bem por aí? Ontem eu fui dormir incomodado pq eu vi que passei uma impressão errônea pra vc sobre o que eu sei sobre o feminismo. Na verdade eu me expressei mal. Tudo o que vc falou pra mim ontem não foi nenhuma novidade daquilo que eu já tinha lido e visto. É claro que eu não sou um estudioso do feminismo como vc, não faço uma leitura profunda., apenas faço leituras rasas e assisto a documentários sobre o tema e que por mais rasa que seja, já é o suficiente pra me deixar bem informado. Já assisti a ótimos documentários sobre a ativista estadunidense Angela Davis, p.ex., que inclusive menciona a brasileiríssima Lélia Gonzalez, filósofa , política e ativista negra e que não está entre nós. Assistindo ao documentário no canal curta (há uns 3 anos, durante a pandemia) deu pra perceber que estas duas são expoentes do movimento feminista . Então é claro que eu não tenho uma visão ultrapassada do feminismo
O que eu tentei te falar ontem é que eu acho os termos “feminismo, feminista” são termos pejorativos pq a maioria das pessoas quando ouve, acham que é militância contra os homens, que é guerra dos sexos, que as mulheres querem dominar o mundo, escravizar os homens e outras idiotices e absurdos. É a mesma coisa com relação a comunismo. As pessoas ainda acreditam que os comunistas são pessoas demoníacas e que comem criancinhas. Essa é a realidade da ignorância de uma grande parte da população . Então eu acho que o termo vem carregado de significados negativos e que na minha humilde opinião, teria que ser reinventado através de outra nomenclatura principalmente pq o mundo mudou muito desde a década de 1960. O movimento teria que ser ampliado de modo a incluir por exemplo as mulheres trans que, FELIZMENTE, estão saindo da clandestinidade e se projetando cada vez mais na nossa sociedade, às custas ainda de muito preconceito, violência e homicídios. Então o feminismo tem que ser ampliado para abrigar mais diversidade, incluir novas lutas, novos direitos. Então isso é o que eu penso do feminismo. Ele vai ter que se reinventar pra se impor mais na sociedade com menos rejeição e mais aceitação. Do jeito que ele está, não vai conseguir avançar muito. Então isso é o que eu gostaria de ter te falado ontem mas que não fui feliz nas minhas colocações .
Na verdade o que eu escrevi acima é apenas um breve resumo do que eu penso sobre o tema . Mais sobre o tema, só repetindo um novo encontro. Aliás, o nosso encontro de ontem foi muito legal. Temos que repetir
Nunca li uma Simone de Beauvoir mas já li muitas coisas legais sobre feminismo escritas por escritores brasileiros e algumas artistas como a Maria Ribeiro, embora eu ache ela meio chatinha
Será que temos que mudar as palavras para atender a essas pessoas... que não desejam rever seus conceitos, estão fechadas nos pré-conceitos, nas ideias prontas e acabadas que lhe enfiaram goela abaixo? Uma mudança nas palavras levaria essas pessoas à novos conceitos? Interessa a elas esses novos conceitos orientadores de uma vida mais bonita, mais bem vivida, mais inclusiva, mais justa? Elas não estariam fechadas nos seus privilégios?
Da minha parte, não acredito que mudando a palavra mudaria alguma coisa, nem feminismo e nem comunismo... Penso, ainda, que meu amigo deve ter parado no tempo e na história a respeito do feminismo, e não tenha visto as nossas reinvenções e inclusões. Ele, ainda, se fecha nas suas verdades, se esquecendo de que a "pergunta" é o principio da ampliação da consciência. Será que ele está lendo sobre feminismos através de "escritores brasileiros"? homens?
Assim como não confio no pedido de desculpas do caríssimo governador. O que não muda nada, ou melhor, fica evidente, é a sua visão de mundo, ou seja, o MERCADO é tudo, é ele que deve ser protegido, não as pessoas...
Aproveitando para, a propósito do dia de hoje, 17 de maio, dia internacional de luta contra a LGBTfobia, inauguraremos amanhã, dia 18, a nova sede do ...
Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais – CELLOS/MG, entidade da sociedade civil que luta pelos direitos e promoção da cidadania da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais – LGBT. Além disso, luta contra a LGBTfobia e quaisquer formas de preconceito por orientação sexual ou por gênero.
O SBC chega junto com o CELLOS...
E o feminismo, sem dúvida, participa desse movimento...
Sobre o "cuidado" com nossa fala, é sobre o cuidado conosco mesmx, o cuidado do auto conhecimento, o cuidado de perceber as internalizações culturais que nos fazem diferentes do que queremos... não o cuidado do se policiar e querer mostrar outra coisa do que não é, ou não pensa... isso aparecerá, não duvide... o bom mesmo é caminhar para a autenticidade, o ser - e se mostrar - o que sou - o que penso, sinto e quero - e a abertura para a mudança...
Bravíssima!!!
ResponderExcluirAmei!
ResponderExcluirÉ verdade, temos que tomar cuidado com o que sai da boca!
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