segunda-feira, 23 de novembro de 2020

QUANDO ESTOU AMANDO, 'O QUÊ' ESTOU AMANDO?

 

Minha amiga, uma mulher em torno de 35 anos, mãe de duas filhas mulheres, uma de 18 e outra de 2 anos, me conta um pouco da sua história: ela se coloca como uma pessoa fora dos padrões, se sente como uma pessoa transgressora ... com 18 anos ficou grávida, veio do interior para a capital com o pai da criança, tiveram uma filha e se separaram pouco tempo depois. Ajudada pela família, e lutando muito, criou a filha. 

Teve outros breves amores. E, há mais ou menos três anos, de uma relação tórrida com um homem bem abastado financeiramente, ficou grávida de novo. Com uns três meses de gravidez descobriu traições e terminou com a pessoa. segundo ela, ele é um bom pai. 

Ainda na gravidez conheceu outra pessoa, que praticamente assumiu a gravidez, e ficou sendo um segundo pai da criança. Mas esta relação também terminou por causa de traições. Enfim, no princípio da pandemia, ela conhece uma outra pessoa... amor à primeira vista... tiveram COVID juntos, continuaram juntos, ele a incluiu no seu meio e na sua família. Muito rico, o sujeito (detalhe... rsrs).

E a minha amiga, agora, cerca de nove ou dez meses depois, está sofrendo muito. Por quê? novamente descobre traição, ele tem uma amante de 19 anos, mais nova do que sua filha. Essa filha (a filha dele...)faz contato com ela e dá o conselho de se afastar do mesmo porque, segundo ela, ele é um canalha. Já aconteceu até violência física com a mãe. Ela mesma (a filha) já cortou relações com o sujeito. Relata ainda que ele anda com muito dinheiro vivo no carro, na casa; mostra, ou melhor, ostenta sempre o tanto que  tem.

Ela, além de relatar que, nas brigas entre os dois, fica histérica e bate nele, relata também aquelas violências mais “sutis”, muitas vezes difíceis de serem identificadas como violências.

Dos cinco tipos de violências apresentados na Lei Maria da Penha:

. física: bater... fácil de ser identificada;

.sexual: te forçar a ter relações sexuais, sem o seu consentimento... também mais fácil de ser identificada (às vezes não... ele insiste tanto que você não consegue dizer não... e pode não perceber como violência... mas é...);

. psicológica: mais difícil de ser identificada ... muitas vezes vem disfarçada de amor|proteção, por exemplo “vou fazer isso (qualquer coisa) pra você porque você não é capaz”, “coisinhas” que vão diminuindo nossa autoestima;

. moral: também mais difícil de identificarmos ... e também vai diminuindo nossa autoestima... falar mal de você pra seus filhos, pra sua família... essas coisas;

. patrimonial: muitas vezes passa despercebida... controlar seu dinheiro, seu celular, esconder ou te proibir de usar uma roupa, ou rasgá-la, destruir uma coisa sua... coisas desse tipo, inúmeras vezes “por amor”.

As três últimas são as mais “sutis”, concordam? sutis do tamanho de uma patada de elefante... mas, por questões culturais, costumamos não identificar, não vemos, confundimos com amor... e por aí vai...

Voltando à minha amiga: ela percebe que já está vivenciando uma relação abusiva... mas não consegue sair!!! E a minha perplexidade: por quê??? e a minha pergunta, reveladora:

. quando a gente pensa|sente|percebe que está amando... precisamos muito nos perguntar imediatamente O QUÊ estamos amando? para além da pessoa que estamos amando!

Esta pergunta, feita de uma maneira completamente sincera e tentando nos  desvencilhar dos mecanismos de auto engano a que estamos sujeitas, será completamente reveladora de nós mesmas e das possíveis armadilhas a que estamos sujeitas. E, por consequência, abrirá possibilidades de caminhar para sermos mais livres... um pouco a cada dia.

E eu tive a coragem (e o cuidado)  de fazer essa pergunta à minha amiga. E fiquei muito feliz dela ter conseguido, de uma maneira maiêutica (extrair do outrx o que o outrx já sabe e não sabe que sabe, maiêutica significa "parto") perceber que ela estava “amando” o dinheiro, o status, que vinham junto com a pessoa. E aí pudemos continuar nossa conversa...

Olha só, liberdade significa autonomia de pensar, de sentir, de agir... mas passa pelo bolso... sem essa do bolso fechamos olhos, ouvidos, boca, igual aquele macaquinho, lembram? e esquecemos de nós mesmas.



E ela descobriu sua prisão aos valores de uma sociedade consumista... status, poder... e  somos educadas (ou deseducadas) para não nos sentirmos capazes e, por consequência, obtermos “isso” através do outro, do homem... e o “isso” também deve ser questionado... mas muitas de nós somos prisioneiras ... e, também por consequência, por não nos sentirmos capazes nem de, por trabalho pessoal conseguirmos status e poder econômico... e nem, por trabalho também pessoal, conseguirmos questionar: “é isso mesmo que vai dar sentido à minha vida?”, “eu dou conta de diminuir meu padrão de vida em função da liberdade de ser?”... perguntas dirigidas a mulheres de classe média... outras perguntas são mais adequadas a mulheres de outras classes sociais: a mulheres que não trabalham, não têm seu sustento... e outras mais.



Enfim, vivemos numa sociedade capitalista... na reificação, Marx já nos ensinou: o dinheiro ganha vida e nos transforma em objetos. E como nós, mulheres, somos suscetíveis! Precisamos, urgentemente, rever nossos valores... dar conta da própria vida (inclusive, ou pra começar, no econômico) nos trará autonomia de pensar, sentir e agir... enfim, colocar a vida nas próprias mãos, mesmo significando perdas... claro! Perdas no bolso... o ganho será maior...

E, claro, mais uma vez, estou dizendo isso para mulheres de classe média...



Ainda ... aprendamos com mulheres negras que, na nossa história, já trabalhavam e tinham seu sustento há muito tempo! Isso não deve passar por suas angustias... essas são outras... as quais também devemos estar sororidariamente perguntando.

E caminhando...



Enfim... pensem... não como eu... mas pensem...

Abraços sororizantes... e fraternais...

Santuza TU



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