Ele mesmo se descreve:
"Esta é uma foto minha quando tocava contra baixo. Foi uma gravação no estúdio HP. Não existia áudio digital, era tudo analógico".
A
Boemia
Como
todo adolescente que começa a dar suas saídas pelas noites, comigo não foi
diferente. Frequentava sempre os lugares da moda com pessoas da minha idade. Não
me recordo por quais circunstâncias passei a notar outro tipo de ambiente: o dos
boêmios ortodoxos. Sim, aqueles que bebem muito, sempre fumam e já maduros usam
um figurino de uma época que já passou, além de preferirem as músicas de um
outro tempo. Aos poucos fui me infiltrando nessa fauna exótica e após o passar
do tempo, já era recebido com carinho pelos homens de olhos melancólicos, modos
apurados e prosa inteligente.
Sob
as críticas veladas dos meus companheiros e a estranheza da minha família
passei a preferir a companhia desses personagens noturnos e na maioria das vezes
de vida trágica.
Havia
um desses companheiros em particular que tinha um afeto especial por mim. Era
um solteirão que morava sozinho. Numa ocasião ele me convidou para ir ao seu
apartamento, aceitei. Entrando na sala percebi que haviam poucos móveis ali. Um
sofá surrado, uma poltrona de braços largos onde repousava um cinzeiro, uma
mesa de centro onde havia um copo com restos de alguma bebida que não
identifiquei, um quadro na parede representando uma paisagem alpina, uma
estante com vários livros e uma cortina na janela de gosto duvidoso. Mas a
cereja do bolo era “um três em um” Gradiente que brilhava encostado na parede
principal da sala. Junto com ele vários discos de vinil.
Meu
amigo, percebendo meu interesse pelo aparelho de som, perguntou-me se gostaria
de ouvir uma música. Aceitei a sugestão. Ele disse então que colocaria uma
coisa muito especial, não as porcarias que minha geração ouvia. Disse isso com
uma pitada de sarcasmo. Absorvi a ironia numa boa e fiquei esperando qual seria
aquela coisa muito especial.
Os
discos de vinil não cabiam no móvel que sustentavam o som, eles se espalhavam
encostados na parede. Meu amigo gastou um tempo procurando e dizendo que
precisava organizar aquela bagunça. De repente ele deu um grito: “Achei o
miserável!!”.
Entusiasmado
me mostrou a capa e disse com uma expressão de quem tivesse acabado de
encontrar ouro: “Conhece a pérola? Claro que não!!”. Respondendo ele mesmo a
pergunta que tinha me feito. Quase encostou o disco na minha cara. Li o nome
Dilermando Reis e vi a foto preta e branca de um homem num terno alinhado com
um violão no colo. “Agora, disse ele: senta
aí pra você entrar no paraíso!!”
Sentei
na poltrona e aproveitando o cinzeiro que estava no braço, acendi um cigarro.
Antes de colocar o disco no prato ele se virou e disse: ”Dilermando Reis
interpreta Américo Jacobino, Abismo de Rosas”.
Quando
a música começou, ele sentou no velho sofá e deu uma talagada na bebida que
estava na mesa de centro. Acendeu um cigarro. Seus olhos ficaram estáticos
mirando um ponto qualquer e começaram a marejar.
Quando
aquele som preencheu o ambiente meu amigo começou a reger a música com as mãos,
parecendo estar em outra dimensão. Na sua face abriu-se um leve sorriso. O êxtase
que aquele rosto expressava me dava a impressão que o sujeito visitava
distantes lugares no passado. A música saia de um único violão, dedilhado com
maestria, nunca tinha ouvido algo parecido.
A
melodia de repente me fez lembrar uma foto que havia visto na casa de um tio
meu. A imagem era de uma rua em aclive, no meio dela havia trilhos e em cima
dos trilhos trafegava um bonde. Os prédios mais pareciam palacetes com várias
janelas e muitos detalhes artísticos. As ruas eram agitadas, com homens de
terno e chapéu, uns lotavam as calçadas e outros atravessavam as ruas.
De
repente ele se levanta, me tirando dos meus devaneios, e encaminha-se para cozinha.
Volta de lá com uma garrafa de uísque e um maço de cigarro, os deposita na
mesinha do centro, enche seu copo e volta para posição original.
Finda
a música, se inicia outra. Ele então diz com ares de especialista: “Brejeiro”
de Ernesto Nazareth.”
Deu
uma talagada no copo e ascendeu outro cigarro. Não me ofereceu a bebida, eu
teria recusado. A segunda música era tão melodiosa e cheias de acordes
sofisticados como a primeira.
Percebi
que meu amigo se embriagava, seu leve sorriso de antes dava lugar a uma máscara
fisionômica tristonha e melancólica. Continuava no seu êxtase e já não notava
minha presença ali. Me incomodei e fiz menção de me despedir. Ao proferir as
primeiras palavras de despedida meu amigo saiu do transe, deu um pulo do sofá e
disse: “Calma, quero te ler um poema, é magnifico!”
Concordei
em esperar, mas disse que estava com pressa. Aquela situação começava a me
deixar de baixo astral.
Então
ele caminhou até a estante onde havia um amontoado de livros, tirou uma folha
de dentro de um deles, assumiu uma postura solene e com voz empostada começou a
ler o poema:
Foi
como se eu levasse um soco no estomago, o baixo astral terminou de se instalar.
Agradeci os momentos agradáveis, fiz um gesto de despedida e sai pela porta
pensando se aquela vida era mesmo boa.
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