quinta-feira, 28 de junho de 2018

SOBRE LIVROS, FILMES, MÚSICAS... E VIDAS


Lars von Tiers é um criticado (e provocador) diretor dinamarquês. Oscila  de escolhido “mais charmoso cineasta” até “persona non grata” no festival de Cannes em 2011, quando foi apresentado seu filme Melancholia e quando fez “elogios” ao nazismo. E no mesmo festival agora em maio de 2018, quando apresentou o filme House that Jack Built (A casa que Jack construiu), um dos filmes mais aguardados da 71ª edição do festival, a sessão foi cercada por expectativas de violência extrema, já que muitas pessoas teriam abandonado a exibição para convidados na véspera. “Nojento” e “torturante” foram alguns termos ditos sobre o filme por essa plateia. Trata-se de um suspense com vários momentos cômicos. Jack é um engenheiro com uma compulsão pelo assassinato de mulheres. Ele não é um matador particularmente talentoso, mas as pessoas andam tão individualistas que não se importam em ouvir uma mulher gritar na casa ao lado. Talvez o principal tema do filme seja este: a falta de humanidade.

Lars von Tiers



Aqui pra nós, pra quem der conta de ver, deve ser muito bom... O SBC que se diz cinéfilo adora este cineasta desde Dogville, aliás desde antes, mas é sobre este filme que queremos falar. Lançado em 2014,  Dogville se passa nos anos 30 num lugarejo nas Montanhas Rochosas. Grace, uma bela desconhecida, aparece no lugar ao tentar fugir de gângsters. Com o apoio de Tom, o auto-designado porta-voz da pequena comunidade, Grace é escondida pela pequena cidade e, em troca, trabalhará para eles. Fica acertado que após duas semanas ocorrerá uma votação para decidir se ela fica. Após este "período de testes" Grace é aprovada por unanimidade, mas quando a procura por ela se intensifica os moradores exigem algo mais em troca do risco de escondê-la. É quando ela descobre, de modo duro, que nesta cidade a bondade é algo bem relativo, pois a cidade começa a mostrar seus dentes.

O filme acontece como uma peça de teatro, em capítulos. E no palco não temos praticamente nenhum cenário, senão os desenhos em giz no chão. “O que torna esse cineasta impressionante é o que ele consegue provocar de emoções fortes com as cenas, talvez por isso que as mesmas sejam “limpas”, garante uma SBCence cinéfila. E foi a partir da discussão desse filme que propusemos o projeto:

HISTÓRIA DE VIDA DE MULHERES MARAVILHOSAS DO SÉCULO PASSADO: O QUE PODEMOS CRESCER COM ESSES EXEMPLOS.

Olhem que esta ideia ocorreu há uns cinco anos. E agora estamos finalizando o projeto. Finalizando não, porque todo projeto SBCense é aberto, apenas publicando o que conseguimos realizar até agora, para que cada um(a) dê sua continuidade, comente, publique, construa a sua história... aproveite da melhor maneira.

Então, descrevendo o projeto: foi sugerido que mulheres SBCenses escrevessem sobre suas histórias de vida, imitando Lars von Tiers, em CAPÍTULOS que fossem significativos para elas, incluindo filmes, livros e músicas  que “mudaram” suas vidas.  Claro, além das suas experiências. Pois não é que uns três anos depois comecei a receber esses relatos!!!

Na verdade recebi, mais ou menos na mesma época, cinco relatos de vida de mulheres entre 40 e 70 anos. Me debrucei sobre eles... li-os atentamente... me emocionei profundamente. E também escrevi a minha história de vida. Trata-se de uma experiência riquíssima, de apropriação, que recomendo a todxs. 

Ilustrando a riqueza que vem a ser essa apropriação, vi recentemente um filme emocionante no festival Varilux de cinema francês. Segundo SBCense famoso filme francês mesmo quando é ruim é bom... nós concordamos.

