quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Um dia no FESTIVALE

 


Couto de Magalhães de Minas é um município do estado de Minas Gerais, da nossa região do VALE do Jequitinhonha, onde aconteceu o 39o FESTIVALE - Festival de Arte e Cultura do Vale do Jequitinhonha, no período de 21 a 27 de julho 2024.

Conhecida, antes de sua emancipação, pelo nome de Rio Manso; surgiu entre os pioneiros núcleos de povoamentos ligados às lavras diamantíferas, nos primeiros anos do século XVIII. 

José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), nasceu em Diamantina. Foi um político, militar, etnólogo, escritor e folclorista brasileiro. Deu o nome à cidade.

No entanto, faz parte das nossas conversas, das pessoas que amam o vale, nos nossos encontros nos Festivales e em outros, a manifestação do desejo de várias cidade do nosso vale retomarem seus nomes originais, os mesmos fazem, muito mais, parte das nossas histórias e da nossa identidade. Por exemplo, Itaobim, pedra verde, terra do nosso querido Tadeu, não mudou de nome.

E, com tristeza,  já tínhamos desistido de ir ao Festivale nesse ano.  Quando acontece o convite do nosso amigo, grande poeta Aníbal, classificado para a Noite Literária que acontece na quarta feira, o que nos trouxe grande alegria.



Não sem antes passarmos por sua casa, adoro as janelas dessa casa... chegamos a Couto de Magalhães na quarta. Foi somente um dia, mas um dia esplêndido... de aprendizagens, de reflexões,  de bons encontros, de arte e poesia, enfim... Um dia pleno... Uma sorte na vida...

À tarde,  Aníbal envolvido com a apresentação do seu poema, combinamos nos encontrar as 16h... e pude participar da Roda de conversa, IV ENCONTRO DE MULHERES NO FESTIVALE. Surpreendente, potente... 

Começa com o poema da Dea Trancoso:

"Não.

Eu não sou a princesa de cândido olhar. Adama que cruza as pernas em longa elegância. A sinhazinha que concorda sem urgências. Sou uma velha mulher selvagem capaz de ver e de suportar o que vê. Quanto mais vejo minhas trevas e minhas horrendas carnificinas, mais a luz se aglutina em torno de mim me dizendo que o trabalho profundo é, com certeza, o mais sombrio.

Não.

Eu não sou a que bate cílios nos salões pomposos e sensuais. Sou a que enxerga no escuro. Não tenho medo de sangue. Não tenho medo de vísceras. Não tenho medo de podridão, fedor, dejetos. Não tenho meda da vida. Não tenho medo da morte. A verdade é um corte. A verdade é um corte na artéria. A recordação do que se viu e se sabe é dolorosa. Saber é uma dor porque a dor é uma porta de acesso ao mistério.

Sim.

Eu sou uma velha mulher selvagem... Venho de linhagens antigas que caminham sobre a planeta lembrando; procurando as chaves escondidas debaixo da língua, assim como Elêusis: fazendo as perguntas, buscando a pista, o indício; as palavras capazes de abrir a porta.

Sim.

De vez em quando, meus mestres, os corvos marinhos, almas devoradas de pecados, vêm comer os meus, me preparando para ser redimida e purificada, como rezam os livros sagrados. E, com a imensa compaixão desses pássaros do mar, eu incubo e libero os lados mais abjetos do meu ser para que a luz da face da terra, um dia, me faça desaparecer como fumaça. E, de mim, só restem memórias da mulher selvagem que fui.

Sim.

A que amou, intuiu, resistiu, criou e cuidou. A que cantou sobre os vivos. A que cantou sobre os mortos, O núcleo do átomo de clara luz.

Sim.

Eu sou uma velha mulher selvagem que se tornou."

Monja Lib, a mulher que vomitava desertos...

Dea Trancoso

Depois, alguns poemas falados por mulheres que se inscreveram para a noite literária e não ficaram entre @s dez colocad@s... lindos poemas...

Fala potente de autoridade local, mulher, sobre as estatísticas de 2023 que constam da 18a edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os mesmos dados que publicamos no nosso post de 22 de julho, vejam o mesmo...

E um depoimento muito forte da poeta Deyse Magalhães, de Minas Novas, sobre microviolências do Festivale, aquelas "quase imperceptíveis" que podem passar como brincadeira, preocupação ou até mesmo "cuidado" conosco... porém, quando a gente percebe, toma consciência, é que a gente vê que a "micro violência  naturalizada" é do tamanho da patada de um elefante ou, segundo amiga SBCense, do tamanho de uma manada de elefante. 

