segunda-feira, 21 de junho de 2021

Conversas SBCenses: A arte SALVA... ou não...



Caro amigo,

Ouvindo aqui de novo a musica do Roberto e Erasmo que conversamos... E você diz que trata-se de uma música libertadora (naquele conceito SBCense de "músicas libertadoras", musicas de lama e músicas de piropa, nosso projeto PROSA E SAMBA, post do dia 12.junho.18) ... E eu não acho tanto. Verdade que, a primeira vista, parece bastante libertadora, porém, as interpretações das músicas dentro do senso comum correm este grande perigo. No "raso" é que as ideologias vão "entrando" na nossa "alma", no nosso espírito, a gente vai "desejando" esses tipos de amor para as nossas vidas, mesmo se dizendo uma pessoa libertária, quando vemos estamos reproduzindo "amores românticos" e nos distanciando do nosso grande desejo de construir modelos relacionais mais livres, mais humanos, mais simétricos e mais bonitos. Pois, veja meu caro, não basta apenas falar disso, é preciso, diariamente, estar "treinando" nossa humildade de reconhecer onde e como estamos "reproduzindo o modelo aprendido"... e, somente assim, criamos a possibilidade de irmos construindo outros modelos. Pois, já sabe, assim é feita vida, construímos um pouco, retrocedemos, vemos isso e rimos da gente, o que faz desenferrujarmos nossos espíritos para o novo.

Veja querido, como você disse, quando buscamos uma análise de conteúdo de uma música, num primeiro momento procuramos entender o que o autor quis dizer. Sim, imagino que para Roberto e Erasmo (não sei quem fez a letra, a música foi lançada pelo Roberto em 1982) tenha sido libertadora à época. Dizem até que, embora seja mais uma canção de amor da dupla, o verso "Fui o alvo perfeito, muitas vezes no peito atingido" pode ser tomado emprestado para definir a discussão proposta pelo livro "Querem acabar comigo - da Jovem Guarda ao Trono, a trajetória de Roberto Carlos a visão da Crítica musical", de Tito Guedes. "Debilóide", "compositor de música de fotonovela", "acomodado", "repetitivo" e "apelativo" foram alguns adjetivos usados na fase da Jovem Guarda e quando ele e Erasmo se dedicaram à temática erótica|amorosa. "Fera ferida" é dessa época. Pra você ver que a motivação do autor, quando escreve uma letra, pode estar próxima (ou não...) do que a gente interpreta. O autor "escreve e lança seu escrito", não tem noção de como vai ser interpretado, e, mais ainda, escreve dentro do seu campo de referências, da sua visão de mundo e das relações. Imagino que os dois, à época, não tinham ideia das consequências danosas da reprodução da ideologia do "amor romântico" para todxs nós.


Mas agora, nós que nos dizemos libertários, não podemos fugir à nossa responsabilidade de darmos um segundo passo no sentido da interpretação, de procurar entender COMO a cultura, através da arte (e, nesse caso, a música) "entra", por assim dizer, na nossa "alma" e nos coloca como "reprodutores", como também "aprendemos" a dissociar cabeça de corpo, de maneira que falamos de relações livres, simétricas, e, no automático, irrefletido, "cantamos" músicas achando que são libertárias, e vamos nos impregnando das ideologias que combatemos! Perceba nossa responsabilidade, meu amigo: para nos colocar, em todos os níveis de relação, do íntimo ao político no sentido amplo, como transformadores, podemos nos servir da arte e de análises do tipo que faço esforço para realizar, a análise para além do senso comum. Pois essa é a nossa missão, meu amigo, conseguir construir novos modelos, libertários, na própria vida e na vida dos nossos companheiros (filhos, irmãos, amigxs) e, assim, ir mudando o mundo.