 Marvin, direção Anne Fontaine,  2017. Marvin Bijou está em fuga, primeiro da sua cidade, depois da família, da tirania do pai, da renúncia da mãe e por último da intolerância, rejeição, humilhações às quais era exposto por tudo que faziam dele um rapaz  “diferente”. Fora de lá, ele descobre o teatro e pessoas aliadas, empáticas, que, finalmente, vão permitir que sua história seja contada por ele mesmo. Sem querer dar  spoiler, a imagem final do filme é reveladora e  tem absolutamente tudo a ver com os depoimentos dessas cinco (comigo seis) mulheres maravilhosas: depois da apresentação da sua peça de teatro, ele sobe a uma montanha, um por do sol... ele está feliz... e olha para o lado e vê ele mesmo quando criança... só a criança aparece, ela está sentada numa pedra e olha como se fosse na direção dele, e sorri, um sorriso de aprovação... agora ele aparece de novo e também sorri... só isso, e o filme acaba.
Anne Fontaine
E eu estava acabando de fazer o relato deste projeto, completamente envolvida com o mesmo. Ai eu me emocionei demais... saí do cinema chorando... e choro agora quando escrevo. Fico imaginando que cada pessoa deve ter feito uma “legenda” pra essa cena. A minha, que se aplica às mulheres que me mandaram suas histórias (e a eu mesma...) é:

ME SINTO MUITO FELIZ COM O QUE ME TRANSFORMEI, COM O QUE CONSTRUÍ DA MINHA VIDA...
Não tenho dúvida de que todxs nós devemos trabalhar para dizer isso de nós mesmxs.
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Então, vamos ao projeto: o que eu fiz foi reunir todos os relatos, transformar os seis relatos e escrevê-los como se fosse um só, e escrever no singular, ou seja, transformá-los numa

HISTÓRIA DE VIDA DE UMA MULHER LINDA DO SÉCULO PASSADO








"Eu só falo de mim porque é o assunto que eu 
mais domino" (Frida Kahlo)










Capítulo I – INFÂNCIA

- Nasci no século passado, em algum ano lá pela metade, numa cidade do interior de Minas.  Filha de pais analfabetos, classe média, branca. Meu avô paterno era professor, acho que naquele tempo ser professor era símbolo de status, como o padre, o prefeito e o juiz na cidade... tanto que era homem. Meu avô materno fazendeiro, me contaram que queria ser político e gastou boa parte da fortuna tentando. As mulheres avós eram “do lar”, o que se esperava de mulheres da classe média daquela época, “belas, recatadas e do lar”. Na minha memória, a minha avó paterna era uma velhinha autoritária, muito séria, crítica e amarga: “Põe bastante açúcar no café, de amarga basta a vida!”. Me lembro dela já morando sozinha na sua casa ao lado da nossa e o laado da loja do meu pai; à tardinha, ela se sentava numa cadeira na porta da casa e ficava ali vendo o movimento da praça principal da cidade. Meu pai, que era o mais novo, saía da loja e sentava ali com ela, acho que não conversavam. Já a minha avó materna, parecia a submissão em pessoa ("uma doçura de mulher"). Conta-se que ela evitava filhos amamentando; portanto, a diferença de um filho pro outro era exatamente a mesma, dois anos e meio. Acho que dezoito filhos.

- Meu pai não estudou porque não quis. Meu avô o mandou até pro Rio de Janeiro pra ver se ela estudava. Ele voltou e foi ser fazendeiro. Minha mãe estudou até curso normal, mulher naquela época estudava interna em colégio de freiras de cidades maiores, pois na cidade pequena não tinha esse tipo de colégio.

Rubem Alves
- Uma história da relação da minha mãe com meu pai que na minha vida ficou marcado como um exemplo negativo de relação: a minha mãe detestava fazenda e tinha conseguido ir pra cidade, ela trabalhava numa loja de um tio, isso quando solteira. Então ela só se casaria com meu pai se ele deixasse de ser fazendeiro, o que parece que ele amava... mas deixou... foi ser comerciante. Vi “cobranças mútuas” disso durante toda a vida, até a morte do meu pai. 

