sexta-feira, 26 de março de 2021

O S B C FALA!

 


Começamos nossa crônica prestando homenagem a uma grande artista brasileira, pouco conhecida, praticamente invisibilizada, será possível entender o porquê: trata-se de Heloísa Orosco Borges da Fonseca (1945 – 2018), a Luli, ou Luhli  – cantora, compositora, instrumentista e escritora carioca  – formou na década de 1970 um dupla independente com Lucina, que existiu até 1996.

Mas o fato é que Luhli, como a artista passou a se chamar a partir dos anos 1990, começou a carreira sem Lucina, tendo lançado em 1965 um álbum solo, Luli, que deu início à obra fonográfica, encerrada com a edição de outro álbum solo, Música nova (2014), ultimo título da discografia dessa artista que morreu  aos 73 anos, vítima de insuficiência respiratória. 

Em dupla com Lucina, Luhli rompeu com padrões musicais, comportamentais e mercadológicos ao longo dos anos 1970, fazendo música de forma independente, livre de pressões empresariais e de amarras estéticas. Parceiras na música e na vida, Luhli e Lucina têm músicas interpretadas por Ney Matogrosso, que gravou Pedra de rio (1975) e Bandolero (1978), entre outras composições da dupla.


Ícones da juventude, transformação e ousadia, Luhli e Lucina viviam juntas também com o fotógrafo Luiz Fernando, formando um ‘trisal’.

                                            Lucina, Luhli e o fotógrafo Luiz Fernando. Foto: Arquivo Pessoal

A história de Luhli e Lucina é contada no longa-metragem “Yorimatã”, de 2014, dirigido por Rafael Saar.

Para quem não liga o nome à música, Luhli é autora, ao lado de João Ricardo, de duas canções de 1973: O vira e Fala, esta última  uma das mais emblemáticas do período. Duas músicas que se tornaram sucessos do grupo Secos & Molhados, no qual despontou Ney Matogrosso. Foi Luhli quem apresentou o cantor ao compositor João Ricardo. 

Difícil imaginar um grupo tão pequeno de pessoas que tenha dado contribuição tão significativa, tanto no comportamento da juventude brasileira quanto na música.

Mas lembramos muito mais de João Ricardo do que dela, não é? Mulheres são invisibilizadas... quando falam que temos de ser umas dez vezes melhor do que um homem para "aparecermos" na mesma medida, acham que é um exagero, mimimi...

E é da música FALA que queremos tratar, ou melhor, usar como pré-texto para um texto sobre feminismos, politica, relações afetivo-sexuais e todos os níveis de relação, ou melhor, conversas SBCenses, daquelas que nos enriquecem como seres humanos e relacionais. A gravação a seguir é da própria LUHLI.



Eu não sei dizer
Nada por dizer
Então eu escuto
Se você disser
Tudo o que quiser
Então eu escuto
Fala
lá, lá, lá, lá, lá, lá. lá, lá, lá
Fala
Se eu não entender
Não vou responder
Então eu escuto
Eu só vou falar
Na hora de falar
Então eu escuto
Fala
lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá, lá
Fala

E estavam, xs dois amigxs, ambos do século passado, uma mulher e um homem, numa super conversa SBCense  - alegre, proveitosa, etílica, musical... -  sobre história e "músicas que mudaram nossas vidas". E ele, homem, super engajado politicamente,  lembra a música FALA: anos 70, época de muita repressão, a ordem era não se juntar, não falar, não trocar ideias, isso era "muito subversivo". E essa música ele cantava muito, era uma das mais emblemáticas da época... época, também, de grandes e divertidas "transgressões": todxs nós ficávamos sabendo de como se burlava a censura. Chico Buarque usou, nessa época, o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Então essa música é, essencialmente, política, neste caso, num sentido amplo da palavra, nós "sabíamos" a que se referia o "cala" e o "fala".

E ela, uma mulher, atualmente militante política e social,  lembra sua história dessa época, anos 70 pra 80: uma época de alienação, além da alienação política "exigida", até mesmo para cumprir de maneira "perfeita" seu papel de mãe, esposa... tentando ser profissional e alcançar a autonomia (que é muito mais do que a econômica - de pensar, sentir e agir - mas passa pelo bolso); e, também nessa época, começando a ter uma certa consciência política, especialmente através da sua consciência de gênero, ou seja, de mulher, branca, classe média, oprimida nesses papéis de reprodução de um modelo social bastante útil ao patriarcado e ao capitalismo. 

