Em 2019, em passagem pelo Brasil, a filósofa americana Angela Davis fez uma provocação: "Leiam Lélia Gonzalez!"
"Eu sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. E por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Acho que aprendi mais com LÉLIA GONZALEZ do que vocês aprenderão comigo".
Com organização de Flavia Rios e Márcia Lima, Por um feminismo afro-latino-americano reúne em um só volume um panorama amplo da obra desta pensadora tão múltipla quanto engajada. São textos produzidos durante um período efervescente que compreende quase duas décadas de história — de 1979 a 1994 — e que marca os anseios democráticos do Brasil e de outros países da América Latina e do Caribe. Além dos ensaios já consagrados, fazem parte desse legado artigos de Lélia que saíram na imprensa, entrevistas antológicas, traduções inéditas e escritos dispersos, como a carta endereçada a Chacrinha, o Velho Guerreiro. O livro traz ainda uma introdução crítica e cronologia de vida e obra da autora.
Irreverente, interseccional, decolonial, polifônica, erudita e ao mesmo tempo popular, Lélia Gonzalez transitava da filosofia às ciências sociais, da psicanálise ao samba e aos terreiros de candomblé.
Deu voz ao pretuguês, termo criado para pensar a formação da identidade cultural brasileira por meio das palavras provenientes de idiomas africanos. O pretuguês reforça a beleza da fala cotidiana das pessoas simples. "Essa fala tem suas origens. Não parte do nada. Não parte apenas de uma alteração do termo. É uma alteração que tem referências. Tem origens na construção cultural do Brasil, que são os idiomas africanos, que vieram também, assim como foram mecanismos de resistência. Uma forma de resistência é por meio da linguagem, do idioma". "Q"eu isse" significa "que eu fosse". Costuma-se dizer que esse jeito de falar é uma mineiridade, mas essa mineiridade é mais, é o pretuguês em si.
Também cunhou a categoria de amefricanidade. A 'amefricanidade' é descrita por Lélia como uma categoria político cultural que busca um novo olhar sobre a formação do Brasil e da América Latina, considerando as contribuições dos povos negros e indígenas na construção cultural do continente.
Lélia destaca também a entonação e o ritmo das falas. "A cultura brasileira é uma cultura negra por excelência, até o português que falamos aqui é diferente do português de Portugal. Nosso português não é português, é pretuguês com todo um acento de quimbundo, de ambundo, enfim, das línguas africanas", disse Lélia em entrevista a Patrulhas ideológicas, conforme citação no livro "Por um feminismo Latino Americano".
E nesse livro encontramos uma linda homenagem da Lélia a outra mulher maravilhosa: CLEMENTINA DE JESUS
Aquariana (pois nasceu num 7 de fevereiro), ela não poderia deixar de ter alguma ligação com os ardores do Carnaval brasileiro. Mas para além dos baratos astrológicos, Clementina de Jesus é uma negra especialíssima, cuja participação nos carnavais cariocas provém de longuíssima data. Basta dizer que, já aos doze anos, desfilava no bloco Moreninhas das Campinas, de Oswaldo Cruz, subúrbio que se constituiu como verdadeiro centro irradiador de cultura negra no Rio de Janeiro (não esqueçamos que foi a partir dali que o Paulo da Portela iria se lançar no mundo do samba). Clementina, cujo apelido era Quelé, apesar de cantar no coro da igreja não deixava de frequentar as rodas de samba da Maria Neném. E, quando surgiu a Portela, lá estava Quelé, mandando ver, sapateando e cantando junto com Paulo e seus companheiros. Foi aí que conheceu o Albino “Pé Grande” da Mangueira: casou e mudou. Daí em diante, só desfilava na verde-e-rosa. Em 1975, deu-se a fundação da Quilombo e, a convite de Candeia, ela se tornou a figura principal, a grande dama dos carnavais quilombolas. Neste Carnaval de 1982 a escola de samba Lins Imperial vai pra Marquês de Sapucaí com o enredo “Clementina, uma Rainha Negra”, inspirado em sua vida.