Como uma metáfora que, muito mais tarde, ouvi do Rubem Alves, e me tocou profundamente: a história da pipa e da flor. Uma pipa vivia feliz voando no céu. Um dia, ela viu uma linda flor num jardim... e chegou mais perto... e se apaixonou pela flor... e deu a linha para a flor: toma flor! A flor pegou a linha e também gostou da pipa. Mas na convivência das duas, a flor foi começando a duvidar do amor da pipa: ela dava suas rodopiadas e vivia muito feliz... e eu (a flor) aqui grudada no chão! E a flor foi puxando e diminuindo a linha... e a pipa foi voando baixo e ficando infeliz, não sabia muito bem por que... e assim foram vivendo... flor e pipa infelizes para sempre, como se uma “tirasse” a vida da outra... tudo por amor. 

Assim eu vejo a relação do meu pai e da minha mãe, ambos foram muito menos do que poderiam ter sido, ambos “permitiram”, em nome do amor (ou do modelo de amor que conheciam), que o outro lhes tirasse a vida, os desejos, o tesão...  Minha mãe sempre quis trabalhar, ou melhor, sempre trabalhou, ou na loja com meu pai, ou revendendo coisas que comprava em viagens, mas quando ela quis trabalhar “fora” meu pai não deixou. Ambos eram pipa e flor ao mesmo tempo: “Se você me ama, pipa, você abandona seus desejos e fica comigo”... “Vou ficar com você flor, mas você não mais verá meu sorriso, minha alegria...”



Capítulo II – MUDANDO PARA A CAPITAL

- Com mais ou menos 10 anos de idade, mudamos para Belo Horizonte. O objetivo da mudança era o investimento na vida e na carreira do filho homem, no caso o meu irmão. No interior, naquela época, a família de classe média investia na profissionalização do filho homem, ele deveria ser médico, engenheiro ou advogado. Em relação à filha mulher, a expectativa era que ela fizesse o curso normal (agora corresponde ao ensino médio), que casasse e tivesse filhos, fosse uma boa esposa e uma boa mãe. Mais tarde aprendi: “É verdade que falaram conosco que seriamos realizadas enquanto esposas,  mães... A sacanagem e que disseram que era “SÓ”..." 

Então, meu irmão foi para colégio de padres de classe média da zona sul de Belo Horizonte e eu fui (de novo) para um Colégio de freiras terminar o ginásio (hoje seria o fundamental).

- Tive a sorte de, terminando o ginásio (sorte porque o poder aquisitivo da família tinha caído assustadoramente... das contradições da vida), fazer uma espécie de vestibular para o Instituto de Educação e fui  fazer o curso normal. Foi uma espécie de libertação, da religião transmitida pelos colégios de freiras, terrivelmente repressora, que moldava a ferro e fogo a figura da “mulher pura, virgem, feita para o casamento, o amor, os filhos”. Me lembro agora do filme francês “Não sou um homem fácil”, e de quando falamos sobre o filme quase nenhuma pessoa (homem ou mulher) associa o nome do filme à frase “Não sou uma mulher fácil”... dá pra entender??? quando falamos em “mulher fácil” é perfeitamente compreensível (no mundo atual!... o filme é bem recente...) mulher fácil: da vida, alegre, o oposto de mulher difícil, que seria aquela mulher pronta para o “relacionamento sério”, ou seja, namoro e casamento... já um homem fácil é entendido de maneira diferente!!! Um homem não fácil é geralmente entendido como ranzinza, cheio de manias, difícil de lidar, já uma mulher não fácil é aquela destinada ao casamento, porque a fácil é a puta...

- Além da libertação religiosa, teve também o princípio do engajamento político. De um pouco mais do que eu chamo agora de “visão de mundo” para além da classe média branca. Tínhamos colegas de outras classes sociais, de outras raças, de outros credos e, quem quisesse aproveitava disso para ampliar sua visão de mundo ... e hoje são pessoas que reencontro e que são as mais engajadas, atualizadas;  outras. "envelheceram"...


