quinta-feira, 3 de junho de 2021

Conversas SBCenses: sambas, feminismos e machismos

 Carxs sbcenses...

Começamos nossa conversa ouvindo essas músicas... ouçam com bastante atenção... escutem as letras desses sambas, leiam, cantem juntxs... e depois me digam o que esses sambas dizem para as suas vidas...


Marina, morena
Marina, você se pintou
Marina, você faça tudo
Mas faça um favor
Não pinte esse rosto que eu gosto
Que eu gosto e que é só meu
Marina, você já é bonita
Com o que deus lhe deu
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outra igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal.
Me aborreci, me zanguei
Já não posso falar
E quando eu me zango, Marina
Não sei perdoar
Eu já desculpei muita coisa
Você não arranjava outra igual
Desculpe, Marina, morena
Mas eu tô de mal
De mal com você
De mal com você
(samba-canção do baiano Dorival Caymmi, de 1947. O verso "Tô de mal com você" foi inspirado no filho Dori, então com três anos, que, quando ficava contrariado com alguma coisa, por exemplo a ausência do pai, dizia: tô de mal com você...)



Nunca vi fazer tanta exigência
Nem fazer o que você me faz
Você não sabe o que é consciência
Não vê que eu sou um pobre rapaz
Você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê você quer
Ai, meu Deus que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher
Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer
Quando me via contrariado
Dizia: Meu filho, o que se há de fazer?
Amélia não tinha a menor vaidade
Amélia é que era a mulher de verdade

(Ai que saudades da Amélia, canção de Ataulfo Alves e letra de Mário Lago, gravada pela primeira vez em 1941 e lançada em 1942, agradando mulheres e homens, que entenderam o que Ataulfo disse numa entrevista: "Amélia é compreensão, é ternura, é vida. Ela simboliza a companheira ideal, que luta ao lado do marido, vivendo de acordo com suas possibilidades, sem exigir o que ele não pode dar". E Mario Lago acrescentou: "Amélia é símbolo da mulher brasileira")


Eu quero uma mulher, que saiba lavar e cozinhar
Que de manhã cedo, me acorde na hora de trabalhar
Só existe uma e sem ela eu não vivo em paz
Emília, Emília, Emília, eu não posso mais.

Ninguém sabe igual a ela
Preparar o meu café
Não desfazendo das outras
Emília é mulher

Papai do céu é quem sabe
A falta que ela me faz
Emília, Emília, Emília, eu não posso mais..

(Música de Wilson Batista e Haroldo Lobo, de 1942, gravada por Vassourinha)

Vamos, então, situar historicamente essas músicas, como estava o mundo e o Brasil nessa época, para depois percorrer historicamente a nossa história (das mulheres, especialmente) pela segunda metade do século passado, e trazer essas ideias para a nossa reflexão atual.

As três músicas são da década de 40 do século passado. Estávamos, até 45/46 no  Estado Novo ou Terceira República. Época do Rádio, "A Hora do Brasil", que divulgava os projetos e o ideário do governo Vargas, nessa época num modelo fascista, ditatorial, anticomunista e nacionalista; também pós Semana da Arte Moderna, de 1922, muitas mulheres das artes projetadas nessa semana (Pagu, Tarsila, Anita Malfatti, Guiomar Novaes... fazendo 100 anos no próximo ano... vamos comemorar!!!); e pós conquista do voto feminino (1932); e o Brasil exportando artistas (Carmem Miranda), em função da "política de boa vizinhança", especialmente com os EUA; assim como a projeção do samba, até a primeira dama, nessa época, convidou o Mário Lago para cantar "Amélia" no Catete, palácio do governo no Rio de Janeiro.

