sábado, 21 de maio de 2022

ARTES NA PANDEMIA, agora ARTES ENTRE AMIGOS

Apresentamos mais novo membro do SBC, o camarada Sandro.

Ele mesmo se descreve:

"Meu nome de escritor é Sandro Miler de Alcântara. Eu sou Técnico em processamento de dados, radialista, músico amador, ilustrador. Já fiz cursos de engenharia de áudio, mas não assimilei bem. Fiz curso de edição de áudio, tenho todo o equipamento em casa, mas ficaram obsoletos e eu tive dificuldades em atualiza-los por razões financeiras. Sou solteiro e não tenho filhos. Estou com 51 anos. Apesar de ter meu apartamento eu preferi morar com meus pais, tenho muita afinidade com minha Mãe, que faz mapa astral, numerologia  estuda a cabala."

"Esta é uma foto minha quando tocava contra baixo. Foi uma gravação no estúdio HP. Não existia áudio digital, era tudo analógico". 

A primeira impressão que nos fica é a de uma pessoa humana, demasiadamente humana, como diria Nietzche. E o Sandro, conhecendo o SBC, logo nos mandou um conto da sua época de adolescente, época importante da vida, em que fazemos algumas escolhas, nem sempre muito conscientes das consequências.

E a seguir compartilhamos o conto do nosso caro Sandro, para nossa apreciação... e reflexão:

 


 

A Boemia

Como todo adolescente que começa a dar suas saídas pelas noites, comigo não foi diferente. Frequentava sempre os lugares da moda com pessoas da minha idade. Não me recordo por quais circunstâncias passei a notar outro tipo de ambiente: o dos boêmios ortodoxos. Sim, aqueles que bebem muito, sempre fumam e já maduros usam um figurino de uma época que já passou, além de preferirem as músicas de um outro tempo. Aos poucos fui me infiltrando nessa fauna exótica e após o passar do tempo, já era recebido com carinho pelos homens de olhos melancólicos, modos apurados e prosa inteligente.

Sob as críticas veladas dos meus companheiros e a estranheza da minha família passei a preferir a companhia desses personagens noturnos e na maioria das vezes de vida trágica. 

Havia um desses companheiros em particular que tinha um afeto especial por mim. Era um solteirão que morava sozinho. Numa ocasião ele me convidou para ir ao seu apartamento, aceitei. Entrando na sala percebi que haviam poucos móveis ali. Um sofá surrado, uma poltrona de braços largos onde repousava um cinzeiro, uma mesa de centro onde havia um copo com restos de alguma bebida que não identifiquei, um quadro na parede representando uma paisagem alpina, uma estante com vários livros e uma cortina na janela de gosto duvidoso. Mas a cereja do bolo era “um três em um” Gradiente que brilhava encostado na parede principal da sala. Junto com ele vários discos de vinil.

Meu amigo, percebendo meu interesse pelo aparelho de som, perguntou-me se gostaria de ouvir uma música. Aceitei a sugestão. Ele disse então que colocaria uma coisa muito especial, não as porcarias que minha geração ouvia. Disse isso com uma pitada de sarcasmo. Absorvi a ironia numa boa e fiquei esperando qual seria aquela coisa muito especial.

Os discos de vinil não cabiam no móvel que sustentavam o som, eles se espalhavam encostados na parede. Meu amigo gastou um tempo procurando e dizendo que precisava organizar aquela bagunça. De repente ele deu um grito: “Achei o miserável!!”.

Entusiasmado me mostrou a capa e disse com uma expressão de quem tivesse acabado de encontrar ouro: “Conhece a pérola? Claro que não!!”. Respondendo ele mesmo a pergunta que tinha me feito. Quase encostou o disco na minha cara. Li o nome Dilermando Reis e vi a foto preta e branca de um homem num terno alinhado com um violão no colo. “Agora, disse ele:  senta aí pra você entrar no paraíso!!”

Sentei na poltrona e aproveitando o cinzeiro que estava no braço, acendi um cigarro. Antes de colocar o disco no prato ele se virou e disse: ”Dilermando Reis interpreta Américo Jacobino, Abismo de Rosas”.

Quando a música começou, ele sentou no velho sofá e deu uma talagada na bebida que estava na mesa de centro. Acendeu um cigarro. Seus olhos ficaram estáticos mirando um ponto qualquer e começaram a marejar.

Quando aquele som preencheu o ambiente meu amigo começou a reger a música com as mãos, parecendo estar em outra dimensão. Na sua face abriu-se um leve sorriso. O êxtase que aquele rosto expressava me dava a impressão que o sujeito visitava distantes lugares no passado. A música saia de um único violão, dedilhado com maestria, nunca tinha ouvido algo parecido.

A melodia de repente me fez lembrar uma foto que havia visto na casa de um tio meu. A imagem era de uma rua em aclive, no meio dela havia trilhos e em cima dos trilhos trafegava um bonde. Os prédios mais pareciam palacetes com várias janelas e muitos detalhes artísticos. As ruas eram agitadas, com homens de terno e chapéu, uns lotavam as calçadas e outros atravessavam as ruas.

De repente ele se levanta, me tirando dos meus devaneios, e encaminha-se para cozinha. Volta de lá com uma garrafa de uísque e um maço de cigarro, os deposita na mesinha do centro, enche seu copo e volta para posição original.

Finda a música, se inicia outra. Ele então diz com ares de especialista: “Brejeiro” de Ernesto Nazareth.”

Deu uma talagada no copo e ascendeu outro cigarro. Não me ofereceu a bebida, eu teria recusado. A segunda música era tão melodiosa e cheias de acordes sofisticados como a primeira.

Percebi que meu amigo se embriagava, seu leve sorriso de antes dava lugar a uma máscara fisionômica tristonha e melancólica. Continuava no seu êxtase e já não notava minha presença ali. Me incomodei e fiz menção de me despedir. Ao proferir as primeiras palavras de despedida meu amigo saiu do transe, deu um pulo do sofá e disse: “Calma, quero te ler um poema, é magnifico!”

Concordei em esperar, mas disse que estava com pressa. Aquela situação começava a me deixar de baixo astral.

Então ele caminhou até a estante onde havia um amontoado de livros, tirou uma folha de dentro de um deles, assumiu uma postura solene e com voz empostada começou a ler o poema:

     


  Terminado o poema ele anunciou: “Augusto dos Anjos!”

Foi como se eu levasse um soco no estomago, o baixo astral terminou de se instalar. Agradeci os momentos agradáveis, fiz um gesto de despedida e sai pela porta pensando se aquela vida era mesmo boa.

**********

 

E ainda bem que temos algum tempo na vida, prospectivamente, para rever e refazer nossas escolhas, e direcionar  e redirecionar nossas vidas para o que consideramos, em épocas distintas, que seja "bem viver".  G Rosa diria, agora, mais ou menos: que ótimo que não estamos prontos e acabados, que a vida é esse eterno nos ver e nos reinventar... mas, para isso, o que a vida nos exige é CORAGEM...

Obrigada Sandro! E seja muito bem vindo ao SBC...


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