Capítulo III – FACULDADE

- E quando terminei o curso normal (ou o segundo grau, ou agora o ensino médio) fiz o vestibular (agora ENEM). Aí cheguei em casa toda feliz porque tinha passado no vestibular numa Universidade particular no sexto lugar!!! Aí ouvi do meu pai:  “Você não é gente para estudar na nessa Universidade”. Até hoje não sei se ele dizia que eu não era gente porque essa universidade era paga ou porque o curso que eu queria fazer era só à noite (e uma mulher não podia estudar à noite, senão seria uma “mulher fácil”). Mas “tudo que me salva me mata”... embora ressentida disse pra mim mesma: “pois ele não vai pagar nada e eu vou estudar lá!” e comecei a trabalhar como secretária. Naquele tempo, trabalhar como secretária dava pra pagar faculdade (à noite) e ainda sobrava grana!


- Foi na faculdade meus primeiros contatos com “drogas ilícitas” – maconha!!! (minina!!! agora mesmo lembrei que uma vez quando eu era criança minha mãe  me deixou em Belo Horizonte para passar umas férias e um casal de amigos me levou de volta pra minha cidade... quando chegamos eles estavam no clube numa noite de carnaval e foram nos receber... chapados... de lança-perfume!... era “lícito”... olha que farsa!!!) – na verdade o que acontecia dentro das salas de aula era menos importante do que as conversas de corredor... sobre política... não política partidária (estávamos em plena ditadura) mas política num sentido mais amplo... valores de vida e valores relacionais estavam mudando... e muito... política feminina: sabe que essa época era a época em que a pílula foi lançada no mercado?! Já tinha no Brasil! E todas nós fomos cobaias, experimentamos pela primeira vez a pílula, a maior “invenção do século passado”. E a dosagem de hormônio certamente era muito maior do que se precisava para não ovular, e os efeitos secundários eram crescer e engrossar os pêlos, varizes, entre outros... mas isso era de menos para o que queríamos enquanto “libertação da natureza”... Simone de Beauvoir (“O segundo sexo”) era nossa bíblia da época...


- Outro livro muito bacana que li mais tarde e me identifiquei completamente: “1968 - O ano que não terminou”, do Zuenir Ventura. A repressão do regime militar era muita... a política. Mas a revolução cultural, a de valores orientadores da vida e das relações (a política em todos os níveis de relação), essa era irreversível. Por isso o valor dos corredores, das trocas de experiências de vida, angústias, anseios, desejos e tudo mais...

- Nessa época foi meu primeiro casamento. Vejo agora que, embora permeado pelo “amor romântico”, o maior objetivo foi sair de casa, pois eu não daria conta de sair por minha própria conta e risco, ainda estava impregnada, e bastante, dos desígnios culturais enraizados, embora lutasse contra eles... No meu registro emocional trabalhei muito (trabalhamos muito... ele e eu) para construir uma relação diferenciada dos padrões... tínhamos muitas características diferenciadas, a principal delas, o nosso círculo de amizades... mas não conseguimos... ou por imaturidade, ou por fatores que não tínhamos consciência na época... definitivamente não era um casamento do qual “eu tinha sido criada para...” acho que, contraditoriamente, na época o que mais “queríamos” era “cair” nos padrões... e, talvez por sorte, este casamento durou em torno de 4 anos. Voltei pra casa dos meus pais. Não precisava... o que eu acreditava na época que era um resgate agora acho que era um processo de punição... culpa... esses negócios... Freud explica...


Capítulo IV – SEGUNDO CASAMENTO

- Ah! mas foi no meu segundo casamento que eu consegui, inteiramente, cair de novo nos padrões... Este durou vinte anos. Claro, são duradouros, não são estruturados para a felicidade e a realização, são estruturados para serem duradouros. Como é fácil a gente ir caindo nos padrões se não pensamos.

“...Que apesar de termos feito tudo tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos... como nossos pais...” (Belchior)


- Claro que fui feliz!!! Tive dois filhos. Me realizei enquanto mãe... mas fui deixando de trabalhar, ou trabalhando para a gasolina. Sabe o carro que era fabricado só a álcool e que tinha um dispositivo com um litro de gasolina para ligar o motor??? este... Nem a gasolina (a maior, do tanque) eu conseguia pagar... só a da ignição!!! e achava que era livre!!! Fala sério!!! A liberdade é muito maior do que a do bolso (é a de pensar, de sentir, de agir... mas PASSA PELO BOLSO!!!)