O relato é mais ou menos o seguinte: ... pois os homens que participam do Festivale desde o começo  - este é o 39o... e o IV encontro de mulheres do Festivale - quase sempre vão sozinhos, embora a maioria sejam casados. No entanto, quando uma mulher casada aparece no Festivale sozinha, imediatamente sente olhares, ou de "está disponível", ou de pena ("brigou com o marido"); e, além dos olhares, comentários e, muitas vezes,  perguntas direto com a mulher, geralmente em tom cínico, "por que você está sozinha, querida?". Alguém pergunta isso para os homens que estão sozinhos no Festivale?  Enfim, eles não tem ideia do incômodo, até mesmo da dor, ou revolta, que causam com esse tipo de comportamento?

E por aí foi a conversa... sobre a necessidade de se fazer algo a respeito disso, de articularmos ações coletivas que possam "corrigir" esses eventos tristes...

E foi aí que eu tive que sair, pois tinha horário combinado... e deixei, com muito pesar, de participar do debate sobre ações possíveis...

E lá fomos nós nos preparar para a noite... surpreendente... maravilhosa... eu diria, uma noite literária feminista por excelência.












Começando pela homenagem a essa mulher porreta demais, de Itinga, membra da ALVA - ACADEMIA DE LETRAS DO VALE DO JEQUITINHONHA, uma das poucas mulheres dessa academia... Alegre, descontraída, no seu discurso parece que ela estava conversando com a plateia, uma delícia...e nos abraçamos e lembramos do nosso encontro no ano passado em Itaobim, quando fizemos espontaneamente uma roda de samba e cantorias, antes da sua posse na ALVA...

Em seguida, as apresentações dos poemas selecionados... e os vencedores:

O primeiro lugar, um poeta de Araçuaí, declamado por uma artista com sua filha, comovente:

1o lugar: Luciano Silveira, da cidade de Araçuaí, pseudônimo JARBAS MONTENEGRO

Uma rosa preta foi plantada na rua de baixo

Regada por desejos e orvalhos de orgasmos

Rosa aprendeu a se abrir no largo dos canoeiros

Porto de aventureiros

Prazer pago como se fosse uma dada esmola

Saindo na Rua Salinas e entrando no Beco de Sola.


Vestida de noite e sem rosas

Casa sem eira e nem beira

Rosa dançava no bar Paratodos

Muitos diziam: Esta é uma rosa que não se cheira.


De lasciva e malícia Rosa, se vestia no negrume da própria noite

Seios fartos como montanhas

Embaixo das pernas a mina valiosa

Por ela se desbrava madrugadas

Rosa era cria da dona Maria Cheirosa


Na guerra da cama seu beijo relampeava

Seus gemidos eram trovões.

E como uma chuva que caía

Rosa toda molhada satisfazia multidões.


No final, Rosa pega a bacia

Agacha-se e se lava

Fazendo pouca força

Jogava para fora o leite ruim que nela deixavam.


O caule da rosa era verde

O corpo de Rosa era negro

Preta mulher atravessada da vida

Marginalizada da costela dos homens.


Na rua de baixo Rosa preta foi jardim

Mas também foi muralha

Contra a bíblia e a

Com seus louvores e noitadas


A Rosa do amor barato

Hoje é lembrança

Assim como a história de tantas rosas nos jardins do desencanto


Rosa era puta, prostituta, biscate, piranha e rapariga

Rosa vendia seu corpo

E cobrava juros pelas pedradas que levava da vida.


Numa manhã acharam uma Rosa no Beco do Cochicho

A Rosa Preta estava caída de bruços no chão

Na mão, uma imagem do menino Deus.

E no meio das pernas

Um botão sem vida

Com pouco mais de quatro meses de gestação.


Rosa foi plantada com seu rebento

Na horizontalidade do fim.

E naquele dia brotou uma rosa preta em cada jardim

Na história que é negada na cidade de Araçuaí.

O 2o lugar uma linda interpretação de um rapaz, não guardei o nome...

2o lugar, da cidade de Jequitinhonha

Canto do filho que emigra, de Nala Soares

Eu peço licença, amado e retumbante solo

Para fértil novamente em ti pisar.

