segunda-feira, 1 de março de 2021

Conversas SBCenses: SOBRE FAMÍLIA... E OUTRAS RELAÇÕES...

Conversando com um grande amigo ele me “re-aplica” um grande filósofo e psiquiatra brasileiro dos meus tempos de juventude: Gaiarsa, José Ângelo Gaiarsa. Não tem como conversar sobre Gaiarsa e não recordar|resgatar nossa história dos anos 70|80, transgressora, libertária. Ainda mais com esse amigo, que adora conversar, conversamos até “espumar o canto da boca”, como diz uma outra amiga. Esse estereótipo feminino que diz que as mulheres falam demais é, na minha redefinição, uma ultra qualidade. Homens interessantes conversam até mais que mulheres, falam muuuiiito... sobre o que pensam, sobre suas emoções, elaboram teorias, trazem pra conversa suas leituras, seus autores preferidos ... e isso é lindo! Ao redor de nós, nas nossas conversas, temos, quase sempre, Freud, Nietzche, Hanna Arendt, Marx, Lenin,  Guimarães Rosa, Paulo Freire, Emma Goldman ... e filósofos contemporâneos: Vladimir Safatle, Francisco Bosco, Maria Rita Kehl, Chimamanda Adiche, Marcia Tiburi, Marilena Chauí ... e muitxs outrxs. E também poetas e artistas: Adélia Prado, Drumond, Cora Coralina, Chiquinha Gonzaga, Chico, Daniela, Elza. Ele disse que minhas escritas parecem com o Gaiarsa... preferia que fosse com a Maria Rita Kehl, mas gostei também...



Enfim, meu convite é resgatar esse grande psiquiatra e sorver da sua sabedoria... e conversar com ele, lembrando outros livros, filmes, músicas... que nos servem para aumentar nossa competência para o “bem viver”.



Gaiarsa nasceu em 1920 e faleceu em 2010. Seu último livro foi: 

MEIO SECULO DE PSICOTERAPIA VERBAL E CORPORAL

Até 2008, 2009 estava publicando livros: 

 





Mas sua maior produção acredito que tenha sido nos anos 70 e 80. Coloco alguns desses livros aqui, todos eles libertários, todos eles incrementando a luta contra todo tipo de autoritarismo, todos eles super SBCenses:

 



Gaiarsa foi um dos maiores críticos da família e da hipocrisia social que a cerca. Para ele, o conjunto de regras que obedecemos desde que nascemos - regras essas que transmitimos a nossos filhos mesmo tendo sofrido com elas - só serve a um propósito: o da opressão.


Ele também desmistifica os grandes personagens que compõem a ideologia familiar: a mãe perfeita, a pai abnegado, o filho vítima. 

Gaiarsa mostra que o amor não pode ficar restrito a determinadas amarras. Ele nos ajuda a rever todos os nossos (pré)conceitos sobre fidelidade, família, relacionamentos e felicidade. 

PODER E PRAZER

O livro negro da família, do amor e do sexo

Nesse livro ele  fala sobre as origens pré-históricas da agressão, sua ligação com a sexualidade, sua continuação na forma de organização social (luta de classes) e na família, onde são aprendidos, implicitamente, todos os jogos do poder.



Dois ótimos livros dele, da coleção Primeiros Passos, livrinhos de bolso super fáceis de ler e super instrutivos. E também super SBCenses. Já conversamos e escrevemos sobre esse assunto: uizinho, ui, uizão e chalap-chalap, tema bastante instrutivo para uma "geração SBCense". Veja nosso post de 14 de março de 2012.





E outro livro do Gaiarsa totalmente SBCense: Tratado geral sobre a fofoca: uma análise da desconfiança humana. Lançado originalmente em 1978, este livro permanece tão atual que parece ter sido escrito ontem. Aqui,  Gaiarsa faz uma análise sociológica, filosófica, histórica e psicológica da fofoca. Ele afirma que, quando fazemos fofoca de um indivíduo, colocamos nele todos os preconceitos que estão dentro de nós. E, ao fazermos isso, automaticamente nos livramos de qualquer defeito, tornando-nos modelos de perfeição. As consequências são drásticas: além de fazer mal ao outro, frustramos toda e qualquer possibilidade de mudança interna que pudesse nos levar a um patamar mais elevado de consciência. Ou seja, nosso conhecido mecanismo de projeção, o "mal" está no outro, nós somos a perfeição.