Enquanto cantávamos “Amélia” nos anos 40, a história da mulher no mundo era marcada por três grandes momentos: Em 1945, por meio da Carta das Nações Unidas, foi estabelecida a igualdade de direitos entre homens e mulheres e em 1949, foram criados os Jogos da Primavera, ou ainda "Olimpíadas Femininas". Neste mesmo ano, Simone Beauvoir publicava o livro O Segundo Sexo, no qual analisava a condição feminina, promovendo reflexões sobre as desigualdades existentes entre o masculino e o feminino. Por meio da obra, Simone Beauvoir questiona as relações de poder que inferiorizavam a mulher.

Nesse cenário, quero relatar, agora, a história de uma criança mais ou menos com seus 8 ou 10 anos, uma mulher que morava no interior de Minas. Essa mulher, agora, tem seus 60 pra 70 anos, uma feminista que luta diariamente pela sua liberdade de pensar, sentir e agir, e, portanto, combate diariamente os estereótipos de gênero que estão enraizados, cravados e ferro e fogo no nosso espírito.

Pois bem, vou narrar na primeira pessoa, pois acredito que trata-se da vida de inúmeras mulheres nessa faixa etária, inclusive eu: 

"Eu nasci nos anos 50, filha única mulher de família de classe média do interior de Minas. Desde os 5 anos de idade, que me lembre, vinha a Belo Horizonte, curtir as férias na casa de uma tia, mas me lembro com mais vigor na época dos 8 anos em diante, vinha sozinha, sem meus pais, eles me arrumavam carona com casal de amigos e eu ficava dois meses na casa da tia. Era um apartamento lindo, a mobília era o que existia de mais moderno, um sofá em L(ele) maravilhoso, uma TV em preto e branco (TV era coisa novíssima, não existia ainda no interior), o móvel da TV era de um design fantástico, e tinha portas!... Ou seja, quando se acabava de ver a TV se desligava e se fechavam as portas do móvel em madeira clarinha... maravilhosa. Na mesma linha do móvel da TV, o móvel toca-discos, uma radiola fantástica! e uma coleção de LPs, ou bolachas, aqueles discos de vinil pretos. Aquilo era um encantamento para uma menina de 8 anos vinda do interior... e eu passava o dia inteiro ouvindo discos, em especial um disco de samba: "As melhores mulheres", e dançando samba. Meu gosto musical vem dessa época.

Então, este disco era gravado pelos sambistas mais famosos da época, cada música tinha um nome de mulher, e era em homenagem a essa e a todas as mulheres do Brasil... lindo né? eu adorava todas as músicas, sabia cantar todas... especialmente essas três: Emília, Marina, Amélia. E cantava, e cantava, e internalizava as letras dessas músicas! e DESEJAVA tudo isso pra minha vida! eu queria ser uma mulher de verdade, e pra ser uma "mulher de verdade" eu teria que "preparar o seu café, saber lavar e cozinhar, e acordar meu homem de manhã cedo pra ir trabalhar"... pois, se não fosse dessa maneira, ele "não me perdoaria, ficaria de mal"...

Fui crescendo, me mudei para Belo Horizonte com meus pais e meu irmão, anos 60, golpe militar, grandes festivais de música, adorava! passei a cantar "vem, vamos embora que esperar não é saber... quem sabe faz a hora, não espera acontecer!"

E outras: Chico, Rita Lee, Caetano, Gil... tudo isso na época da ditadura militar.

Nos anos 80, já casada, mãe, "por amor", impregnada daquele ideal feminino, acrescido do "ideal romântico", percebi que tinha abandonado facilmente toda a minha construção no sentido da autonomia (de pensar, sentir, agir... e que passa pelo bolso)... tinha deixado de "ser", abandonado minha identidade e incorporado essa "identidade pronta"... e, então, decidi recuperá-la... lia, e tentava internalizar Simone de Beauvoir: quem abre mão do trabalho que dá a construção de uma "vida autenticamente vivida", se rende aos "ganhos" (ou ilusão de ganhos) que significam estar do lado do "dominador". Ou seja, vira escravx, principalmente escravx de um sistema, reproduzido por nós mesmxs. "Vida autenticamente vivida" era (e é) meu mantra, minha busca.