Você me diz que ouve uma música libertadora, a duras penas, sofrida... Não é mesmo? E você tem razão, um “animal domesticado”, que se submeteu à outra pessoa (que ele amava) e, provavelmente, por amor, buscou o que ela (a outra pessoa) queria que ele fosse... E se esqueceu do risco que há nisso: se perder de si mesmx, abandonar sua identidade, até o ponto em que não sabemos mais “quem sou eu”... Mas esse processo (de ir deixando de existir, por amor) não está completamente no modelo do “amor romântico”, que já conversamos? aquele de idealização (da pessoa amada e do próprio amor), da submissão à pessoa amada, entre outras características... Não é esse modelo o que mais vivemos, e não é ele que causa assimetrias na relação, e muito sofrimento para ambxs (mulheres, homens e outros gêneros)

Então... A música termina assim:

“Não vou mudar, nosso caso não tem solução, sou fera ferida, no corpo e na alma, e no coração...”

E foi este término que me revelou nossa diferença de interpretação da música, que quero compartilhar com você: primeiro, uma pessoa que diz “não vou mudar”, no meu entendimento está, teimosamente, resistente... A uma realidade, a um “não” recebido... Eu já ouvi isso: “Como!!! Que idiota eu fui!!! Fiz tudo que elx queria e elx me deu um chute na bumba!!! Que ódio!!!”

Então, me parece que essa pessoa está no ressentimento, ou seja: re-sentindo... re-sentindo... na remoeção do “não”, entende? Claro que um “não” me faz sofrer, ainda mais quando quero um “sim”, mas eu prefiro um “não” livre,  e que também me deixa livre, do que um “sim” escravo, que deseja a minha escravidão (falo mais sobre a relação senhor-escravo daqui a pouco...).

Segundo, como não existe o “agora eu superei”, acredito que essa pessoa tanto pode estar num processo de superação, como poderá “atolar” de novo em outra “relação romântica” (repetindo o modelo). Entendo que ela, com essa música, apenas tenha superado “esta relação”, mas não o “modelo romântico” de relação, entende? portanto, ela repetirá “ad nauseum” o mesmo modelo, o mesmo  script ou "roteiro relacional" que internalizamos há alguns séculos, construído pela burguesia, lembra? ... que apropriou dessa ideologia do amor romântico e, ajudada pela igreja, incorporou como norma de vida, como a se "desejar" para a vida, aquele script dado, pronto, de crescer, acumular, casar, ter filhos... e a mulher cuida do intimo e o homem cuida do provimento... e isso nos faria "felizes"...

Terceiro, por outro lado, se a música lhe permitir (ou se a própria pessoa se permitir) a reflexão necessária à transformação... aí ela crescerá no sentido da construção de outro “modelo” relacional, que permita o “não”, que busque simetria, que seja construído juntxs... e por aí vai... A arte pode ser reprodutora ou transformadora... de vidas... A arte salva... ou não

Por isso te digo que no “conceito” SBCense de músicas libertadoras está incluído um passinho a mais do que “fera ferida”...

Comparando essa música com nossa pesquisa, temos o Lupicínio (o rei da Lama), que canta “Vingança”... ouça, com Adriana Calcanhoto:

Percebe que quando ainda estamos na vingança,  estamos, por assim dizer, na “referencia dx outrx”? e vamos repetindo o “modelito relacional”? Lembra que o “escravo”, aquele que se submete, que se transforma no que o outro quer que ele seja, no fundo (não tão fundo... rsrs, talvez seja melhor "no irrefletido) quer mudar de lugar com o “senhor”, quer, na verdade, ser o “senhor”, o controlador (por amor, claro!)... e se ressente quando x outrx se afirma “livre”... Agora, quando a pessoa “descobre” que a maior “vingança” é ser feliz, ela sairá da referência do outro e poderá dar continuidade ao processo de “ser sujeito”, se apropriar da própria vida, ser quem ela quiser ser e, por isso mesmo, também a possibilidade de relações mais simétricas, mais “bonitas”, enfim...

Essa, a seguir (grande Chico!), está um pouco mais no processo de libertação:


Agora, se você me permite, gostaria de te sugerir algumas reflexões, ou "provocações", com o objetivo de trazer a sua e a minha reflexão para as nossas vidas e criar a possibilidades de mudar conceitos e práticas de vida, lembra do TAP (Teoria, Afeto, Prática: uma mudança do jeito de pensar leva a uma mudança de prática ou ação na vida; o contrário também pode ser, ou seja, uma mudança de ação leva a uma mudança de conceito; mediando esse processo temos a REFLEXÃO, o COMO nos afeta "o que já existe pronto" (uma música, um filme, um livro,...); porque, se toda essa conversa for apenas "teórica", só cabeça, não nos servirá de nada para nossas vidas.

