O
SBC presta uma singela homenagem a uma grande mulher brasileira, que sempre fez
parte da nossa galeria de SBCenses famosas: acaba de falecer aos 83 anos Rose
Marie Muraro, patrona do movimento feminista...por mérito e por lei (Lei 11.261
de 30/12/2005 passada pelo Congresso Nacional foi nomeada Patrona do Feminismo Brasileiro). Suas ideias inspiraram também a "teologia da
libertação", junto a Leonardo Boff, o que lhe custou a demissão da Editora
Vozes e a censura pública por parte da Igreja Católica. “Rose definia sua luta
como uma luta por um mundo solidário a tod@s, o que inspira todas as lutas por
direitos humanos. Era clara em afirmar que não se trata de um conflito entre
lados opostos, como os falastrões acusam para minimizar a questão”, disse o
deputado federal Jean Wyllys, no face.
Rose Marie Muraro (Rio de Janeiro, 11 de
novembro de 1930
- Rio de Janeiro, 21 de junho
de 2014)
nasceu praticamente cega. Há pouco tempo desafiou os próprios limites quando, aos
66 anos, recuperou a visão com uma cirurgia e viu seu rosto pela primeira vez.
"Sei hoje que sou uma mulher muito bonita."
Oriunda
de rica família do Brasil nos anos 1930/40, aos 15 anos, com a morte repentina
do pai e consequentes lutas pela herança,
rejeitou sua origem e dedicou o resto da vida à construção de um novo mundo:
mais justo, mais livre. Nesse mesmo ano conheceu Dom Helder Câmara
e se tornou membro de sua equipe. Os movimentos sociais criados por ele nos anos 40
tomaram o Brasil inteiro na década seguinte. Nos anos 60, o golpe militar
teve como alvo não só os comunistas, mas também os cristãos de esquerda.
A
Editora Vozes
foi um capítulo à parte na vida de Rose. Lá, trabalhou com Leonardo Boff
durante 17 anos e das mãos de ambos nasceram os dois movimentos sociais mais
importantes do Brasil, no século XX: o movimento de emancipação das mulheres e
a teologia da libertação - até hoje, base da
luta dos oprimidos.
Para Boff, Rose Marie estabeleceu inovações analíticas “sem
precedentes” sobre o estudo da mulher. Parte significativa de seus estudos
foram reunidos no livro “Sexualidade da mulher brasileira: corpo e classe
social no Brasil” (1996), considerado um clássico. — Ela introduziu a questão da classe social no estudo de gênero,
foi a primeira mulher a estudar de forma sistemática a sexualidade da mulher
brasileira a partir da situação ou classe social. — Ela inaugurou esse
discurso, nem Freud ou qualquer analista europeu atingiram esse ponto. Tudo
isso foi resultado de uma ampla e minuciosa pesquisa de campo, diz Boff.
Juntos, Rose Marie e Boff assinaram, em 2002, o livro “Masculino
/ Feminino”, onde investigaram juntos a relação entre os gêneros. — A Rose elevou a questão do gênero a um novo patamar, pois não
considerava o masculino e o feminino como realidades que se contrapõem, mas
como instâncias fundamentais, onde cada um é completo em si mas voltado para o
outro, numa relação de reciprocidade e construção conjunta — diz ele ainda.
Nos
anos 80, Rose e Boff vivenciaram a virada conservadora da Igreja. E em 1986, foram expulsos da Vozes,
por ordem do Vaticano.
Motivo: a defesa da teologia da libertação, no caso de Boff e a publicação, por
Rose, do livro Por uma erótica cristã.
Foi
eleita, por nove vezes, A Mulher do Ano. Em 1990 e 1999, recebeu, da revista Desfile,
o título de Mulher do Século. E da
União Brasileira de Escritores,
o de Intelectual do Ano, em 1994. O trabalho de Rose,
como editora, foi um marco na história da resistência ao regime
militar. Devido a este trabalho recebeu do Senado
Federal o Prêmio Teotônio Vilela,
em comemoração aos 20 anos da anistia no Brasil. Foi
também palestrante nas universidades de Harvard e Cornell, entre tantas outras instituições de ensino
americanas, num total de 40. Editou até o ano 2000 o selo Rosa dos Tempos, da Editora
Record. Atualmente
vinha dedicando-se ao Instituto Cultural Rose Marie Muraro, fundado em 2009.
Ao longo da vida, escreveu 44 livros — como “Os seis meses em
que fui homem” (1993), “Por que nada satisfaz as mulheres e os homens não as
entendem” (2003) — que venderam mais de um milhão de exemplares. Em 1999, ela
contou sua história na autobiografia “Memórias de uma mulher impossível”, uma das três únicas autobiografias
de mulheres da História do Brasil. Em trecho de documentário, lançado em 2009, Rose Marie explica: “O assunto mulher era um
assunto sem importância para os militares e para a sociedade como um todo. O
pessoal não sabia da existência do feminino. Ah, essa daí lida com mulher, essa
daí não é perigosa, tem filhos pequenos, só tá na igreja, então essa daí não
vamos perseguir. Já nos anos 60 eu dizia: eu também quero pôr fogo no mundo.
Fui pôr fogo no mundo, fui ser editora. E eu vi que eram os livros que punham
fogo no mundo”.
Então,
gente... SBCenses... de todos os gêneros... em qualquer livro que você ler da
Rose Marie você terá uma análise aprofundada da história humana, da
sexualidade, da mulher. Peguei uma sinopse do “Feminino e masculino – Uma nova
consciência para o encontro das diferenças”, publicado em 2002 e escrito por
ela junto com Leonardo Boff, para dar
vontade de ler: “...neste livro,
Leonardo Boff e Rose Marie Muraro fazem uma análise profunda da sexualidade e
mostram como os conflitos entre os gêneros podem levar à destruição da
humanidade. É preciso estabelecer um convívio pessoal mais harmônico entre
homens e mulheres, sem competição nem violência, e criar uma nova consciência,
mais solidária. 'Feminino e Masculino' é uma obra provocadora, que questiona as
grandes teorias patriarcais, a psicanálise freudiana e até a teologia produzida
a partir do ponto de vista masculino.
“O homem vê a mulher como se estivesse num frigorífico: um
pedaço de nádegas, olhos grandes, cabelos pretos, seios fartos. Ele enxerga a
mulher aos pedaços.”
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E mais um, também para
instigar a leitura, acho que o seu último livro, publicado em 2011, trata-se de
“Reinventando o Capital/dinheiro”
Em
Reinventando o capital/dinheiro Rose
Marie oferece aos leitores leigos em economia uma leitura simples e direta
sobre a história do capital/dinheiro. Ela mostra como está ocorrendo a
transição entre o sistema capitalista e o novo sistema que a era da informação
exige, assim como a situação entre economia e ecologia. E, de uma forma
positiva e corajosa, aponta como é possível mudar a lógica da economia, do
estado, das culturas e, principalmente, a lógica monetária, criando o dinheiro
sustentável e solidário.A
leitura de Reinventando o
capital/dinheiro desmistifica o complicado mundo da economia e
nos faz pensar que é possível mudar o panorama de crise atual se investirmos em
valores sociais que possibilitem a criação de um novo paradigma, onde o
altruísmo, a cooperação, a reciprocidade e a consciência ecológica ganhem lugar
de destaque.
Agora, merece atenção especial
uma introdução, escrita por ela, numa das últimas edições do livro “Malleus Maleficarum – O Martelo das
Feiticeiras”, conhecem este livro? Não?
Toda mulher deveria conhecer e, mais ainda, a “BREVE INTRODUÇãO HISTORICA” que a nossa homenageada faz nesta
última edição publicada do mesmo. Trata-se de uma esplêndida aula de história.
Um pouco sobre o livro: escrito em
1484 pelo inquisidores Heinrich
Kramer e James Sprenger, o Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum) é um
dos livros mais importantes da cultura ocidental, tanto para os leitores que se
interessam pela história quanto para aqueles que estudam a história do
pensamento e das leis. Documento fundamental do pensamento pré-cartesiano, bem
como um dos mais importantes depositórios das leis que vigoravam no Estado
teocrático, revela as articulações concretas entre sexualidade e poder, e por
isso é uma peça única para todos aqueles que estudam a profundidade da psique
humana e o funcionamento das sociedades. Durante quatro séculos este livro foi
o manual oficial da Inquisição para caça às bruxas. Levou à tortura e à morte
mais de 100 mil mulheres sob o pretexto, entre outros, de "copularem com o
demônio". Esse genocídio foi perpetrado na época em que formavam as
sociedades modernas europeias. Uma das consequências, apontadas pelos
especialistas, foi tornar dóceis e submissos os corpos das mulheres
Aqui,
pequenos trechos da Introdução Histórica, prá acabar com essa péssima tendência
que temos de “naturalizar” concepções completamente definidas historicamente,
portanto, possíveis de serem mudadas. Vocês acham que o tal Malleus Maleficarum (escrito em 1484), não tem mais a ver com os
nossos dias? Ledo engano... leiam ai...
