Queridxs amigos SBCenses. A carta a seguir me impressionou
muito. Cada vez mais acredito no que uma amiga diz: três em três mulheres já
sofreram ou sofrem (ou sofrerão) violência, vindo de todos os lugares na nossa
sociedade machista e misógina. E o jeito de ir resolvendo isso é sempre superar
nosso medo, vergonha, culpa e, de alguma forma, denunciar sempre. Estaremos,
ao denunciar, trocando experiências de como lidar com essas violências, para diminuir (ou superar) o sofrimento, como o que esta amiga viveu por anos e anos. Ela me disse que conseguiu
escrever na semana passada, quando do dia 8 de março... mas me mandou hoje,
autorizando sua publicação sem o seu nome... chorando pela morte de uma mulher
que trabalhava na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da
integridade do ser humano... e foi brutalmente assassinada: Marielle Franco. A
ela nossa homenagem.
SantuzaTU
Carta a um amigo homem:
Meu querido amigo, que amo e sei que sou
amada...
Escrevo agora a você, depois de cerca de um
mês... ainda muito triste com o que aconteceu... você sabe que eu escrevo para não
morrer... para resistir, para não me calar, me submeter, enfim, para reagir a
tudo de ruim nesse mundo, especialmente com as mulheres.
Naquele dia, depois da nossa discussão e da minha saída
(intempestiva porque não queria chorar naquele lugar) de onde nos encontrávamos,
recebi seu recado recomendando o filme “Me chame pelo seu nome”. Era disso que
eu falava, você disse. Então fui ver o filme... sempre procurando algo que me
faça refletir e crescer. Você sabe, crescemos pelo amor e pela dor... gosto
muito mais de crescer pelo amor... mas nesse caso foi pela dor, e quando é
assim precisamos aprender a suportá-la até a superação, até a construção de
nossos afetos, novas reflexões, novos valores orientadores para a vida.
Lindo o filme... conta a história de um
romance entre um cara mais velho com um adolescente (acho que 17 anos). Vi
nisso pouquíssima relação com o que te contei. Na verdade o que me tocou
profundamente no filme foi em algum momento da história em que o personagem vive um dilema: falar ou
morrer. Gostaria de ter falado mais, para não
ter morrido tantas vezes. E o caso que te contei foi uma das minhas grandes
mortes. Acho que foi a primeira vez na vida, “trocentos” anos depois do
acontecido, que me vi na liberdade de contar esse caso, como um “desabafo” e também
a busca de empatia. E, com a dor da não empatia, aprendi que devo falar disso
muito mais vezes, para muito mais mulheres (e homens... e outros gêneros), que se calam e vivem uma vida de
medo, culpa, vergonha, emoções que nos aniquilam e nos desempoderam.
Então
vou te contar de novo, e também contar pra mim mesma e pra quem mais queira
saber: não sei o que estávamos conversando, como me deu a vontade de te
contar... só sei que comecei contando de um jeito como se procurasse a
condenação (percebi isso depois): já comecei o caso dizendo que eu era
extremamente sedutora na adolescência... Também aumentei minha idade. Na
verdade eu devia ter uns 14 para 15 anos quando aconteceu o que vou contar.
Nessa idade eu era bastante reprimida e cerceada pelos meus pais... Não tinha
liberdade para fazer amizades, namorar nem pensar... minha única companhia era
um tio que morava conosco, de 12 a 15 anos mais velho. Então, pro cinema era só
com ele, passear... essas coisas. Pois bem, passeávamos na praça da liberdade,
íamos ao cinema... e andávamos de mãos dadas, como namorados... me apaixonei
loucamente... tesão de matar. Nas minhas lembranças, além de andar de mãos
dadas, no cinema ele me acariciava no colo, indo até quase os mamilos, eu quase
morria de tesão. Não sei se eu evitava ou ele não tinha coragem de ir mais...
enfim, saíamos do cinema de mãos dadas e conversando... e por ai vai.