Pois bem, nessa época de começo de tomada de consciência, ela tinha a música FALA como um "hino do macho", ela queria e tentava a relação dialógica, e não conseguia...então, começou a desenvolver um conceito bastante interessante: o conceito de "autoritarismo do submisso", daquele que se cala e "finge" concordar com algum combinado, por exemplo, "eu cuido das crianças até certo horário e depois é você" - e o combinado "depois" não acontece!; "eu cuido da dedetização e você cuida de mandar consertar o chuveiro"... e o chuveiro fica meses sem consertar, e ela vai "cobrar um combinado" e ele responde "não, só combinei porque você me forçou, você é muito autoritária!" Aff... 

Ao mesmo tempo, ela conta essa história orgulhosa de si mesma, de ter caminhado no sentido da libertação (de pensar, de sentir, de agir... e a econômica).

Então, voltando ao agora... estavam os dois no maior papo, quando ela foi surpreendida com uma reação do homem, meio que indignado, com a interpretação dela da música! pois que essa música é de uma importância histórico política tal que "COMO você pode colocá-la nesse nível de relação!!!"

E aí ela pensou em como o machismo mora nos detalhes... e riu... e continuaram conversando - os dois prezam a RELAÇÃO DIALÓGICA - e conversaram sobre o documentário "O silêncio dos homens"... 

Busquem este filme no youtube, ótimo para os tempos atuais... é o que temos. Mas ele serve somente como pretexto (ou pré-texto) para discussões, críticas e aprofundamentos: fala sobre o sofrimento dos homens, a repressão ao choro, o fato de não terem aprendido a falar, expressar suas emoções, entre outras coisas... porém, o documentário NÃO toca no assunto "privilégios", tampouco no tema patriarcado, temas que poderiam levar a uma bela compreensão histórica dessa "cultura masculina" que está posta no nosso mundo, na nossa sociedade. 

Continuando a relação dialógica, pensaram que o movimento histórico de superação da mulher, da sua condição de "grande mulher por trás de um grande homem" se deu (ou se dá...) quando ela abre mão dos privilégios e enxerga a escravidão, a submissão, a exploração, a subalternidade... incensada, travestida com elogios do tipo "rainha do lar" (expressão do século passado que é apenas "repaginada" atualmente, e serve para nos colocar "no nosso lugar", mesmo que já tenhamos, um tanto, saído dele).  


Ela lembra um texto super filosófico, de Hegel, 
trocentos anos atrás, sobre a dialética da relação senhor-escravo, e tenta dizê-lo de uma forma bem simples: o escravo tem o fazer, ele não tem a consciência de que seu fazer o levaria à liberdade... então ele faz para o senhor... pensando em mudar de lugar com o senhor, ter o senhor como escravo; já o senhor não tem nem o fazer e nem a consciência: ele sabe manipular o escravo para o escravo fazer pra ele... a consciência do senhor vem com a consciência do tanto que ele é escravo... ele é escravo do escravo... ele depende do escravo para qualquer fazer. 

Veja como nós somos escravos e somos senhores ao mesmo tempo. Não temos, ou não aprendemos, a consciência que nos leva à liberdade... e veja outro aspecto importante:  como a compreensão dessa dialética se aplica tanto às relações homem-mulher quanto, também, e perfeitamente, às relações de trabalho no nosso mundo capitalista. Compreensão possível para percebermos a alienação do trabalhador (escravo que quer ser  senhor), e criarmos a possibilidade de caminhar para a superação desse modelo de exploração. E a construção de um outro modelo, no qual o trabalhador se conscientize de que ele é o protagonista, o dono dos meios de produção, que foram usurpados pelo capitalista.

E quanto a opressão à mulher? - é histórica, assim como a luta pelos nossos direitos e pela equidade. E a luta das mulheres vem a ser uma luta contra o patriarcado, ou seja, também contra o capitalismo, pois um está intimamente ligado ao outro. E fica evidente, também, que é uma luta contra a opressão de classes, pelo socialismo e comunismo. Homens que percebem isso se tornam feministas, no sentido mais profundo. O mundo capitalista reproduz, para todxs nós, miséria e sofrimento.



Lembraram, também, da frase 'MANTRA' extraída do livro "O segundo sexo", de Simone de Beauvoir,  e que também se aplica ao nível das relações de trabalho, livro de cabeceira dos dois na juventude, mais ou menos assim: ... a pessoa que abre mão do trabalho que dá, do esforço que ela precisa fazer, na direção da construção de uma EXISTÊNCIA AUTENTICAMENTE VIVIDA... se submete, vira escrava... e podemos, e precisamos, pensar essa frase, também, no plural: daí a luta de todxs nós, mulheres e homens. Daí a política "na cama e no mundo".