Formação negra
Mas Clementina não é carioca. E esse dado é fundamental pra gente poder sacar alguns aspectos da sua formação cultural e musical. Ela nasceu na cidade de Valença, no interior do estado do Rio de Janeiro, região de grandes plantações de café no século passado. E falar de plantação é falar de grande concentração de mão de obra negra. Filha de pai violeiro e de mãe jongueira, aprendeu a falar cantando jongos, modas de viola, lundus, calangos, cantos de trabalho, curimãs, benditos etc. Tudo isso num “pretuguês” maravilhoso, permeado de expressões africanas, originárias talvez do quimbundo. Portanto, a cultura negra de Clementina é essencialmente banto, como, de resto, a de todo o estado do Rio de Janeiro. Ainda criança, veio para a capital, para Oswaldo Cruz, onde passaria toda a sua adolescência. Certamente, foi a partir daí que se revelaram as suas incríveis qualidades de parideira
Em termos de “prendas domésticas”, ela também se destacaria como grande doceira. E isso lhe valeu muito, sobretudo após seu casamento em 1940, quando, a fim de dar uma força na economia familiar, passou a trabalhar como empregada doméstica. E, apesar das críticas das patroas, que achavam sua voz “horrível” (eta, alienação braba!), ela amenizava a dureza do trabalho com seu canto de rainha. Na Glória Além das rodas de samba, dos desfiles carnavalescos, Clementina e Albino, como todo o crioléu, curtiam participar de festas populares, tipo festa da Penha, N. S. da Glória etc. Preparado o farnel, lá iam os dois ao encontro dos amigos para as comemorações a que tinham direito. E tome samba, de partido-alto, de jongo, de sapateado, de birita e de muita alegria. Foi num lance desses, em 1964, que Hermínio Bello de Carvalho a descobriu. Após terem ido prestar suas homenagens à Virgem do Outeiro, Clementina e Pé Grande foram pra famosa Taberna da Glória, a fim de refrescar a garganta. E como sempre acontecia, ela começou a cantar, enquanto Albino a acompanhava batucando em cima da mesa. Hermínio, que morava por ali, ia passando quando ouviu aquela voz, que lhe tirou a respiração… Taí uma figura cujo trabalho sério e consequente em termos de música neste país ainda não mereceu, a nosso ver, todo o reconhecimento que lhe é devido. Na época, Hermínio organizara o grupo Menestrel, que realizava concertos extremamente originais: a primeira parte com música erudita e a segunda com música folclórica e popular. E foi assim que ele apresentou Clementina de Jesus ao grande público, no Teatro Jovem: a primeira parte do concerto coube a Turíbio Santos. Acompanhada por César Faria (violão), Elton Medeiros e Paulinho da Viola (percussão), ela simplesmente estarreceu a plateia. Em 1965, Hermínio produziria um dos melhores espetáculos de música popular de que já ouvimos falar: Rosa de Ouro . Aracy Cortes e Clementina de Jesus eram as duas grandes estrelas. Uma, famosa por suas glórias passadas; outra, se lançando para glórias futuras. Só que aquela estrela nascente já completara 63 anos de idade.
Na África
Daí em diante, sucedem-se as viagens pelo país e pelo exterior. No Festival de Arte e Cultura Negra, realizado em Dacar, sua presença forte, seu canto negro (ainda aí com acompanhamento de atabaques de Elton e Paulinho), sua espontaneidade fizeram dela o maior sucesso da delegação brasileira junto aos africanos. Mal retornados da África, os três partem para o Festival de Cannes, onde, mais uma vez, ela impressiona as multidões. E tudo isso em 1966. Valera a pena esperar. Nos anos seguintes, ela faz numerosos espetáculos, grava um disco antológico com Pixinguinha e João da Baiana (Gente da antiga), participa do segundo LP do Rosa de Ouro etc. Todavia, seu primeiro disco individual só pintaria em 1970, produzido pelo Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro: Clementina, cadê você? , título do famoso partido-alto que Elton Medeiros lhe dedicara. Voz que arrepia Conversando com Paulinho da Viola, este me disse que a considera uma das cinco maiores cantoras brasileiras de todos os tempos. Claro que pela extraordinária extensão de sua voz (graves e agudos incríveis), mas não só por isso. Que dizer do timbre, das síncopes, da maldade no dizer, do suingue? Negócio de arrepiar, de levantar defunto e, ao mesmo tempo, de acalentar criança. Voz negra que, quando bate na gente, nos remete para além do dizível, transformando tudo em vibração, emoção, paixão. Apesar de todo o seu valor, Clementina é uma injustiçada (como o povo e a cultura de onde ela provém). Sua discografia não ultrapassa o número cinco, seus cachês são baixos (enquanto tantas mediocridades estão aí, faturando milhões), quando não meramente simbólicos. Nesses quase vinte anos de vida artística, só conseguiu comprar uma casa num subúrbio e, assim mesmo, graças à atenção constante e amiga de Hermínio. Ela mesma não se esquenta muito com isso não. Sempre bem-humorada e lutadora, encara a vida com um sorriso no olhar. Apesar dos infartos, da morte de Albino e das ingratidões de muita gente, ela taí, nos seus oitenta anos bem vividos e muito bem cantados.
A grande dama
Mas o seu povo, o seu povão, a reconhece como grande dama, como sua rainha. Consequentemente, não é por acaso que uma escola de samba modesta, de segundo grupo, lhe rende homenagem. Foi justamente numa passagem do samba-enredo da Lins Imperial que colhemos o título desta matéria (enquanto seu conteúdo resultou muito do papo com Elton Medeiros e Paulinho da Viola, companheiros de primeira hora da nossa Clementina). Desnecessário dizer que estaremos na Marquês de Sapucaí para ver Clementina reinando sobre seus súditos, nessa festa única em que negros, pobres, explorados e oprimidos podem sair às ruas e cantar seus sonhos, suas dores e suas alegrias (embora a polícia esteja sempre por perto). “Lá vem Clementina/ que a todos fascina/ que canta e encanta os momentos felizes/ Lá vem Clementina/ que mostra, que ensina/ a cultura negra e suas raízes/ Taí Clementina/ eterna menina/ que hoje é rainha pra gente exaltar/ A rainha negra de todos os tempos/ que até o próprio tempo/ a quer conservar” (Tibúrcio, Antero e João Banana).
E, ouvindo Angela Davis, refletimos sobre a nossa - ainda hoje - carência de identidade autônoma - quem somos, nossos objetivos, ideais, valores - a identidade construída por nós mesm@as. Nossa identidade ainda é a reflexa, a imposta pelos nossos colonizadores.
E essa discussão diz respeito tanto a todas e todos nós, brasileiros... quanto também a nós, mulheres brasileiras. Pois, para a construção da identidade autônoma, precisamos nos conhecer, nos admirar... para construirmos nossas referências.
Axé, Lélia Gonzalez!
Axé, Clementina!
Axé Clara!
Viva o samba e viva o Brasil!!!
Até a próxima...
Santuza TU
E vejam que maravilhosa coincidência: