Maju faz um resumo do filme: Kafuku (Hidetoshi Nishijima), o viúvo de meia idade, pode parecer estar se movendo pela vida, mas ele não está realmente. É um ator aclamado e proponente de um estilo inovador de teatro, em que nem todos os atores falam a mesma língua: o diálogo é projetado, traduzido em vários idiomas, acima do palco. A esposa de Kafuku, Oto (Reika Kirishima), escritora de televisão, está morta há dois anos: nós a conhecemos nas cenas de abertura do filme. Eles perderam um filho. Oto foi infiel. Mas fica claro que sua morte repentina afetou Kafuku de maneiras que ele não contava.
Maizé lembra um comentário sobre o filme: ... os humanos precisam estar perto de outros humanos. Isso soa uma trivialidade que todos aceitamos sem questionar. A verdade é que a verdadeira proximidade vai muito além da apreciação – ou adoração – por outra pessoa. Exige uma fortaleza que é quase de aço, uma abertura ao auto exame que pode ser tão doloroso quanto edificante. ... o filme é terno como uma tempestade. Somente depois que você dá tempo para que suas ideias se estabeleçam, sua imagem completa se torna clara. É o tipo de filme que faz tudo parecer limpo, um empurrãozinho de encorajamento sugerindo que não importa o quão cansado você se sinta, você pode seguir em frente no mundo.
..."Drive My Car é uma história de perda e perdão. Não apenas o ato de perdoar outra pessoa, mas também de perdoar a si mesmo. Um diálogo de arrependimentos e saudades e da importância de capturar a alegria fugaz da vida enquanto a vivemos - para encontrar um ponto de apoio".
"SE QUISERMOS REALMENTE VER A OUTRA PESSOA, NÃO TEMOS OUTRA OPÇÃO A NÃO SER VERMOS COMPLETA E PROFUNDAMENTE A NÓS MESMOS", trecho do conto e fala do filme, que nos diz sobre a importância do auto conhecimento.
'Viver é contar uma história', acrescenta Maizé ... vários filmes nos dizem isso, Bacurau por exemplo. Mais ainda, é contar uma história em cima de todas as histórias que já vieram antes da nossa. Drive My Car diz ainda mais: apresenta a destreza de quem olha para o mundo e ousa pensar de forma mais humana sobre ele. "É impossível fingir que tudo é uma história - o rosto feio de uma realidade indomável, com seus finais não-finais insatisfatórios e suas impossibilidades de reversão, se intromete frequentemente demais no caminho dos protagonistas". É um clichê ainda mais antigo dizer que histórias salvam vidas, mas o filme nos apresenta essa tese de uma maneira apaixonada e coloca em cena personagens que a provam.
Luto e a solidão são dois sentimentos complexos dos seres humanos explorados de maneira explêndida em Drive my car. Na história, quando Oto morre repentinamente, Kafuku é deixado com muitas perguntas, sem respostas, de seu relacionamento com ela. E arrependimento de nunca ter conseguido compreendê-la completamente. E, dois anos depois, ele desenvolve, progressivamente, uma relação muito especial com a motorista Misaki, quando os dois, aos poucos, constroem a oportunidade de colocar suas dores e emoções reprimidas. Assim, o roteiro, muito bem escrito, tem como objetivo a construção dessa história de perdas e dores internalizadas nesses dois personagens principais, o artista e produtor e a motorista.
Todos os personagens do filme estrelam momentos em que desenrolam as trajetórias trágicas que os levaram até o lugar onde os conhecemos. No entanto, reflete Maju, a insistência em desvendar o passado de seus personagens serve principalmente para mostrar o que eles fazem com esse passado. Há a ficção de Tio Vania, mas também a ficção do laço paternal que Kafuku constrói com Misaki (sua filha que morreu ainda bebê teria a mesma idade dela), do perdão que eles oferecem um ao outro. Ficções que dão forças para essas pessoas seguirem adiante, encarando não só o trauma da realidade já consumada, como também a incerteza do que se coloca adiante delas e que se arrasta por baixo dos carros onde passam parte tão grande de suas vidas.
