quinta-feira, 29 de junho de 2023

Sobre nossa HUMANIZAÇÃO

 


“Maio, antes que você me esqueça”, com os atores Maurício Cangussu e Ílvio Amaral, conta a história de um pai acometido pelo "Mal de Alzheimer" visitando seu filho paisagista, num final de semana. A relação dos dois vai da comédia ao drama, emocionando e divertindo a plateia.  O texto da peça foi escrito há mais de 10 anos pelo dramaturgo Jair Raso, que atendeu a um pedido de Maurício e Ílvio, que pretendiam abordar o tema “Alzheimer”.

 

Sinopse:

 

Qual o lugar do afeto, numa relação entre pai e filho, onde pouco coube a intimidade ao longo dos anos? Quando sobra intransigência, falta espaço para o encontro. E nesse contexto as heranças familiares vão muito além da construção de histórias, lugares e bens materiais. O principal legado é o afeto. 

 

Uma doença que fragiliza a memória de uma vida é capaz de construir memórias afetivas entre o pai e o filho. Nesse espetáculo teatral, as memórias, lapsos, ressentimentos e descobertas tecem uma história, que nos lança numa sala, como testemunhas de um encontro dramático. É possível escrever de forma divertida e emocionante sobre um tema tão árduo. 

 


Saímos da peça chorando, principalmente nossa amiga SBCense que perdeu o pai em função dessa doença. Claro, fomos beber e conversar... Sobre como a peça nos mostra da importância da revelação dos afetos, todos eles, sem categorizá-los a priori, como aprendemos... sim, aprendemos a colocar nossos afetos numa prateleira, nos lugares mais "altos" os afetos que "temos que ter", ou fingir que temos, os afetos "nobres"... e vai descendo a prateleira, os afetos "menos nobres", que negamos, reprimimos, fingimos que não os temos... e a tragédia se revela: estamos sendo "comandados" por estes afetos "proibidos de serem revelados" e nem sabemos disso... e são justamente esses afetos que podem estar nos impedindo aqueles outros ditos "afetos positivos". Enfim, nosso "processo de humanização" deve, necessariamente, incluir afetos ditos negativos - raiva, medo, entre outros... para que os "positivos"  (amor, admiração, ...) se manifestem de uma maneira mais autêntica. 


E, junto com os afetos, todos eles, as lembranças da nossa história com pai e mãe... muitas vezes, e a peça nos diz sobre isso, as nossas lembranças - as boas, alegres, bonitas...  e as tristes -  com pai e com mãe, não são as mesmas deles... e, nunca - ou raras vezes, conversamos com eles sobre isso. Você já perguntou pro seu pai ou sua mãe sobre as lembranças deles da sua infância?


E fui pra casa da minha mãe disposta a essa pergunta... e realmente, constatei que minhas memórias não são as mesmas dela... e que podemos - e é bom, foi gostosa a conversa - fazer essa troca de memórias, isso nos aproximou mais - ou melhor, isso nos humanizou...


"Desfile do INSA (Instituto Nossa Senhora Aparecida) na praça principal da cidade, em frente o grupo..... Atrás, a Igreja Matriz da cidade. Você devia ter uns três anos e seu irmão quatro ou cinco. Depois da missa, só eu com vocês dois, seu pai não foi não me lembro o motivo, fomos acender as velas na parte de trás da igreja, no cruzeiro. Seu irmão começou a fazer pirraça porque queria acender outra vela, e você queria ir embora porque estava apertada pra fazer xixi. E eu fiquei nervosa com essa situação, ainda mais quando um vizinho, vendo a pirraça, comentou que "menino com essa pirraça merece é tomar uma surra"... e você disse: mãe, deixa ele acender a outra vela! eu faço xixi na calça... mas eu fiquei ainda mais nervosa e dei um beliscão no seu irmão pra ele parar de fazer pirraça, daqueles beliscões que ficou o roxo no dia seguinte... de raiva do vizinho eu machuquei seu irmão, não sei se de raiva, vergonha, ou me sentindo sozinha com vocês ... e você fez o xixi na calça mesmo..."

"Ai, quando você foi fazer primeira comunhão, sua tia que morava em Belo Horizonte mandou fazer um vestido lindo com uma modista famosa, Dona Fenatti... era um vestido diferente,  todo bordado num tecido grosso... e todas as meninas tinham vestidos de tecido fininho e todo rodado... quando recebemos o vestido você não gostou, ficou decepcionada porque  queria um vestido igual ao das outras meninas!!! Ficou chateada, com a cara emburrada, até na foto a carinha está triste... e nós também ficamos tristes, eu e sua tia..."

"Pois eu tenho outras lembranças... você lembra que eu ganhei uma calça de brim, estilo jeans, da cor amarela? era linda! e eu adorava essa calça! mas toda vez que eu vestia e saia no quintal com a calça, algum bicho - uma galinha, um passarinho, qualquer bicho - cagava na calça.  De algum modo o bicho achava um jeito de cagar, deve ser que eu gostava de pegar o bicho e botar no colo, né? e todo mundo ria quando isso acontecia... e virou um bordão: calça amarela, que o bicho cagou nela... e eu ficava puta, chorava... mas não tinha jeito, acontecia toda vez que eu vestia a bendita da calça..."

Rimos... e choramos... difícil,  e necessário nos humanizarmos... dá trabalho, dá prazer, dá tristeza, vem tudo junto e misturado, todas as emoções... 

Porém, como já dizia Freud, a evitação do sofrimento provoca, também, o "fechamento dos poros"... e não entra o prazer também, vivemos pela metade se evitamos algumas emoções.

Viver dá trabalho... ser humano dá trabalho...  dá prazer ... bora arregaçar as mangas...



E mais: o amor não vem pronto... é uma viagem, uma construção... 
Assim como para a VIDA, o AMOR exige coragem...

Abraços carinhosos... 









11 comentários:

  1. Que texto "humano" amiga. Nesta era de inteligência artificial onde o sentimento está sendo colocado em cheque, ler este texto me deu uma certa esperança na humanidade. Tenho ouvido que os robôs irão substituir professoras e professores e não consegui decifrar porque isto me incomodou tanto. Ao ler o seu texto, entendi que o que na verdade me incomodou foi o fato de que o sentimentos não estariam mais presentes na relação professor /aluno. Tenho várias memórias de infância e uma delas é tomar banho de chuva na casa de amigos e chegar em casa toda molhada e claro, levar uma surra da minha mãe. Eu não sei porque que ela me batia talvez porque iria ter trabalho em lavar a roupa seria uma boa pergunta a ser feita, mas infelizmente ela já se foi. Obrigada mais uma vez pela crônica e também pela dica do espetáculo teatral. Abraços humanizados Antonieta Shirlene

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    1. Obrigada pelo comentário querida amiga. Abraços carinhosos

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  2. Que banho de afeto e humanidade!

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  3. Adorei esse seu texto....lindo...emocionou- me muito....e lembrei-me de qto eu e meus irmãos e irmãs, hoje , nos pomos a conversar sobre nossas lembranças de qdo vivíamos juntas e juntos, em familia.....quanta emoção e proximidade afetiva experimentamos!.....

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  4. Quanta afetAÇÃO...
    *AMEi....!!!!!!!*

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