E assim estou, até hoje... porque este movimento é para a vida toda... e para além de mim mesma. E, por isso, compartilho com mulheres e com homens essa experiência, carregada de perplexidades, interrogações, que suscitam boas conversas e crescimentos mútuos, pois disso é feita a vida, de pessoas que se constroem e constroem o mundo.
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Trata-se de um relato maravilhoso, do ponto de vista de rever sua história, se apropriar dela, e construir prospectivamente sua identidade, de forma autônoma. E suscita a nós, SBCenses, ótimas reflexões sobre nosso tema do título desse post: sambas, feminismos e machismos...

Pois o SBC faz isso: reflete, conversa, interpreta músicas para além do senso comum, compartilha reflexões para crescermos uns com os outrxs e construirmos relações mais bonitas... não fazendo isso, caríssimos, vamos, irremediavelmente, repetindo conceitos, ideologias que, muitas vezes, não estão combinando com o que dizemos e queremos para a vida e para as nossas relações mas, de forma alienada, repetimos... e isso nos causa sofrimento, acreditem. Por isso vale o esforço, o trabalho de construir relações mais bonitas, mais simétricas, enfim, construir uma "vida autenticamente vivida".

Começamos por compartilhar a música maravilhosa do Geraldo Vandré, citada pela nossa depoente, que nos suscitou tão conversas tão profícuas:


E nossas conversas SBCenses duraram uns dois ou três encontros riquíssimos. Vamos conversando... por hoje é só...

Abraços carinhosos

SantuzaTU



3 comentários:

  1. Gostei do artigo, Santuza! Você mostra, de forma muito firme, o papel que essas três músicas exerceram e exercem sobre as mulheres, sobre os homens também. E o cara de pau do Mario Lago diz que Amélia é uma "mulher companheira", daquela que não larga o marido de jeito nenhum. Não sei se Amélia vive ou se morreu. Não temos o seu relato.
    Emília é bem evidente: o ideal da companheira subserviente, a que sabe preparar como ninguém o café do amado.
    Marina acabou ficando extremamente conhecida, na voz do próprio Caymmi, mas, principalmente, na voz de Gilberto Gil. As filhas de muitas mulheres que se encantaram com os versos do poeta e deixaram de pintar o rosto, porque já eram tão bonitas, muitas delas se chamaram e se chamam Marina, em homengaem à heroína dorivaldiana. Marina não merece a fama que tem. O machista com quem vivia não tinha segurança em relação ao sentimento de Marina; por isso, pedia, carinhosamente, para ela não pintar o rosto. Muitas "Marinas" surgiram inspiradas nesse pedido carinhoso: não pinte esse rosto! Ele, o sacana, antes de ficar de mal, diz que perdoou tantas vezes: Marina pintou o rosto, ele perdoou; pintou novamente, ele perdou. Marina é teimosa! Marina usou uma saia curta, ele ficou indignado, mas perdoou. Ela usou saia curta e pintou o rosto: ele ficou mal.
    Credo! Que mulher teimosa, desobediente!

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  2. A frase final: ele ficou "de mal".

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    1. Não se sabe o destino da Marina da música do Caymmi Jura : se a sua teimosia a levou a uma libertacao, se ela se transformou numa pessoa revolucionária... ou se ela se submeteu às ameaças sutilmente incutidas na música, linda por sinal, uma música de amor, né? Qto à Marina, não sabemos... mas sabemos das inúmeras "marinas" da segunda metade do século passado, que interlalizaram essa música como uma "prova de amor" e se submeteram, deixaram de pintar o rosto... enfim... Se transformaram no que o macho queria que fossemos: submissas.
      Conheço mulheres agora com em torno dos 40, que estão reconhecendo e dando respostas a esses micromachismos. Uma delas ficou de gravar sua musuca em resposta ao Caymmi. Publicarei aqui assim que receber.
      Abraços e obrigada pelas suas considerações
      SantuzaTU

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