E por aí caminhou a conversa... nem foi só uma conversa... pois as conversas SBCenses duram muuuiiito...E descambaram para uma revisão histórica das suas vidas... de como ele incorporou, ou foi "criado para" ser um "super-macho"... pois não é que ele é do tempo que o homem se orgulhava quando podia dizer "eu não preciso - não quero -  que minha mulher trabalhe fora"... e, pior, isso era uma espécie de "prova de amor" do homem, que a mulher se orgulhava também! e vai que o homem (nem precisamos agora falar sobre o movimento de libertação da mulher) começa o processo de libertação, e a mulher não compreende isso, e considera "desamor"... aí vão acontecendo as tragédias... e por aí vai a história do movimento desse homem, no sentido da desconstrução desse machismo enraizado. 

Ela admirou seu esforço, sua construção, pois que ainda vivemos num mundo que valoriza muito mais a permanência do homem "agarrado no machismo", com todos os privilégios desse "machismo enraizado", mesmo que com todos os sofrimentos dele decorrentes. 

E conversaram também sobre o engano da expressão "machista em desconstrução". Engano no sentido pessoal, do homem que diz isso... e acha mesmo isso... e não vê as reproduções (estruturais) do machismo. Falta-lhe a humildade de se ver, ele se acha, ou melhor, ele tem certeza... que nem a pessoa que diz que não é preconceituosa... morro de medo... pois ela não é capaz de ver os próprios preconceitos...mecanismo de negação, conhecem? E engano da mulher que ouve isso e fica encantada. Geralmente é uma tática de "machistas de esquerda" (são fofos), usada para conquistar mulheres românticas. E mulheres feministas e libertárias também são susceptíveis, pois permanecemos, um tanto, também românticas.

Enfim, é muito difícil, tanto para o homem quanto para a mulher... trata-se de uma disposição para "arregaçar as mangas" e trabalhar muito no sentido da desconstrução desse modelo e, claro, na construção de um modelo que ainda está por vir, nunca pronto e acabado (pois seria dado e não construído), orientado pelo sentido estético, o sentido do belo, do bom pra vida. 

E, claro, ele compreendeu que a sua "interpretação" da música dizia respeito à sua época, à sua perspectiva política... o que não "reduz" outra compreensão possível - a da mulher -  à "mera" relação íntima, afetivo-sexual. Pois AMOR E POLÍTICA FAZEMOS NA CAMA E NO MUNDO, essa é uma compreensão SBCense de política, de alguma forma em parceria com SBCenses famosxs: Hanna Arendt, Marilena Chaui, Paulo Freire, Judith Butler, Rubem Alves, entre outrxs.

E concluíram (claro, provisoriamente...) com a reflexão sobre a construção de um mundo relacional em que isso sirva para todos os gêneros, ou melhor, que consigamos "abolir" o conceito de gênero, pois somos seres humanos, todes nós... GÊNERO: trata-se de uma construção social sobre um corpo biológico... construção essa que nos aprisiona... foi então, entre eles, reforçada a convicção de que a superação da "caixa" gênero possa ensejar a construção de um mundo melhor, onde teremos relações mais simétricas, prazerosas, de bons encontros e crescimento mútuo. 

E que as discussões sobre políticas identitárias não devem ser "descoladas", separadas, das discussões sobre LUTA DE CLASSES. Por isso a revolução feminista, assim como a luta contra o racismo, contra a LGBTQIA+ fobia, entre outras, são, essencialmente, lutas políticas revolucionárias.

Ainda, não tenhamos a ilusão de que, com a superação do capitalismo, resolveremos todos os problemas relacionais. A  construção de relações mais bonitas, prazerosas,  em todos os níveis de relação,  é constante, tanto nesse sistema quanto no que nos propomos a construir... pois disso é feito o humano, um processo constante, nunca pronto e acabado.

Mas, por enquanto, estamos discutindo as "caixas" de gênero, e, para terminar, do mesmo grupo do "Silêncio dos Homens", temos a sugerir um vídeo mais curtinho e muito bom para  continuidade de nossas reflexões: 


Reproduzindo o princípio do vídeo: 

. Na década de 80, o educador, Paul Kivel desenvolveu o conceito da "caixa dos homens". Uma caixa que representa regras de comportamento que todo homem deveria seguir para ser "aceito" por outros homens.

. Regras como: ser DOMINANTE e AGRESSIVO, NUNCA demonstrar FRAQUEZA, evitar EXPRESSAR EMOÇÕES, nunca fazer "coisas de mulher" e BUSCAR SEXO a todo momento.

...Para incitar a "leitura" do vídeo e a reflexão.

Abraços carinhosos ...







4 comentários:

  1. Excelente texto! Muito a comentar. Sugiro um encontro para falarmos dele e aprofundarmos. Muito bom!

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  2. Muito bom,Santuza! Parabéns pelo texto! É um grito de liberdade!

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