- Eu ficava pulando de galho em galho, procurando minha identidade, procurando construir a resposta à pergunta “quem sou eu?” – esposa e mãe... É verdade que nos ensinaram que a felicidade está relacionada ao casamento e aos filhos. A sacanagem é que nos ensinaram que era SÓ!!! Já disse isso e repito... afff!!!

- Claro que também não tinha nenhuma consciência do valor social de ser mãe, dona de casa... pois isso não passa pela grana!!! E nós vivemos numa sociedade capitalista!!! O máximo que conseguimos fazer (historicamente...) são FISSURAS no sistema, que significam dizer NÃO ao capitalismo...

- O fato é que fui perdendo minha característica revolucionária, questionadora, fui incorporando o modelo da minha mãe... eu era a “grande mulher por trás de um grande homem”... era a administradora do lar, das finanças, ele trabalhava e deixava tudo nas minhas mãos, eu tinha um super poder e, ao mesmo tempo, nenhum poder... claro, pois quando tal poder foi questionado, quem vocês acham que se apropriou do mesmo??? digo, quando o poder era relacionado à liberdade, quem tinha o poder de “puxar a linha?” Isso é o que eu chamo de “violência naturalizada”, um tipo da violência que sofremos... é certo que quando não existe a simetria do ponto de vista do ganho de dinheiro, a mulher é valorizada, incensada, até ela, de alguma forma, manifestar o desejo e a ação de praticar sua liberdade (para pequenas coisas do tipo sair com amigas, ir num cinema, qualquer coisa que esteja fora da esfera do “ele deixa ou não deixa...”). Podem ter certeza de que quando isso acontece a “linha” (como a da pipa) é puxada, primeiro com “carinho” (do tipo “não gosto que você faça isso”, “você está fazendo isso porque não me ama mais...”) depois começam as agressões e a violência... até a física... até o feminicídio em muitos casos.


Capitulo V – ANOS 80 - TOMADA DE CONSCIÊNCIA

- Chamo também de “visão de mundo”. A consciência de gênero que me trouxe a consciência política, porque política a gente faz (ou reproduz) na cama e no mundo.

- Na época que tive minha segunda filha, por indicação de uma amiga comecei uma formação que incluía a terapia. Era uma formação do ser crítico, uma formação antropológica cultural. Estudávamos muito menos psicologia e muito mais filosofia, de uma maneira especial. Aliás, não era uma formação para psicólogos. Tínhamos colegas engenheirxs, arquitetxs, educadores, várias formações. Tínhamos, com todo texto ou livro que líamos, que fazer uma reflexão pessoal sobre o tema, aplicá-lo às nossas vidas, seja em que nível de relação (íntimo, pessoal, social, público), e produzir outro texto a partir do texto que líamos. Comecei a me ver enquanto sujeito... que produz conhecimento, aquele que passa por dentro de mim, que me afeta, me provoca reflexão. Juntei tudo que já sabia... e comecei a trabalhar como terapeuta cognitivo-comportamental, além de instrutora de treinamentos de relações humanas, com o que já trabalhava.

- Dessa  época  é um dos livros da minha vida, aqueles que provocam mudanças: “O feminismo espontâneo da histeria”, de Emilce Dio Bleichmar. Trata-se de uma psicanalista que inclui a perspectiva antropológica na psicanálise, e isso enriquece a mesma de uma maneira especial. Segundo ela, no mesmo “pacote” da histeria (e, portanto, tratada do mesmo jeito), temos pelo menos três tipos diferentes de mulheres, que guardam relação entre si, porém devem ser consideradas e tratadas de maneiras diferentes, com certeza. O primeiro tipo, ela descreve como passivo-feminina, aquela mulher que internalizou de maneira bastante “adequada à reprodução do modelo feminino” tudo o que ela foi “educada para...”, ou seja, a identidade reflexa, aquilo que já está pronto e designado pra nós quando nascemos mulher, nosso destino... Uma descrição bem atual seria a “bela, recatada e do lar”. Vejam, AINDA somos educadas para isso!!! Me vi COMPLETAMENTE nesse perfil, pelo menos uma parte da minha vida... Ainda, ela diz que, nesse perfil, os conflitos, a busca por uma identidade autônoma (a construção da resposta “quem sou eu”, que é pra vida toda...) não aparece... a pessoa está, pelo menos aparentemente, bem adaptada. Não é que não existam os conflitos, mas os mesmos não podem aparecer, só se manifestam na forma de somatização. 