Desde que deixei minha casa, na Alvorada anunciada

Pedi a Santa Luzia que me desse proteção. Roguei que desse luz, que trouxesse

paz na guia

Rezei também a Santa Maria, pro caminho iluminar

Da caatinga fui cerrado

E em cerrado foi-se o canto, o colo, o leito e os caminhos

Ensinados pela velha avó

Ao agora neto retirante


Emigrado Vale a fora

Sem certeza, e em qual lugar

As histórias e memória, poderiam repousar

Nas históricas e já tão repetidas linhas

Desse destino colocado

Não há espaço e nem paradas

Para o passo atrás dado

Atrasado é o estigma, que em nome da miséria

Assombram nossa gente, assolam nossas terras

Mas que não tem parado o canto, que ecoa novas eras

Fazemos verde o verso Vale, sem lítio e suas falas promessas


Existindo da esperança

Dá pra enxergar descanso

Nos braços que nos acolhe

E no canto retirante

Sonho meu é ver a Vida, novamente florescer

Pra cantar das suas belezas

E ver aqui permanecer

A cultura rica nossa

De território ancestral


E fazer valer a pena o porquê do "ir embora"

Pra voltar em tempos de cheia

E celebrar cada vitória

Do filho canto que emigrou

|Na companhia da mãe Senhora

Na proteção do Pai Odé

Aparecidas, Marias, Glórias


Tantas Glórias

Longe de minha casa

No aço e na falta de ócio

No passo não retrocedido

No ideal nunca meu

Mas nosso


Quem dera, amado solo

Pisar descalço em seu terreiro

Cantar cantigas de roda

Lembrar seus canoeiros

Rimar com suas mulheres

Tecendo fios de algodão

A saudade que dói o peito

E aperta o coração


Fui menino e agora homem

"Tudo isso já andei"

Mesmo longe, te amando

Nunca me esquecerei

Do lugar, de sua gente

E toda beleza  daqui

Se sou é porque te fui

Por que te sou

Vale do Jequi

E o 3o lugar, da minha querida amiga de Campinas, Valéria, interpretado pela Cléo.

3o lugar, Valéria, de Campinas, SP

TODAS
Entre lutas, sinas, rebeldias
Porta aberta, prosa e poesia
Ventre Ancestral do tempo
Provocado entre sol e lua
Finjo que sou obra sua
Maria Quitéria, Pagu, Maria Bonita
Que a memória não apaga
Chica da Silva, Nísia, Dandara.

Dentro de mim, várias cicatrizes
Pele de cores despidas
Cifro acordes femininos
Chiquinha, Elza, Elis, Rita Lee
Na página vazia, traço tintas
Tarsilas, Anita, Fridas
Olhar sem filtro, singular sem fim
Mulheres que sabem dizer... não e sim.

Dentro de mim liberdade
Cativa de múltiplas Marias
Sagradas, profanas, malditas
Madalenas, Penhas, Severinas
Muralhas, mártires, rainhas
Joana D'Arc, irmã Dulce, Malala
Dentro de mim, a que chora e que ri
Ramos cortados que insistem em florir

Dentro de mim, habitam todas
Uma entre muitas repartidas
No adeus, sou a partida
Não sou única nem a primeira
Sou cantiga das lavadeiras
A embalar sonhos à beira-rio
Luto pelo que sempre quis
Destino desinibido de resistir

E não posso deixar de publicar o poema do meu amigo Aníbal, "candidato a poeta" como ele se diz... lindo poema em homenagem a Diamantina, classificado entre os 10, que não foi bem na apresentação, embora todo o esforço realizado para "arrumar", o que não deu certo na hora da apresentação. Mas "tudo vale a pena, quando a alma não é pequena..."  

OS POETAS ESTÃO SOLTOS

Os poetas estão soltos
como os passarinhos 
voando alto no céu da cidade
cantando leve "a vida é breve, a arte longa"
ferindo suas liras, quem não admira
tocando em bandos como a Banda Mirim
em Tom Maior
cantando mais pelos quintais
e pelos gerais de diamantina

os poetas estão soltos
como as pedras
rolando nos rios polindo as arestas
lapidando seus cristais em eras
geológico-musicais
mas quando uma luz (eterna) os atravessa
transmutam seus carbonos em diamantes
e iluminam como dia de festa
a noite escura da poesia

então anoitecem flores de estrelas
nos campos rupestres
diamantecem pássaros
na garganta da madrugada
poetas violam versos
na janela apaixonada
uma estrela cai
a lua sai serenada
e até as pedras cantam em Diamantina.

Aníbal Oliveira Freire


E assim foi nosso único dia no FESTIVALE. Voltamos pesarosos de não poder ficar mais tempo... e felizes de termos participado desse dia tão potente... e aguardando o final do Festival, as músicas vencedoras.



E até o próximo FESTIVALE... S B C presente!




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