Mas
nunca conversávamos sobre o que estava acontecendo. Então... um dia ele me
chamou para dar uma volta de carro. E começou as carícias... então, num certo momento,
ele pegou minha mão e colocou no seu pinto... eu tomei um susto, e disse: eu
sou sua sobrinha... aí ele parou, se afastou, disse “desculpa” e fomos embora.
Nunca mais ele me olhou na cara...
Imagina
minha perplexidade, minha dor, culpa, vergonha, medo... tudo... e então as
defesas... “nada aconteceu”, não se fala no assunto e é como se nada tivesse
acontecido... quem nunca já usou essa defesa? só que a coisa fica enterrada e
te corroendo... voltando ao filme: morremos várias vezes na vida quando não
falamos...
Este
é o caso. E eu, te contando, também disse que isso me custou uns 20 anos de
terapia... agora penso que talvez escrevendo consiga “falar” me libertar,
fechar uma “Gestalt” como dizem os terapeutas. Porque, meu grande amigo, você
me ajudou a perceber que não podemos contar com um ambiente propício para
“falar ou morrer”... temos que falar de qualquer jeito... contando com empatia
ou não das pessoas... só falando é que criamos a possibilidade de encontrar as
empatias, encontrar também os compartilhamentos das violências diárias que nós
mulheres sofremos... Nossa, como me senti revitimizada quando, ao contar esse
caso, você começa uma discussão sobre a questão da justiça, da maioridade, que
foi desencadeando para “ela também tinha sua culpa...” e foi aí que te
perguntei: então me diga que parcela de culpa ela tinha, qual a porcentagem de
culpa cada um tinha nesse acontecimento? e a sua resposta: claro que 50 – 50...
cada um tinha metade da culpa!!!
Foi
nesse ponto que acabou toda a minha energia... e fui pra casa chorar... chorar
por todas as mulheres que sofreram e sofrem violências diárias, desde as mais
sutis até a morte (feminicídio) e são revitimizadas... pelos pais, irmãos,
amigos, pelas próprias mulheres, pelas instituições que ela procura: Claro! A
culpa é sua! Olha a saia! Você que provocou! Porque não ficou no seu lugar!!! (provavelmente
o lugar da submissão e do silêncio).
Meu
querido amigo! Nós não estávamos discutindo ali duas opiniões diferentes... não
coloque a conversa nesse nível. Duas pessoas podem ter opiniões diferentes e,
mesmo assim, quando uma tem a sensibilidade de ver que a outra está
simplesmente buscando empatia, oferecê-la... isso não significa submissão ao
que a outra pensa ou à sua opinião. Por outro lado, talvez eu não tenha
conseguido evidenciar essa busca de empatia... pode ser... acho que a culpa a
gente carrega a vida toda... até pra contar o caso já fui me mostrando
culpada...
Enfim, estas reflexões foram muito valiosas pra mim. Cresci muito...
não pelo amor mas pela dor... mas tá valendo... e me vejo na obrigação de
compartilhar ao maior número de pessoas possível...
Ahhh... uma última coisa: você disse no nosso diálogo: ele te
respeitou! Quando você disse “eu sou sua sobrinha”... ele parou com o assédio! Não, meu amigo... não há respeito quando há desamor, quando não se consegue sair de
si mesmo e perceber o outro... não há respeito quando a fala é interditada,
sufocada, reprimida, negada.
De quando nossa conversa aconteceu até agora, quem me ajudou
muito também foi Maria de Queiroz, escritora brasileira, da academia Mineira de
Letras... e termino com ela:
"Eu não tenho medo do
amor. Eu tenho medo é de amar quem tem medo dele. Amar quem teme o amor é como
se apaixonar por uma sucessão de desistências."
Ele, o meu tio (e alguns outros
homens), me tirou alguns anos de alegria, de vida, mas não me tirou a
capacidade de amar...
ótima atitude de superação! !! ótimo texto
ResponderExcluirabraços carinhosos Carlitos... TU
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