Aí a segunda categoria, que é a histérica propriamente dita... Os conflitos emergiram e a mulher se vê completamente “esticada” entre a busca do “quem sou eu” e o apego aos ganhos (ou ilusões de ganhos) da primeira posição (provavelmente casada, filhos, “feliz” com seus papéis); já a segunda sofre, os conflitos estão abertos. Esta também é parte da minha história, com certeza... 

E a terceira categoria, a fálico-narcisista, esta também sofre, porém trata-se de um sofrimento diferente da segunda. Ela caminhou no sentido da auto-afirmação, da construção da identidade autônoma. Mas este caminho não é, definitivamente, reforçado ou alimentado no mundo em que vivemos (ainda...). Não mesmo, de maneira alguma! O que esta mulher sofre são as constantes ameaças (ou concretizações das ameaças) da impossibilidade da construção de uma vida mais plena em todos os níveis de relação. Pelo menos no modelo que conhecemos (este da relação a dois, casamento, filhos, profissão... e por aí vai). 

É como se, no mundo de hoje, sofrêssemos uma ameaça latente de...” você pode procurar quem você quer ser, mas sempre será as custas do corte de uma parte de você mesma... E aí topamos isso... pois é a única possibilidade da construção de novos modelos relacionais, na cama e no mundo. 

E esta mulher da terceira categoria nós somos... conseguimos chegar aí... e construiremos mais... mesmo com as ameaças... se for pra abrir mão de um casamento, por exemplo, que seja!

- E, eu penso, naquela época,  estava na segunda posição... e vejo muitas mulheres ainda nessa segunda, penso que é nessa fase que ficamos “pulando de galho em galho”... pois, agora vejo, eu dizia que tinha medo de “não dar certo”, quando na verdade a queixa é invertida: temos medo de “dar certo”, pois dando certo é que se escancara todos os padrões obsoletos, é dando certo que aparece, necessariamente, a mudança, o grande trabalho para as mudanças internas e externas... Assim como as novas possibilidades...


- É dessa época um filme que mudou minha vida: As horas. conta a história de três mulheres ao longo de um século. A primeira delas é Virgínia Woolf, grande escritora britânica que se suicidou lá pela primeira metade do século passado. A segunda, lá pelo meio do século, uma mulher completamente dentro dos padrões, casada com um militar, tinha um filho de uns cinco anos, estava lendo um livro da Virginia Woolf... e descobriu o vazio da sua vida. É impressionante a interpretação da Julianne Moore, ela consegue passar pelo olhar a falta de sentido de vida que a personagem estava vivendo. E a terceira, uma mulher já do século XXI, é uma surpresa essa terceira mulher se encontrar com a segunda... e ela pergunta: porque você fez isso? abandonar sua família e fazer sofrer tanto seu filho? e a outra responde: Eu tinha duas escolhas, a vida ou a morte... escolhi a vida! mesmo sabendo que causaria sofrimento a pessoas que eu mais amava. Mas escolhi a vida!!! 

E eu penso: como é difícil, como dá trabalho escolher a vida...