Muito bom, o SBC recomenda... Mas para além dessa análise sobre a fofoca feita por ele, nós do SBC nos permitimos elaborar uma outra análise possível, digamos, um "conceito positivo", uma ressignificação da palavra fofoca: pois, quando falamos de alguém é porque queremos aprender com esse alguém, trata-se da prática da competência essencialmente humana, que vem a ser "aprender com o(a) outro(a) e oferecer também a minha experiência para que x outrx aprenda comigo". A isto o SBC denomina "pesquisa antropológica". Claro que com um pouco do "cinismo" peculiar ao SBC... "tem gente que não presta... são as melhores pessoas".

 

Mas a conversa sobre Gaiarsa suscitou lembranças de outros livros interessantíssimos, como diria, “do baú”...

Como vimos, ele critica essa organização social tão incensada, o casamento e a família. Crítica que também fazemos. Sempre me pergunto: para que serve, na nossa sociedade, essa super valorização deste nível de relação (casal e família) e uma “desvalorização” do nível de relação de amizades? nós nem “aprendemos” a valorizar as amizades, nem faz parte da nossa “educação”. 

Mas a família... Haaa... ai de quem ousa criticar... torna-se o\a herege, a “ovelha negra”... e não é incrível que o maior índice de violência contra mulheres, idosos, crianças, pessoas mais vulneráveis, se encontra no seio dessa “santa instituição”? 

Resgatamos duas falas do Gaiarsa sobre AMOR e FAMILIA:

 

Atenção aos dois últimos parágrafos... sobre eles nos debruçamos, ou melhor, conversamos e elaboramos...



Novamente o último parágrafo, que reforça a ideia da "dificuldade do modelo da juntividade" que conhecemos.



"É preciso amar as pessoas 
Como se não houvesse amanhã
Por que se você parar pra pensar
Na verdade não há...

E esse resgate nos fez lembrar e conversar, além do nosso querido Renato Russo,  sobre dois livros bacanérrimos, muito antigos.

O primeiro deles:

 


De 1980

David Cooper é um psiquiatra existencial de vanguarda que, juntamente com R.D.Laing, tem se dedicado à pesquisa no campo da psicologia e do tratamento de esquizofrênicos. Esse trabalho o convenceu de que a noção de família impregna a vida interior do indivíduo, destruindo-lhe a independência sexual e social. Este livro, fruto dessa convicção, é uma crítica severa dos conceitos da "situação familial". 

O livro é, sem dúvida, revolucionário. O autor não se contenta em criticar, mas vai mais além e discute as alternativas para a família convencional dando exemplos de como os objetivos "familiais", que dominam a vida, podem ser rejeitados. Analisa também, as dificuldades frequentemente encontradas na formação de comunas ou antifamílias.

  

o E um outro livro discutido a partir do Gaiarsa: o Livro de uma Sogra, de1895.


Este é o autor, Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo.  Nasceu  em 1857 e morreu em 1913,  foi o principal autor da vertente naturalista no Brasil e o primeiro escritor a viver de literatura no país. Exímio retratista de tipos sociais, escreveu inúmeras obras, entre romances, contos, crônicas e peças teatrais, além de ter sido  desenhista e caricaturista. Bonitão e super atual no seu bigodon  Handlebar, estilo bastante popular entre os hipsters e também chamado "guidão" porque parece com  guidão de uma bicicleta. Aluísio é mais famoso por seu livro:

Cortiço, romance naturalista  publicado em 1890 que denuncia a exploração e as péssimas condições de vida dos moradores das estalagens ou dos cortiços cariocas do final do século XIX.


Voltando ao Livro de uma Sogra, este foi o último romance de Aluísio Azevedo, onde ele teoriza sobre o casamento.  Foi escrito no século XIX – 1895, no Rio de Janeiro. Esse romance trata da vida de casada de Olímpia, uma mulher oriunda de uma família tradicional, que chegada a hora de casar a única filha, Palmira, começa a busca por um marido ideal para ela.

O amor pode até durar para sempre, mas é possível amar alguém todo dia? Aluísio de Azevedo jura que não. "Não há estômago que resista a faisão dourado todos os dias; o melhor acepipe, se não for discretamente servido, enfastiará no fim de algum tempo", diz ele.
(acepipe = petisco, tira gosto, prato servido para abrir o apetite, tipo "comida de buteco")

Olímpia, a sogra,  ela mesma "vítima" do casamento, filosofa e trama as condições que irão propiciar felicidade à filha vivendo sob a égide do matrimônio.

O primeiro princípio estabelecido pela sogra - e ela é mais irredutível que qualquer outra - é o da separação de corpos. Cada um dos cônjuges deve viver em sua própria casa. O marido segue, então, visitando e sendo visitado pela mulher, como nos tempos de namorados, em dias alternados, e nem sempre pode desfrutar de uma noite inteira a seu lado. É que a sábia sogra acredita que a convivência no dia-a-dia é a pior inimiga do casamento.