“Era
essencial para o sistema capitalista que estava sendo forjado no seio mesmo do
feudalismo um controle estrito sobre o corpo e a sexualidade... Começa a se construir ali o
corpo dócil do futuro trabalhador que vai ser alienado do seu trabalho e não se
rebelará. A partir do século XVII, os controles atingem profundidade e
obsessividade tais que os menores, os mínimos detalhes e gestos são
normatizados.
...vemos assim
que na mesma época em que o mundo está entrando na Renascença, que virá a dar
na Idade das Luzes, processa-se a mais delirante perseguição às mulheres e ao
prazer. ...se nas culturas de coleta as mulheres eram quase sagradas por
poderem ser férteis e, portanto, eram as grandes estimuladoras da fecundidade
da natureza, agora elas são, por sua capacidade orgástica, as causadoras de
todos os flagelos a essa mesma natureza. Sim, porque as feiticeiras se
encontram apenas entre as mulheres orgásticas e ambiciosas, isto é, aquelas que
não tinham a sexualidade ainda normatizada e procuravam impor-se no domínio
público, exclusivo dos homens".
Assim, o
Malleus Maleficarum, torna-se a testemunha mais importante da estrutura do
patriarcado e de como esta estrutura funciona concretamente sobre a repressão
da mulher e do prazer.
De doadora
da vida, símbolo da fertilidade para as colheitas e os animais, agora a
situação se inverte: a mulher é a primeira e a maior pecadora, a origem de
todas as ações nocivas ao homem, à natureza e aos animais.
Durante
três séculos o Malleus foi a bíblia dos Inquisidores e esteve na banca de todos
os julgamentos. Quando cessou a caça às bruxas, no século XVIII, houve grande
transformação na condição feminina. A sexualidade se normatiza e as mulheres se
tornam frígidas, pois orgasmo era coisa do diabo e, portanto, passível de
punição. Reduzem-se exclusivamente ao âmbito doméstico, pois sua ambição também
era passível de castigo. O saber feminino popular cai na clandestinidade,
quando não é assimilado como próprio pelo poder médico masculino já
solidificado. As mulheres não têm mais acesso ao estudo como na Idade Média e
passam a transmitir voluntariamente a seus filhos valores patriarcais já então
totalmente introjetados por elas.
É com a caça
às bruxas que se normatiza o comportamento de homens e mulheres europeus, tanto
na área pública como no domínio do privado.
A
sociedade de classes que já está construída nos fins do século XVIII é composta
de trabalhadores dóceis que não questionam o sistema.
E a nossa
homenageada termina sua Breve História fazendo uma análise das Bruxas atuais:
“...agora, mais de dois séculos após o término da caça às bruxas, é que podemos
ter uma noção das suas dimensões. Somente nos tempos de hoje é que estão se rompendo
dois tabus que causaram a morte das feiticeiras: a inserção no mundo público e
a procura do prazer sem repressão. A mulher jovem hoje liberta-se porque o
controle da sexualidade e a reclusão ao domínio privado formam também os dois
pilares da opressão feminina.
Assim,
hoje as bruxas não podem ser queimadas vivas, pois são elas que estão trazendo
pela primeira vez na história do patriarcado, para o mundo masculino, os
valores femininos. Esta reinserção do feminino na história, resgatando o
prazer, a solidariedade, a não-competição, a união com a natureza, talvez seja
a única chance que a nossa espécie tenha de continuar viva.
Creio que
com isso as nossas bruxinhas da Idade Média podem se considerar vingadas! Diz
Rose, otimista...
Vá
em paz, grande SBCense. Você deixou um tesouro para nós: sua luta e a herança
de tudo o que você inspirou.
Beijos
às bruxas e bruxos...
SantuzaTU
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