Capitulo VI – SEPARAÇÃO – SER PARA AÇÃO

- Eu já vivia há alguns anos a situação de simetria do ponto de vista econômico, já dividíamos as despesas de casa. E eu queria a simetria do ponto de vista do cuidado com a casa e os filhos. Eu propunha isso a ele e ele respondia afirmativamente, achava justo isso, e se propunha a dividir o trabalho. Mas o meu sentimento era de que tinha que estar sempre cobrando, sabe a musiquinha do camaleão? "eu conheço muita gente, que é igual ao camaleão, com a cabeça diz que sim, com o rabinho diz que não..." Ai aconteceu "a gota d'água", o estopim para a separação, segundo a minha percepção: eu disse a ele que precisávamos dedetizar o closed e mandar trocar um dos chuveiros que tinha queimado, o que ele escolhia fazer? ele escolheu o chuveiro e fiquei com a dedetização (reparem que, mesmo com a divisão de tarefas, quem vê o que precisa ser feito e administra é a mulher, ou seja, ainda não seria uma divisão real...). Pois bem, fiz a minha parte e fiquei esperando... um mês, dois meses, três meses... depois do terceiro mês, estando nós dois tomando uma cerveja, me lembrei disso e perguntei a ele porque não tinha feito ainda... e a resposta: não pensei em fazer, na verdade... só concordei com você... mas nem lembrei... porque você é muito autoritária e vive cobrando as coisas. Meu sentimento, naquela hora, foi de revolta contra o "autoritarismo do submisso":  o que finge concordar, mas não coloca sua posição, não dialoga, o que se opõe mas não põe... E foi daí que resolvi mesmo me separar...

- E me perguntaram: mas vocês pareciam tão bem juntos! o que houve? e eu contava um caso bem marcante pra mim: voltando do casamento de uma prima (que ele não quis ir...e ficou emburrado em casa). Quando cheguei ele começa a cometer as violências sutis (a hora que eu estava chegando, o cheiro de bebida, a roupa...) E foi aí que eu mostrei a ele, ou melhor, li um poema que o rabino tinha lido no casamento (foi uma cerimônia judaica e cristã e eu tive coragem de pedir ao rabino o poema). Era do Gibran Kahlil Gibran (1883 - 1931) um grande escritor libanês que fez carreira nos EUA, escrevendo diversos livros em árabe e em inglês. Ele também se dedicou à pintura, seus quadros foram expostos em vários países... e o poema falava sobre o amor, um conceito de amor completamente diferente do cristão (da mulher submissa ao homem, dependente, Eva e Adão são nossas matrizes, Eva da costela de Adão). Eis o poema:



Gibran Kahlil Gibran, auto-retrato
Amai-vos...

Amai-vos um ao outro,
mas não façais do amor um grilhão.

Que haja, antes, um mar ondulante
entre as praias de vossa alma.

Enchei a taça um do outro,
mas não bebais da mesma taça.

Dai do vosso pão um ao outro,
mas não comais do mesmo pedaço.

Cantai e dançai juntos, e sede alegres,
mas deixai cada um de vós estar sozinho.

Assim como as cordas da lira são separadas e, no entanto,
vibram na mesma harmonia.

Dai vosso coração, mas não o confieis à guarda um do outro,
Pois somente a mão da Vida pode conter vosso coração.

E vivei juntos, mas não vos aconchegueis demasiadamente.
Pois as colunas do templo erguem-se separadamente.

E o carvalho e o cipreste não crescem à sombra um do outro.