Algumas coisas no livro tanto devem ser situadas historicamente, como também podem servir de análise da atualidade, como, por exemplo, o racismo da “alta sociedade”, assim como a “inferioridade” da mulher... Naquele tempo ela defendia a tese de que a mulher, por mais inteligente que seja, precisava se colocar num lugar inferior em todos os aspectos: mais frágil, mais baixa e até mais feia. O homem, por outro lado, é obrigado a aceitar a própria mediocridade para se tornar um "bom marido", porque gênios e artistas dão péssimos cônjuges, dizia Olímpia. 

Será? O SBC acha que sim... talvez ótimos amantes atualmente, numa redefinição SBCense de amantes: pessoas que amam a vida, a liberdade, e que amam bons encontros.

E por aí íamos nossa conversa de “espumar o canto da boca”, quando me lembrei também de um caso pertinente ao assunto: o de uma mãe, digamos, libertária, que educou a filha dentro desses princípios. Pois não é que essa mãe me relata, com perplexidade, que, quando ela já separada, a filha, por volta dos seus 15 anos, termina com seu primeiro namorado. E ocorre o seguinte dialogo, carregado de choro:

. Filha, você já tinha me dito que não estava, digamos, gostando tanto dele, não é? você não estava mais feliz com ele...

. Sim mãe! Mas eu não queria repetir o seu modelo, eu queria que durasse para sempre!!!

. Heim!!! Como assim!!! Você que ser feliz ou quer uma relação duradoura?...

E olha que este diálogo deve ter uns 10 a 15 anos, relativamente recente. Ainda bem que essa filha, agora, evoluiu para a libertação desse modelo.

Mas nenhuma e nenhum de nós estamos livres de repetir modelos, pois estes estão terrivelmente enraizados, cravados a ferro e fogo nos nossos espíritos... além de repetidos diariamente no que ouvimos, nas músicas, na poesia, na arte em geral, que se presta tanto ao trabalho de reproduzir esses modelos como também antecipar, criar novos modelos. A gente canta e canta e repete... e deseja o que, racionalmente, dizemos que não...

Então, outro caso de repetição do modelo: pessoa super amadurecida emocionalmente, alguns “casamentos” na sua história de vida, frustações (claro que também alegrias...)... agora solteiro, feliz sozinho, com amigos e amigas, amantes ... numa conversa despretensiosa sobre fantasias de futuro ele descreve um sitio onde produza, ele mesmo, seus alimentos e viva com a natureza... talvez perto da cidade, pois também gosta dessa movimentação urbana... aí, quando ele continua na sua fantasia, descreve “uma mulher que queira, talvez, a mesma coisa, e que nos juntemos pra sermos felizes”... 

Fiquei pasma... rosa chiclete... me amarrota que eu tô passada...  vejo nessa simples descrição de uma “imagem mental de futuro", a repetição completamente desnecessária de um modelo, tão enraizado que dificilmente saímos dele... dificilmente pensamos uma vida boa com amigos, com amantes, cada um na sua autonomia... não é uma ilusão ele pensar que exista uma mulher com o desejo tanto quanto o dele para ficarem juntos? para um encontro de desejos durante todo o tempo, de manhã, a tarde, a noite? na prática isso se dá, quase sempre, com a submissão da mulher ao desejo do homem... e depois acabam a vida infelizes “para sempre”...

Mas continuamos a conversa: e concluímos (provisoriamente) falando sobre o projeto SBCense BLUE SKY VILLAGE... A VILA DO CÉU AZUL... Trata-se de uma comunidade onde todxs vivem de maneira autônoma, todxs tem as suas casas, e se reúnem para os projetos em comum, para trabalhar na horta, ver filmes, dar caminhadas, cantar, dançar... e, claro, administrar a comunidade... e a cada um de acordo com suas necessidades, e de cada um de acordo com seu trabalho. E, claro, este projeto não está pronto, senão seria um projeto autoritário, imposto. Está para ser construído, juntxs...

Parece um projeto ainda tão distante da nossa fantasia... e tão possível, se arregaçarmos as mangas e trabalharmos por ele...

E essas conversas sobre autores do século passado me lembram sempre como é bom pra vida nos apropriar da nossa história, conversar sobre o passado para, com ele, fazendo nossos joeiramentos, escrever de uma maneira bonita nosso futuro. E aí me vem, de novo, nossa querida Evinha... "Eu vou voltar aos velhos tempos de mim..." significa esse resgate... necessário para a construção prospectiva. Terminamos com ela...

Bora voltar aos "velhos tempos" de nós!!! pra resgatar coisas boas pra vida...

Abraços carinhosos a todas, todos e todes...





https://youtu.be/fKFmrHyuCT0



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