E sobre como vivenciamos nossas tristezas. Muito bem nos lembrou uma das Marias:
"Um livro muito importante na minha vida é o Cartas a um jovem poeta, principalmente a carta sobre a tristeza. Pois o autor nos diz que a tristeza é reveladora, que não devemos fugir dela, ela nos conta sobre nós...
No entanto, como nosso mundo nos ensina a temer a tristeza, a fugir dela! E nos oferece sempre as táticas de fuga (álcool, drogas, principalmente as lícitas, os remédios, a alienação, entre outras).
E, por outro lado, ao mergulharmos na nossa tristeza, é que nos conhecemos, é que nos descobrimos, nos perdoamos, nos redimimos... e seguimos em frente.
E eu fiquei muito feliz de ter tido oportunidade de dizer isso ao meu neto, agora com 10 anos, qdo ele me revelou: Vó, tô muito triste! e eu disse: Vamos, querido, como Dante na Divina Comédia, descer aos "infernos" e nos descobrir...
O livro ‘Cartas a um jovem poeta’ é constituído por 10 cartas trocadas entre o jovem poeta Franz Kappus e Rainer Maria Rilke. Rilke certamente foi um dos maiores poetas dos últimos séculos. Valeu a pena lermos alguns trechos dessa oitava carta, escrita em 1904, há mais de um século... e uma lição de vida super atual que se parece com o nosso filme:
"... Assim, não é preciso se assustar, meu caro Kappus, quando uma tristeza se ergue à sua frente, tão grande como o senhor nunca viu; quando uma inquietação passa por sobre as suas mãos e perpassa todas as suas ações, como a luz e as sombras das nuvens. É preciso pensar que acontece algo com o senhor, que a vida não o esqueceu, que ela segura sua mão e não o deixará cair. Por que o senhor pretende excluir de sua vida qualquer inquietude, qualquer dor, qualquer melancolia, sem saber o que essas circunstâncias realizam? Por que perseguir a si mesmo com estas perguntas: de onde pode vir tudo isso e para onde vai? No entanto, o senhor sabe que está em meio a transições e não desejaria nada mais do que se transformar.
... Se algum dos seus procedimentos for doentio, considere que a doença é um meio com o qual o organismo se liberta de corpos estranhos; por isso é apenas preciso ajudá-lo a estar doente, a assumir e ter sua doença por completo, pois é esse o seu curso natural... É preciso ter paciência como um doente e ter confiança como um convalescente, pois talvez o senhor seja ambas as coisas. Mais ainda: o senhor também é o médico que tem de tratar de si mesmo. Mas em toda doença há muitos dias em que o médico não pode fazer nada além de esperar. E é isso, mais do que qualquer outra coisa, que o senhor, por ser seu próprio médico, precisa fazer agora.
... Não se observe demais. Não tire conclusões demasiado apressadas daquilo que lhe acontece; deixe simplesmente as coisas acontecerem. Senão facilmente chegará a considerar com censuras (morais) o seu passado, que naturalmente tem participação em tudo aquilo com que o senhor se depara agora. Mas, dos erros, desejos e nostalgias de seu tempo de menino, o que atua agora em sua pessoa não é o que o senhor tem na memória e reprova."
Enfim, é um filme sobre luto, mas também sobre redenção. Fala sobre pessoas perdidas e pessoas que se descobrem no vazio umas das outras. Fala sobre se perder em si próprio. E duas cenas específicas, uma conversa com Misaki, a motorista, e uma cena de encerramento da peça de teatro, são poderosíssimas: tudo que tinha sido represado de emoção até então, é libertado em um turbilhão de força, de potência.
Afinal, é preciso destruir para reconstruir. Se perder para se reencontrar. E esse filme, uma obra prima, nos mostra como conduzir isso, no mais profundo sentido SBCense de vida... aliado ainda com bela fotografia e trilha sonora ... mostrando o que há de mais terno, sensível e complexo em um ser humano.
Por fim uma observação: as Marias e os Luizes são reais... porém, o relato é fictício, como se diz no SBC, uma "licença poética"...
Abraços carinhosos a todas, todos e todes... e nos mandem suas apreciações sobre o filme... e sobre a vida...
Santuza TU