- Não somente a minha separação, mas também meu empoderamento enquanto mulher, aconteceu junto com o combate, em mim mesma, do que eu chamo de "religião escravizadora". Não a espiritualidade que, no meu entendimento, não precisa estar atrelada a nenhuma religião, é vivida no concreto, no amor ao ser humano, no amor ao bem. Mas a religião, falo da cristã que é a que eu conheço, está historicamente bem a serviço da manutenção do poder e, portanto, coloca a mulher num lugar de submissão ao homem. Isso eu tive consciência quando me contaram a história da Lilith. Vejam bem, Lilith é que foi a primeira mulher, na história da bíblia, mas este livro da Lilith foi um "livro apócrifo", proibido, pois não combinava com a matriz feminina que a burguesia em ascensão (falo do século XIV, XV... por aí) queria forjar pra nós, mulheres. Lilith foi criada do barro (igual a Adão) e os dois foram colocados (por Deus) no Paraíso. Mas Lilith começa a questionar algumas verdades prontas que Deus impunha... por que isso? por que aquilo? por que fazemos sexo eu por baixo e você por cima? eram muitos questionamentos e a vida de Adão ficou insuportável. Deus expulsou Lilith do Paraíso e era virou "marginal". Adão ficou lá e pediu a Deus que criasse outra mulher pra ele, mas que fosse mais "cordata". Aí Deus criou Eva... da costela, submissa, mesmo assim ela ainda não correspondeu, foi (na Bíblia) fonte do pecado, e teve que ser redimida pela Nossa Senhora, esta sim a matriz da mulher que queriam (submissa, pura, reprimida, bem forjada para os papéis destinados a nós) Então, me contaram desse jeito e eu imediatamente me identifiquei com a Lilith! Ou melhor, resgatei a Lilith em mim... precisamos da referência dela, para nos empoderarmos ... precisamos correr os riscos necessários, para crescer e construir um mundo melhor...


- E a música da minha vida nessa época era "começar de novo", do Ivan Lins.

- Hoje, algum tempo depois de separada, olho pra mim mesma e gosto do que construí: novos amigos, novos valores de vida. Gosto muito da filosofia de vida SBCense: o riso (rir da gente mesma contribui para a superação); o valor das amizades; e o sentido estético aplicado à vida (a música, a poesia, nos ensinam tanto!)

- Depois que separei tive muitos amores, muitos amantes, experimentei amores diferentes, de várias idades e sexos. E essa época foi muito rica pra minha vida. Aprendi a viver melhor e, combatendo padrões, experimentar o que a vida pode nos oferecer. Mas a relação íntima (afetivo-sexual), pra mim, já não tem aquela importância que nos ensinaram: "só sei viver se for por você..." Tenho amores e também vivo bem sem eles, as amizades são muito importantes pra minha vida. Claro que, quando estou só,  as vezes sinto falta dessa relação... mas conviver com a falta também faz parte do amadurecimento. 

- Também dessa época é o meu engajamento em grupos políticos de mulheres, hoje acredito que uma "nova política" vai ser construída a partir da ocupação, pelas mulheres, dos espaços públicos de poder, na política partidária, nas empresas, nas comunidades... assim chegaremos aos 50/50 de representação e construiremos um mundo mais simétrico e mais "amável", mais "bonito" (mais orientado pelo sentido estético, como é a filosofia do SBC: para além do sentido moral). Considero imprescindível todas as mulheres procurarem uma "formação política", ou participando de grupos, ou fazendo cursos, ou lendo livros, da maneira mais viável, mas não se furtem a este empreendimento, pois trata-se de uma formação necessária para ocuparmos estes espaços.






- Um "livro da minha vida" dessa época é "Nova história das Mulheres no Brasil". São vários artigos, todos escritos por mulheres, que descrevem e refletem sobre a mulher no Brasil durante todo o século passado, a trajetória das mulheres... nas artes, na literatura, no lazer, no trabalho, família, no direito... eu terminei de ler o livro com perplexidade: como mudamos na segunda metade do século passado! E como precisamos mudar muito ainda! 




- E, escrevendo este último capítulo, me ocorre a "música da minha vida". O significado dessa música, pra mim: uma lembrança e ao mesmo tempo um resgate de uma parte de mim mesma que se perdeu na história, que se perdeu quando fui me adaptando aos "padrões". O "resgate" foi necessário para a construção do "ser quem eu queria ser". 




- Eu, SantuzaTU, termino esse textão super emocionada... 
Minha gratidão a essas cinco mulheres, que não querem suas identidades reveladas, mas que, com uma generosidade riquíssima, compartilhou conosco suas histórias de vida que, com certeza, servirão de referência para muitas de nós, assim como para muitos homens SBCenses feministas maravilhosos.

- E, por último, de tudo isso aprendemos ainda que importa menos o que fizeram conosco, e muito mais o que vamos fazer com o que fizeram conosco...

Abraços carinhosos a todxs...












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