São essas as perguntas que me ocorrem: COMO aquela musica FERA FERIDA me toca, me afeta? que reflexão de vida ela me provoca? em que ponto de "libertação" eu estou, em relação às minhas relações? o que devo fazer para caminhar mais no sentido da "libertação", me desgrudar do ressentimento? São reflexões possíveis, que poderão suscitar amadurecimento...

Pensei, ainda: quando o autor diz "não vou mudar", quem está dizendo a ele para mudar? trata-se de uma exigência externa ou um exigência interna, dele mesmo? Por que, sabe, meu amigo, essa mudança "pelx outrx, por amor", eu te digo, acho que é "fake". Só mudamos por nós mesmxs, só encaramos a árdua tarefa de mudança quando o sentimento de "ganho" torna-se maior do que o "sofrimento" que temos, embora não sentindo muito, por causa do apego aos "ganhos secundários", um deles a comodidade de permanecer reproduzindo o "aprendido".

E assim vamos seguindo... deixo aqui também a minha música (junto com o querido Ronaldo Leon), NA MEDIDA CERTA, cuja letra é uma tentativa (em processo, sempre, como é o humano) de construção de um novo conceito de AMOR, mais livre, mais simétrico, mais humano...

Desafio aceito 

Bora pesquisar

O que o amor não é 

E o que o amor será? 

É nessa roda de samba

Que vamos conversar

O que o amor não é 

E o que o amor será :

Amor não é posse

Não é submissão 

Mas é dar e receber

Na medida certa do coração.

Amor não é sofrer

Não é bater nem machucar

A violência está noutro lugar.

Amor não rima com dor

E sim com liberdade 

Respeito e admiração 

Mesmo que não rima na canção.

Antes de tudo o amor próprio 

Pra rimar com alegrias

Do encontro com o outro

Pra passar ótimos dias.

E  é nessa roda de samba

Que todos vão cantar 

O que o amor não é 

E o que o amor será...

Desafio cumprido

Vamos crescer e multiplicar

Um novo conceito de amor...

Abraços carinhosos...

Santuza TU


PS1: se você deseja saber mais sobre "amor romântico", te convido a ler nosso post de 8.julho.2014: "Conversas SBCenses: estrutural (e cruel) é o amor romântico";


PS2: se quer saber mais sobre "músicas libertadoras", leia nosso post de 12.junho.2018: "Novo projeto SBCense: PROSA E SAMBA ou De como o  'AMOR ROMÂNTICO' arrasa com nossas vidas"


4 comentários:

  1. Concordo com você, Santuza! Tenho lido vários de seus escritos e tenho gostado muito do que leio. Gosto da forma como escreve. Acho-a uma autora brilhante, das poucas que abraçaram, de verdade, a luta contra o machismo, a partir de uma concepção de amor totalmente diferente do que você chama de "amor romântico". Gosto bastante de outra expressão, também bastante usada por você, de "relações assimétricas". É verdade que a pessoa que narra essa música não diz que já superou essas relações abusivas. Essa pessoa superou essa aí, mas nada nos garante que amanhã ela não caia na mesma armadilha. Na maioria das vezes, as pessoas cometem novamente o mesmo erro. No caso, tenho concordância com alguma coisa que o seu amigo diz. Não diria que considero a música libertária, no sentido SBCence, diria um grito de liberdade, melhor talvez um rugido de liberdade de uma fera ferida, que mesmo quase arrancando a pata, conseguiu se libertar e caminha sem rumo, sem laços.
    Amanhã, é claro que poderá, novamente, cair em algum laço, mas saiu com vida; por isso, há esperança de que tenha aprendido. Espero que nisso seu amigo tenha razão: de que esse rugido de liberdade não seja apenas pra essa relação, mas um aprendizado para as que virão.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada...
      Te amo e te admiro.
      Abraços carïnhosos
      SantuzaTU

      Excluir